Walter Ceneviva: O justo
O uso de palavras vagas atrapalha a aplicação da lei. De outro lado, não estamos ainda na época da robotização e, mesmo assim, a justa proporção não tem parâmetros definidos, porque palavras colhidas no mundo da natureza causam perplexidade.
terça-feira, 2 de junho de 2020
Atualizado às 10:42
O ilustre advogado doutor Antonio Ruiz Filho, querido amigo e coordenador dessa edição da revista da AASP, solicitou-me escrever algumas recordações em homenagem ao jurista doutor Walter Ceneviva.
Iniciei minha vida como servidor na antiga Vara dos Feitos da Fazenda Nacional (hoje extinta), no Fórum João Mendes, que foi transformada na Justiça Federal. Posteriormente, transferi-me para este ramo da Justiça, na Praça da República.
Conheci o ilustre advogado Walter Ceneviva, portanto, por volta de 1963, quando eram magistrados das antigas Varas da Fazenda Nacional os juízes Francis Selwyn Davis e Hely Lopes Meirelles. Trabalhava como escrevente de sala e atendia aos dois juízes.
Ali comparecia regularmente o douto advogado na condição de articulista da Folha de S.Paulo, onde publicava, ao lado de artigos, comentários sobre livros e decisões importantes, na coluna "Letras Jurídicas". Como é sabido, a antiga Vara da Fazenda Nacional (inexistia a Justiça Federal) decidia todas as questões da União em São Paulo. Logo, emanavam decisões importantíssimas. E lá estava o doutor Walter Ceneviva para recolhê-las, estudá-las e comentá-las.
De outro lado, é um homem excepcionalmente culto. Conhece não apenas Direito, mas também literatura e filosofia. No Direito, dedica-se ao Direito Civil e, mais especificamente, tornou-se um especialista em Direito Notarial. Seu livro Lei dos Registros Públicos Comentada é clássico na matéria. Quem quer que estude o assunto deve consultar a obra do eminente autor.
Além deste clássico, publicou Anotações à legislação de divórcio, Novo registro imobiliário brasileiro, Manual do registro de imóveis, Direito Constitucional brasileiro, Publicidade e Direito do Consumidor, Segredos profissionais, Lei dos Notários e dos Registradores comentada.
Posso estar omitindo algum de seus livros. Mas, a culpa é minha.
O que não posso omitir é a grandeza de Walter Ceneviva. Sua arquitetura mental. Sua dedicação ao trabalho. Sua gentileza. Sua educação. Sua harmonia familiar. Seu gigantismo com os amigos.
Como homenagem ao grande jurista, escrevo um breve artigo sobre o significado do justo que tem o mesmo significado que Walter Ceneviva.
O justo
Muitos dizem que a justiça não é matéria de direito. Antígona diz que nunca supôs que o direito dos homens fosse superior ao dos deuses (Sófocles, Antígona). Identifica-se, aí, não apenas a diferença entre princípio e regra, mas também o injusto decorrente de regra normativa positiva em comparação com o justo decorrente da natureza humana.
Indaga-se: é fácil identificar o justo nas relações do dia a dia? Antes de mais nada, o homem tentou conhecer e compreender o mundo (filósofos pré-socráticos). Em seguida, buscou se conhecer. Depois, entra em contato com os outros. Para manter o relacionamento, vale-se da linguagem. Ela faz o elo entre os homens.
Surgem, a partir daí, os primeiros desencontros. Hobbes (Leviatã) vai identificar o homo homini lupus (que buscou em Plauto, Asinária). Os homens não se pacificam, mas entram em confronto. Muitos pensam que, depois do pacto social que cria o Estado, pacificou-se o mundo. Os homens se submetem a um outro ente e acertam seus conflitos.
Não é assim que se passam as coisas. Os confrontos continuaram. Ainda hoje tudo não é senão tentativa de dominação através da força (morte violenta a que faz menção René Girard (A violência e o sagrado).
