Provimento CNJ 89/19: O registro eletrônico de imóveis (SREI) e a sua contribuição para o combate à corrupção e lavagem de dinheiro
Não restam dúvidas de que estamos dando um grande passo rumo à efetivação da segurança jurídica que se espera obter dos registros de imóveis, que passam a promover a facilitação e o acesso à informações.
sexta-feira, 5 de junho de 2020
Atualizado às 11:29
Quando se trata de registro de imóveis no Brasil, muito embora contemos com um sistema de registro de direitos e não meramente um depósito de contratos, através do qual sempre se primou pela observância de inúmeros princípios, dentre os quais, por exemplo, o da continuidade, - que se constitui como aquele que tem por escopo assegurar a concretude da cadeia dominial -, dentre tantos outros que contribuem sobremaneira para que o Registro de Imóveis no Brasil cumpra de fato o papel para o qual fora criado, tem-se que, considerando as dificuldades e dimensões do nosso país, bem como a ausência de integração entre os cartórios, até então não se mostrava possível oferecer a segurança jurídica necessária na celebração de negócios envolvendo imóveis em nosso país.
Todavia, com o advento do Provimento CNJ 89/191, tivemos um grande divisor de águas, tendo sido inaugurada uma nova fase no cenário notarial e registral, eis que, um dois principais escopos do Provimento, se pauta, justamente, na modernização dos procedimentos do registro imobiliário, e mais do que isso, institui um grande marco histórico ao se prestar a contribuir com a regulação moderna de prevenção e combate à corrupção e lavagem de dinheiro.
O Provimento CNJ 89 entrou em vigor em 1º de janeiro de 2020 e determinou a implantação do SREI até 2 de março de 2020, o que o fez revogando o Provimento CNJ 47, de 18 de junho de 2015, regulamentando assim o Registro Eletrônico de Imóveis (SREI), previsto na lei 13.465/2017.
Veja-se que, anteriormente, não havia uma norma regulamentadora que permitisse a implementação efetiva do SREI em todo o território nacional, todavia, em decorrência da pandemia do novo Coronavírus, que tomou proporções alarmantes em todo o mundo, houve a necessidade, assim como ocorreu no próprio Poder Judiciário, de suspender o atendimento presencial nos cartórios de registro de imóveis, de acordo com o que se depreende do Provimento 94, o que contribuiu para acelerar a regulamentação e implantação do SREI pelo Conselho Nacional de Justiça.
O Provimento CNJ 89/19 além de representar verdadeira modernização do sistema como o concebíamos anteriormente, permitiu a interoperabilidade e a interconexão das bases de todo o país, bem como a estruturação dos dados mediante a lavratura do registro que em momento algum pode-se confundir com a mera digitalização de documentos.
Além desses pontos de extrema relevância, tem-se ainda que o SREI terá por escopo prestar serviços de forma célere, contribuindo assim para a comunicação entre os cartórios, os mais diversos órgãos e a população em geral, sem contar que passará a se constituir como um dos principais alicerces para a efetivação de políticas públicas, em especial, para a regularização fundiária, além da possibilidade de fiscalização que poderá ser exercida, a interconexão dos registros imobiliário, o acesso a base de dados e à informações seguras, o que por sua vez, permite a criação de um número de matrícula nacional e unificado, e o mais importante, a prestação de serviços de forma irrestrita em todo o território nacional.
Porém, deve-se ter em mente que, em razão das dificuldades que lhe são próprias, a implantação do sistema em todo o território nacional ocorrerá de forma gradual, inicialmente primando por mudanças nos procedimentos e posteriormente, à medida em que os atos registrais forem sendo praticados, será possível iniciar a migração das matrículas para o SREI, bem como gerar a numeração unificada, o que em momento algum permite entender pela possibilidade de que venha a ser desprezada a necessidade inafastável de análise dos atos que serão levados à registro pelo registrador, pois não se pode olvidar que estamos diante do registro de direitos.
Por essa perspectiva, vale considerar que o Brasil adota o sistema germânico, o qual traz em seu cerne a imperiosa necessidade de análise dos contratos que serão levados à registro, não sendo possível a realização de registros que não estejam em consonância com o ordenamento jurídico, tampouco desprezar o direito de terceiro, que acaba sendo resguardado em decorrência da publicização dos atos registrados, da impossibilidade de registrar cadeias duplas, da observância aos princípios registrais e da garantia do direito inscrito.
