Colisão de princípios em tempos da pandemia do covid-19
Somente nos resta aguardar qual a linha argumentativa que o nosso Poder Judiciário seguirá diante dessa colisão de princípios constitucionais criada excepcionalmente pela pandemia do COVID-19.
sexta-feira, 5 de junho de 2020
Atualizado às 11:32
A excepcionalidade, nos dias atuais, começou a ditar a forma como estamos lidando com as problemáticas que, constantemente, nos vêm à tona nesse período de pandemia, inclusive, com o constante enfrentamento de situações concretas de colisão de princípios constitucionais, tais como, o direito de ir e vir e o direito à vida.
Esses hard cases, consoante denomina Ronald Dworkin, surgem à medida que, para averiguação da sustentabilidade de alguma medida restritiva estatal, crucial se faz, à luz de um caso concreto, ponderar quais dos princípios constitucionais que estão em colisão deve prevalecer.
Nos ensinamentos de Robert Alexy, os princípios são mandamentos de otimização, ou seja, são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível dentro das possibilidades jurídicas e fáticas existentes.
Ainda sobre a temática posta, o renomado autor alemão proclama que, nas situações que denotam flagrante colisão de princípios, um desses deve ceder frente ao outro, ao invés de ser invalidado ou haver sido introduzida uma cláusula de exceção. A solução para o conflito só será encontrada ao observar as circunstâncias do caso concreto.
Dessa monta, sempre considerando a realidade do caso, deve-se estabelecer uma relação de precedência condicionada, isto é, examinando a situação concreta, encontram-se as condições sob as quais um princípio precede o outro, com a consequente aplicação total ou parcial de seus mandamentos.
Trata-se de um reflexo da característica de otimização dos princípios e da inexistência de prioridades absolutas entre eles. Somente através de uma ponderação se soluciona o conflito entre princípios constitucionais.
Para tanto, deve-se verificar os critérios da adequação do meio utilizado para a persecução do fim; da necessidade desse meio utilizado; e da aplicação estrito senso da proporcionalidade, isto é, da ponderação. Assim, quando se estiver diante de uma colisão entre direitos fundamentais, primeiramente, para solucioná-la utiliza-se da adequação do meio, posteriormente, utiliza-se a necessidade desse meio, e em seguida, se ainda não solucionada a colisão, a ponderação.
Na atualidade, diante das orientações da Organização Mundial da Saúde -OMS, mostra-se, para parte da população, crucial o isolamento das pessoas como maneira de evitar a proliferação do COVID-19, posicionamento este que está impulsionando uma parcela dos Governadores a editarem decretos limitadores do acesso das pessoas aos locais públicos, tal como, por exemplo, foi feito em Pernambuco por meio do decreto 48.881/20.
Neste ponto, não obstante minhas pessoais ressalvas em relação ao lockdown, haja vista entender mais prudente uma política de distanciamento social vertical, importante destacar que, nos termos da nossa Lei Maior, cada Ente Federativo detém competência para legislar sobre a matéria em análise, cabendo ao Chefe do Executivo correspondente, por meio de um juízo discricionário, tomar as medidas que achar prudente para o enfrentamento desta celeuma excepcional.
Diante do cenário criado nos Estados que adotaram uma política rígida de isolamento, uma parte da comunidade jurídica defende que tais medidas são absolutamente inconstitucionais, posto que representam uma ofensa ao direito de ir e vir das pessoas previsto na Carta Magna de 1988, mais especificamente no seu inciso XV do artigo 5º.
Inobstante existir grande importância no comando constante do mencionado princípio constitucional, no caput do mesmo supramencionado artigo 5º da Constituição Federal encontra-se também prevista a inviolabilidade do direito à vida e à saúde.
Pois bem, verifica-se claramente uma colisão de princípios constitucionais (o direito de ir e vir e o direito à vida e à saúde), situação concreta esta que somente poderá ser solucionada, nos termos especificados alhures, por meio da aplicação do sistema de ponderação destes mandamentos que estão em choque, ou seja, um desses princípios deve ceder diante de outro, com sua consequente aplicação total ou parcial, desde que, por óbvio, atenda aos seguintes requisitos: (I) adequação; (II) necessidade; (III) proporcionalidade em sentido estrito.
Em assim sendo, inicialmente, deve-se questionar se as medidas de isolamento e quarentena são adequadas para fomentar o objetivo sanitário perseguido, isto é, a contenção da pandemia do COVID-19, a despeito de restringirem a liberdade de locomoção.
Nesse caso, as determinações de isolamento e quarentena, por afastarem pessoas e prevenirem aglomerações, mostram-se, em princípio, adequadas para o combate à pandemia.
Em segundo passo, deve-se verificar se tais medidas são necessárias para seu objetivo. Para tanto, relevante o questionamento acerca da existência de outras alternativas menos invasivas ao direito de locomoção que possuam igual eficiência no combate à pandemia. Para os defensores de uma política rígida de lockdown, não há no momento outros caminhos (vacina, por exemplo), razão pela qual entendem ser necessárias tais medidas para atingir o objetivo de proteção à vida e à saúde.
Ao final, deve-se perguntar se as vergastadas determinações atendem ao requisito da proporcionalidade em sentido estrito. Tal fase é crucial para evitar exageros, pois podemos nos deparar com medidas adequadas e necessárias, mas que causem uma restrição insuportável em outros direitos fundamentais, o que tornaria o objetivo perseguido injustificado.
Na situação posta, arrimado justamente na complexidade da matéria, diversas respostas podem vir à tona, senão vejamos:
a) as medidas restritivas, por não suspenderem atividades essenciais, por possuírem tempo de duração delimitada, por estarem sujeitas a controle jurisdicional regular e revisão periódica das autoridades sanitárias, atendem ao requisito da proporcionalidade em sentido estrito devendo ser aplicadas totalmente;
b) as medidas restritivas, não obstante a orientação proclamada pela OMS, não devem ser aplicadas integralmente, posta a real necessidade de se observar situações peculiares de pessoas que precisam, de fato, se locomover por uma questão de saúde mental (ex: idosos, depressivos, psicóticos ansiosos);
c) as medidas restritivas, considerando não ser uníssono na comunidade médica o acompanhamento das orientações da OMS, se fundam em argumentos vazios que não podem confrontar o direito constitucional do cidadão de ir e vir, se mostrando um tanto desproporcionais.
Por tudo acima dito, pode-se concluir que, na solução dessa colisão de princípios constitucionais, o grande embate acerca da precedência ou não das medidas restritivas à liberdade de locomoção encontra seu grande desafio na seara da proporcionalidade em sentido estrito.
Somente nos resta aguardar qual a linha argumentativa que o nosso Poder Judiciário seguirá diante dessa colisão de princípios constitucionais criada excepcionalmente pela pandemia do COVID-19.
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*Orlando Morais Neto é mestrando em Direito Constitucional, procurador do município do Jaboatão dos Guararapes e advogado.