Porque dizer não à unificação das eleições em 2022
Vamos expor, brevemente, alguns dos motivos pelos quais não podemos considerar positiva a unificação das eleições gerais e municipais a partir de 2022.
terça-feira, 9 de junho de 2020
Atualizado às 14:23
I. Considerações iniciais
Diversos são os projetos de emenda à constituição (PECs) que, tramitando no Congresso Nacional, objetivam unificar as eleições gerais e municipais a partir de 2022, prorrogando-se, pois, os atuais mandatos de prefeitos e de vereadores, obtidos no pleito de 2016.
A argumentação, com algumas variantes, aproveita-se dos seguintes "ganchos":
- Suposta economia de recursos públicos, com a realização de eleições apenas a cada quatro anos;
- Impossibilidade da realização de alguns dos atos preparatórios, de campanha e da votação em 2020, em razão da pandemia do novo coronavírus (covid-19).
A Confederação Nacional dos Municípios, em 26.05.20, inclusive, lançou a "Carta Aberta ao Congresso e à Nação sobre as Eleições" (Clique aqui), na qual, após um extenso rol de respeitáveis motivos ligados, principalmente, ao distanciamento social, ao direito do atuais gestores à reeleição e a estudos estrangeiros sobre a evolução da pandemia, afirma que a entidade, em conjunto com outros subscritores, requer "em nome da democracia e do Estado de Direito que precisa ser preservado, bem como, do direito à vida, a não realização das eleições municipais no corrente ano e que em decorrência disso seja considerada a posição histórica do Movimento Municipalista Brasileiro no sentido da unificação dos mandatos com a realização de uma eleição geral em 2022."
Sabemos que o contexto não é o mais favorável à realização da "festa da democracia", mas suprimi-la é, realmente, o melhor caminho?
A resposta é, duplamente, um não: (1) não sabemos se, efetivamente, no último trimestre de 2020, os maus efeitos do novo coronavírus encontrar-se-ão presentes em nosso país - é possível que, até lá, a "imunidade de rebanho" (aquela adquirida pelo alto percentual de pessoas já afetadas, o que torna o vírus algo incorporado à realidade comunitária) venha a conferir normalidade (ou quase isso) aos atos inerentes ao processo eleitoral; (2) por mais que haja restrições de ordem médico-sanitária a um normal desenrolar dos atos de campanha e à votação em si, concentrar a escolha de nossos representantes, desde a esfera municipal até a Presidência da República, revela-se um equívoco de grande monta, fadado a acarretar o ocaso da cidadania política.
II. Razões para rechaçar a unificação das eleições
Assim, vamos expor, brevemente, alguns dos motivos pelos quais não podemos considerar positiva a unificação das eleições gerais e municipais a partir de 2022:
1) É falsa a ideia de que haverá economia de recursos públicos:
Por mais que defensores da unificação afirmem que os recursos do Fundo Especial de Financiamento de Campanhas (FEFC, também conhecido como "Fundo Eleitoral") serão poupados, inclusive com possível reversão a ações de combate ao covid-19, trata-se de argumento falacioso: é evidente que, em ocorrendo a junção dos pleitos, o orçamento do Fundo Eleitoral para 2022 receberá proporcional inchaço, acomodando tanto os recursos que naturalmente seriam destinados às campanhas de candidatos a deputados estaduais e federais, a senadores, a governadores e a presidente, quanto os valores correspondentes ao financiamento daqueles que concorrerem a vereadores e a prefeitos. Traduzindo: se o FEFC para 2022, por exemplo, correspondesse a R$ 3 bilhões somente para as eleições gerais, a tal valor certamente seriam acrescidos os R$ 2 bilhões que deixariam de ser disponibilizados em 2020 para as eleições municipais - ou seja, em vez de R$ 3 bilhões, o gasto seria de R$ 5 bilhões.
O resultado será zero economia aos cofres públicos, não tenhamos dúvida! O que acontecerá, tão somente, será o gasto deixar de ocorrer em 2020 para, fatalmente, ocorrer de forma acumulada em 2022. Só isso!
2) Não haverá redução de custos por parte da Justiça Eleitoral:
Isso porque a estrutura necessária para que a Justiça Eleitoral supra a demanda de uma eleição com cerca de 50 mil (eleições gerais) e cerca de 600 mil (eleições municipais) em conjunto não se limitam às necessidades logísticas de locais de votação, convocação de mesários e das urnas eletrônicas, cujos custos, frisamos, sofrerão significativo aumento.
Vejamos: para uma votação com sete (uma vaga no Senado Federal em disputa) ou oito (duas vagas em disputa) candidatos a serem escolhidos, aumenta bastante o tempo que cada eleitor passa na cabine indevassável para exercer seu voto. Com isso, são necessárias mais seções de votação, o que gera, automaticamente, um maior número de mesários convocados (com a respectiva elevação de despesas para a convocação e para o pagamento de alimentação) e também de urnas eletrônicas (cujo valor de aquisição, que é alto, seria despendido para uma utilização, em dois turnos de votação, a cada quatro anos).