Por certo que a mera implantação do sistema não tem o condão de garantir a sua efetividade sem que haja um órgão responsável, assim, a Corregedoria Nacional não apenas fiscaliza, quanto é a responsável pela regulação do SREI que tem o papel de integrar os registros de todo o país, cuja composição conta com todos os oficiais de registros de imóveis dos Estados e do Distrito Federal.
Considerando que o sistema prima pela segurança das informações e documentos, e que fora igualmente concebido para combater a corrupção e a lavagem de dinheiro, o provimento CNJ 89/19, vedou expressamente aos Oficiais de Registro de Imóveis a recepção ou expedição de documentos eletrônicos fora da plataforma do SREI, não sendo possível, portanto, a utilização de correspondência eletrônica (e-mail) ou qualquer outra modalidade de envio de documentos.
Não obstante, vale considerar que a implantação do registro eletrônico visa alçar o sistema registral brasileiro à um novo patamar sob a perspectiva do Grupo de Ação Financeira contra a Lavagem de Dinheiro e o Financiamento do Terrorismo (GAFI/FATF), não se restringindo, portanto, simplesmente, à modernização dos registros, eis que terá a finalidade de contribuir de forma contundente para o combate à corrupção e à lavagem de dinheiro.
Cumpre esclarecer que o Grupo de Ação Financeira contra a Lavagem de Dinheiro e o Financiamento do Terrorismo (GAFI/FATF) se trata de uma organização intergovernamental, cujos objetivos se estruturam no desenvolvimento e promoção de políticas nacionais e internacionais de combate à lavagem de dinheiro e ao financiamento do terrorismo, e para tanto, se voltam à edição de regulamentos para o combate a esses crimes, com vistas a manutenção da incolumidade dos sistemas e verificação da efetividade de suas Recomendações.
Mais do que isso, tem-se que o GAFI, criado em 1989, consiste em um organismo elaborador de políticas que atua visando gerar a vontade política necessária que permita a realização de reformas legislativas e regulatórias, tendo publicado as suas Recomendações visando atingir esse objetivo.
As 40 Recomendações do GAFI2 constituem-se como um guia para que os países adotem padrões e promovam a efetiva implementação de medidas legais, regulatórias e operacionais para combater a lavagem de dinheiro, o financiamento do terrorismo e a sua proliferação, além de outras ameaças à integridade do sistema financeiro que, porventura, se relacionem a esses crimes.
Atualmente, esses padrões têm sido adotados por mais de 180 países, sendo que a partir de 2010 houve a indicação para que fossem imediatamente incluídos os notários e registradores, a fim de que pudessem contribuir com o combate à corrupção e lavagem de capitais, tendo em vista a constatação de que os registros são comumente utilizados com a finalidade de atribuir aparência de legalidade à inúmeros negócios ilícitos.
Apenas para que se tenha uma dimensão da importância dos registros de imóveis no combate à corrupção, vale ressaltar que a Espanha tem se destacado dentre inúmeros países em razão de que a atuação dos seus notários e registradores vem sendo considerada a principal atividade colaboradora no combate à lavagem de capitais.
Não obstante, manifesta ainda a importância da implementação da política de compliance3, concebido como mecanismo hábil à condução da atividade extrajudicial de forma segura. E nesse sentido, o papel das corregedorias dos Estados e do DF para o seu desenvolvimento e fiscalização se revela imprescindível, bem como do oficial de cumprimento que será o responsável pelo envio das informações relativamente as operações suspeitas, à unidade de inteligência financeira.
A política de compliance inclui o treinamento dos notários, dos registradores, dos oficiais de cumprimento e dos funcionários contratados, tudo isso com o objetivo de criar um protocolo de prevenção institucionalizado no âmbito de todas as serventias do país.
Assim, caberá aos notários e registradores, a avaliação da existência de operações ou propostas de operações suspeitas de seus usuários, devendo dispensar especial atenção às operações que apresentem indícios do possível cometimento de crimes.
