O ovo da serpente
O Estado-Maior das Forças Armadas, onde se concentra a elite da inteligência militar, sabe que eventual golpe, além de desnecessário e inútil, será fatídico para quem o tentar. Desta vez não serão precisos 20 anos para que a Nação de mobilize e exija o pronto restabelecimento do Estado Democrático de Direito
quinta-feira, 4 de junho de 2020
Atualizado às 11:42
Há poucos dias escrevi texto elogioso ao ministro Celso de Mello. Não somos amigos ou inimigos. Mal nos conhecemos. Fui magistrado doze anos. Aposentei-me no TST e voltei a advogar. Conheço as dificuldades de ambos os ofícios. Não posso deixar de respeitá-lo e de lhe manifestar admiração.
Leio nos jornais que S. Exa., teria comparado o bolsonarismo ao nazismo. O presidente Jair Bolsonaro seria o ovo da serpente que, quando eclodir, trará de volta a ditadura. Creio que S. Exa., o ministro Celso de Mello, exagerou. Adolf Hitler foi uma coisa. Jair Bolsonaro é outra. Basta ler a biografia Hitler escrita por Joachim Fest; Ascensão e Queda do III Reich de William L. Shirer; A República de Weimar de Lionel Richer; ou qualquer obra que trate da Segunda Guerra Mundial. Nos bons livros de História Jair Bolsonaro será pequeno parágrafo ou nota de pé de página.
Adolf Hitler não foi aprendiz de ditador. Foi o gênio do mal. Abriu ardilosamente o caminho para a tomada do poder. Combinava astúcia com violência. Apossou-se do Partido Nacional-Socialista dos Operários Alemães - NSDAP, que nada tinha de socialista, nem se preocupava com operários. Recuperou a Alemanha estrangulada pelo Tratado de Versalhes. Mobilizou e armou o exército mais poderoso da Europa. Aparelhou a aeronáutica e a marinha com o que havia de mais avançado. Ao se sentir forte o bastante, tentou dominar o mundo e foi esmagado.
O presidente Jair Bolsonaro é fruto do acaso. A fragilidade dos concorrentes, a aversão ao PT e a facada na barriga o elegeram. Durante a campanha permaneceu hospitalizado, mudo e calado. Não tivemos a oportunidade de ouvi-lo em debates com os adversários. Falava pelas redes sociais. As mensagens tratavam do rearmamento da população, do combate ao PT e à corrupção. A pandemia do coronavírus esconde as dificuldades que sente para administrar. Admite desconhecer economia e relações exteriores. É incapaz de sobreviver sem conflitos. Dos auxiliares exige absoluta subordinação. O passado, como deputado federal, é caderno em branco. Para conseguir apoio parlamentar restabeleceu o "toma lá, dá cá", com dirigentes partidários condenados por corrupção.
Suspeita-se que deseja o apoio das Forças Armadas para reviver o golpe 31 de março de 1964. Desacredito da possibilidade de Exército, Marinha e Aeronáutica enveredarem pelo caminho da violência contra a sociedade civil e rasgarem a Constituição como em 1937 e 1964. Fechar o Congresso e o Poder Judiciário, extinguir partidos, cassar mandatos e direitos políticos, intervir nos Estados e Municípios, encarcerar adversários, eliminar o habeas corpus, fará do Brasil a Venezuela de extrema direita, entregue ao arbítrio de capitão ditador.
O risco de que venha a acontecer é pequeno. De um lado porque o golpe não resolveria a crise econômica, nem traria de volta o emprego para 20 milhões de desempregados e desalentados. De outra parte porque o mundo livre se colocaria contra o Brasil. Com os olhos voltados a graves problemas internos, o presidente Donald Trump não teria como nem porque auxiliar a ditadura. A sólida vocação democrática, aliada aos problemas de empobrecimento, afastaria a Europa. Não seria do Japão, Coréia, Rússia e China que viriam ajudas ao Brasil. Da Organização das Nações Unidas (ONU) e da Organização dos Estados Americanos (OEA) partiriam condenações imediatas. Como se justificariam os nossos diplomatas diante de ambas as organizações?
O Estado-Maior das Forças Armadas, onde se concentra a elite da inteligência militar, sabe que eventual golpe, além de desnecessário e inútil, será fatídico para quem o tentar. Desta vez não serão precisos 20 anos para que a Nação de mobilize e exija o pronto restabelecimento do Estado Democrático de Direito. A História nos ensina como as ditaduras começam e como acabam. É regra sem exceção condenarem o país à pobreza, ao fracasso ou à destruição, como o fizeram Hitler na Alemanha, Mussolini na Itália, Stalin na URSS, Mao-Tse-Tung na China, Franco na Espanha, Salazar em Portugal, Stroessner no Paraguai, Pinochet no Chile, todos os generais na Argentina, Papa Doc e Baby Doc no Haiti.
A Constituição é intocável. Está sujeita a emendas, se e quando aprovadas de conformidade com os requisitos que nela mesmo se contém. Golpeá-la, a pretexto de restabelecimento da ordem pública que não se encontra ameaçada, é crime político que compete ao Supremo Tribunal Federal processar e punir.
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*Almir Pazzianotto Pinto é advogado. Foi ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho. Autor de A Falsa República e 30 Anos de Crise - 1988 - 2018.