É importante deixar claro, ademais, que, mesmo que fosse empregada a alternativa de realização da votação em dois dias consecutivos, ainda assim haveria um substancial incremento em relação aos atuais valores gastos pela Justiça Eleitoral com a organização do pleito. Assim, o gasto público com uma eleição maior em 2022 acabariam por quase que anular eventual economia com a não realização de um processo eleitoral agora em 2020.
Há, também, todo um fluxo de trabalho relativo às diferentes esferas dos partidos políticos (diretórios municipais, estaduais e nacionais), ao processamento de registros de candidaturas e das ações eleitorais, à fiscalização dos atos de campanha, ao processo e julgamento das prestações de contas e à diplomação dos candidatos que exigem a realização de diversas tarefas por parte dos magistrados e dos servidores, cujo acúmulo não poderia ser absorvido pela força de trabalho atualmente à disposição.
Por isso, seria necessária a contratação de mais servidores públicos e a previsão de mais vagas de magistrados na Justiça Eleitoral, o que significa incremento elevado de gastos por anos e anos a fio, apenas para que todos os pleitos sejam simultaneamente realizados de quatro em quatro anos.
Ou seja, o que vai ocorrer é o aumento de gastos públicos em folha de pagamento dos Tribunais Eleitorais, sem prejuízo do dispêndio dos valores somados (2020 + 2022) do Fundo Eleitoral, como mencionado no tópico anterior.
3) A periodicidade dos mandatos e do exercício do voto são mandamentos constitucionais:
O poder constituinte de 1988, bem como o legislador brasileiro ao longo dos anos, deixou claro que os mandatos eletivos devem ser submetidos a sufrágio universal, direto, livre e secreto a cada quatro anos. Isto é: a Constituição afirma que deve ser conferida ao povo (e unicamente a ele), em lapsos pré-determinados (quadriênios), a possibilidade ou de referendar as gestões públicas, mantendo-lhes nos cargos, ou de concretizar a alternância de poder, elegendo outros ocupantes para sua representação política.
Por isso, é absolutamente descabido cogitar a extensão de mandatos de candidatos eleitos em 2016: eles receberam da população mandatos para serem exercidos por tão somente quatro anos, jamais seis anos - o que representaria um acréscimo de 50% no tempo de permanência nos cargos.
4) Será inevitável a confusão e a supressão de pautas importantes:
Como seria, para o eleitorado em geral, acompanhar, simultaneamente, durante os cerca de 45 dias de campanha eleitoral, os debates, as propostas, os programas e as promessas versando sobre pautas tão complexas como, por exemplo:
- Macroeconomia, reforma da previdência social e política externa (candidatos à Presidência da República e ao Congresso Nacional);
- Pacote de atração de investimento privado nacional e estrangeiro, tributação da cesta básica e dos combustíveis (ICMS) e segurança pública (candidatos aos Governos Estaduais e às Assembleias Legislativas); e
- Asfaltamento de vias urbanas, iluminação pública e saneamento básico (candidatos às Prefeituras e às Câmaras de Vereadores).
A propaganda eleitoral possui dupla função: fazer com que os candidatos e suas ideias sejam conhecidas, mas também informar ao eleitorado sobre quem são e o que pretendem os concorrentes ao pleito.
Seria razoável esperar que, mais que se ocupem com tão numerosos, diversos e complexos assuntos, as pessoas consigam compreender tanta coisa, a fim de que possam corretamente exercer seu direito ao voto?
Parece-nos que não: diante do excesso temático apresentado ao eleitor, a falta de entendimento limita, confunde e/ou suprime as pautas mais importantes de uma ou mais esferas de poder em disputa.
5) A constância de eleições fortalece a cultura democrática:
A democracia é algo a ser estimulado, introjetado e "treinado": a cultura democrática é retroalimentada por seu próprio exercício. Entre acertos e equívocos nas urnas, a democracia se fortalece e, cada vez mais, o povo almeja por maior protagonismo sobre o destino da nação.
Desse modo, limitar o exercício da mais elementar forma participação política a uma vez a cada quatro anos seria um retrocesso descabido, servindo como mecanismo de desmobilização popular para com a política e acarretando o ocaso da cidadania.
III. Considerações Finais
Destacamos, pois, que, desde a promulgação da Constituição de 1988, a legitimação do funcionamento das instituições democráticas demanda o crivo popular, periódica e intercaladamente, a cada quatro anos. Foge, pois, completamente, da normalidade uma indevida e inesperada extensão de mandatos.
Portanto, soa-nos muito mais salutar politicamente e, por óbvio, mais adequado constitucionalmente, que tenhamos a melhor eleição possível em 2020 e não uma suposta eleição perfeita somente em 2022.
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*Ângelo Soares Castilhos é bacharel em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS. Especialista em Direito Constitucional e em Direito Processual Civil. Chefe da Seção de Produção e Gestão de Conhecimento Técnico-Jurídico do TRE/RS. Membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político - ABRADEP e do Instituto Gaúcho de Direito Eleitoral - IGADE.