Para corroborar a premissa voltada à necessidade de identificação de atividades suspeitas, o cadastro único de clientes terá a característica de possibilitar a identificação do usuário e de eventual prática de operação suspeita que por ele venha a ser realizada, no que se incluem, tanto pessoas físicas, quanto jurídicas, além, é claro, de se prestar ao fornecimento de dados confiáveis sobre os usuários dos serviços e sobre os seus negócios, permitindo ainda a identificação do beneficiário nas operações.
Além da política do compliance, não menos importante O SISCOAF, que ocupa um papel extremamente relevante nesse novo cenário, eis que terá por escopo dedicar especial atenção à operação ou proposta de operação envolvendo pessoas expostas politicamente e seus familiares, além de pessoas jurídicas das quais façam parte e os seus colaboradores.
Para a manutenção da atualização dos cadastros, permitiu-se a criação de convênios com vários órgãos, dentre os quais a Receita Federal, juntas comerciais dos Estados, Comissão de Valores Mobiliários, além de órgãos e organismos internacionais, e demais instituições que tenham em suas bases dados importantes, tais como atos constitutivos, modificativos, extintivos ou informação sobre participações societárias em pessoas jurídicas.
Por fim, diante de todas essas considerações, certo que o SREI não será apenas importante para transformar a forma como concebemos e utilizamos os cartórios de registro de imóveis, ou um mero mecanismo que prima pela facilitação do acesso à informações e ao armazenamento de dados de forma universalizada, mas sim, que teremos um sistema que se rege por uma premissa primordial e indispensável nesse momento, qual seja, o combate à corrupção.
E não menos importante, evidente que o SREI propiciará aos usuários, através da interconexão e universalização dos dados, a segurança que se espera do registro de imóveis, que como se sabe, no Brasil, consiste em um sistema de registro de direitos que, a despeito dos inúmeros problemas que possa vir a apresentar, antes mesmo do Provimento CNJ 89, já podia ser utilizado como padrão de referência, especialmente, se comparado aos sistemas americano e francês que se caracterizam unicamente como mero depósito organizado de contratos, ao permitirem o registro de cadeias duplas e, por via de consequência, não assegurar qualquer direito.
Assim, não restam dúvidas de que estamos dando um grande passo rumo à efetivação da segurança jurídica que se espera obter dos registros de imóveis, que passam a promover a facilitação e o acesso à informações que, inequivocamente, contribuirão para a segurança jurídica tão almejada nas negociações imobiliárias.
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1 CNJ. Provimento 89, de 18 de dezembro de 2019. Regulamenta o Código Nacional de Matrículas - CNM, o Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis - SREI, o Serviço de Atendimento Eletrônico Compartilhado - SAEC, o acesso da Administração Pública Federal às informações do SREI e estabelece diretrizes para o estatuto do Operador Nacional do Sistema de Registro Eletrônico - ONR. Disponível em: clique aqui. Acesso em: 01 jun. 2020.
2 GAFI/FATF. As recomendações do GAFI. Padrões internacionais de combate à lavagem de dinheiro e ao financiamento do terrorismo e da proliferação. 2012. Disponível em: clique aqui. Acesso em: 02 jun. 2020.
3 Aponta-se como marco de surgimento do compliance, em âmbito internacional, a edição, em 1977 pelos Estados Unidos da América, da FCPA - Foreign Corrupt Practices Act, legislação que passou a exigir das empresas que operam na Bolsa de Valores de Nova York que adotassem um conjunto de regras voltadas a evitar e punir fraudes ligadas a atos de corrupção. A adoção de regras de compliance passou então a ter consequências jurídicas relevantes para a aplicação das sanções previstas na legislação norte-americana (CAVALIERI. Davi Valdetaro Gomes. O Compliance Como Mecanismo de Combate à Corrupção. Revista Âmbito Jurídico nº 176 - Ano XXI - Setembro/2018.)
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*Debora Cristina de Castro da Rocha é mestre e doutoranda em Direito Empresarial e Cidadania. Advogada fundadora do escritório Debora de Castro da Rocha Advocacia, especializado no atendimento às demandas do Direito Imobiliário e Urbanístico.
*Edilson Santos da Rocha é controller jurídico pelo escritório Debora de Castro da Rocha Advocacia. Acadêmico de Direito pela Faculdades da Industria - FIEP. Pesquisador pelo Centro Universitário Curitiba - UNICURITIBA. Curitiba - PR.