A história da humanidade dá bem a ideia a que me refiro. Guerras são inatas ao ser humano. Os impérios antigos, como Egito, Pérsia, Mongólia e depois Grécia, Roma e Macedônia, são exemplos nítidos das lutas de conquistas e da ação inata do ser humano em se fazer obedecer. Isso na Antiguidade. Depois, a Idade Média retrata lutas intermináveis entre diversos reinos. Na Modernidade, as duas Grandes Guerras falam por si, com o holocausto dos judeus, ciganos e homossexuais. E hoje, mudou alguma coisa?
Para responder à pergunta, temos que voltar o pensamento para a Guerra dos Bálcãs, para o genocídio dos tutsis, com a subjugação vergonhosa de quase toda a África. Para a dominação da Coreia do Norte, para as violências praticadas pela Rússia e pelos Estados Unidos, cada qual por seus próprios meios. Com conflitos constantes na América Latina.
E daí? Observe-se que estamos buscando o justo. É o tema que encabeça o artigo. A linguagem, como se viu, busca aproximar os homens, mas habitualmente os desagrega. Bourdieu cuida da violência simbólica, que é característica dos povos avançados. Não mais a violência física ou a morte violenta, mas a violência por outras formas.
A violência simbólica utiliza-se sempre da linguagem simbólica. É para iludir a dominação. Mando, mas não posso deixar que o outro saiba disso. Dou ordens, mas não posso deixar que o outro se incomode com isso. Substituo palavras duras por outras suaves, mas a intenção é a mesma.
Em todos esses comportamentos, como se vê, há injustiça, mas ela é disfarçada através da linguagem e do comportamento. A linguagem é pródiga em encobrir desavenças. Seu uso tem o caráter de imposição ou de sedução. Como exemplo atual, podemos perquirir o que há sob a palavra gênero. O que distinguia apenas o sexo passa a identificar o psiquismo do indivíduo e sua adaptação ao corpo. As palavras mudam de acepção no curso da história.
Assentamos, pois, um primeiro posicionamento de que a linguagem é poderoso instrumento na qualificação do justo.
De outro lado, concordamos, também, que o confronto é natural em qualquer comunidade. O homem lobo do homem não se extingue com o pacto firmado historicamente. Os confrontos continuam. O importante é achar consensos, o que é próprio de uma sociedade aberta.
Postula-se uma sociedade democrática de embates, mas dentro de determinados parâmetros de civilidade. Nasce a civilização com a repressão, diz Freud, no que é complementado por Marcuse, que assevera que a sociedade se organiza pela repressão dos instintos. E assim é. Decorre, exatamente, de uma estrutura sancionadora aos comportamentos indesejáveis. Nasce, então, um complexo de normas que estabelece a conduta e, no descumprimento da ordem obrigatória ou proibida, a respectiva repulsa do ordenamento normativo.
O básico, por consequência, é o controle dos comportamentos. Mas, e os excessos, o que fazer com eles?
A estrutura repressiva tem que se pautar pela lei de talião, a saber, "olho por olho, dente por dente", o que representa a regra da justa proporção. Não se pode ler o aforisma do ângulo literal, porque perde o sentido. É a ponderação na aplicação das penas. Não se pode agravar a repreensão ao ilícito além do que permite o bom senso.
Mas, não sabemos também o que é o bom senso.
O uso de palavras vagas atrapalha a aplicação da lei. De outro lado, não estamos ainda na época da robotização e, mesmo assim, a justa proporção não tem parâmetros definidos, porque palavras colhidas no mundo da natureza causam perplexidade.
Por outro lado, temos a interpretação jurídica, situação que nos deixa apreensivos. O intérprete irá lidar com a linguagem, com o confronto permanente e, também, com instintos reprimidos. A estrutura do sistema normativo que utiliza palavras vagas igualmente não nos dá segurança jurídica. A interpretação vem informada com as pulsões e os sentimentos dos intérpretes. Estas, não há como virem ao mundo com normatividade nem com segurança jurídica.
A linguagem é poderoso instrumento na qualificação do justo.
Como buscar o justo dentro de tal quadro?
De se ver, ainda, a informalidade da economia e o afastamento da maioria da sociedade do direito formal. Grande parte da sociedade não resolve seus problemas através dos caminhos oficiais do juízo. Boa parte se subordina ao crime organizado (PCC, CV, etc.). Outrora, aos líderes locais que comandavam o tráfico. Outros, por se encontrarem distantes dos fóruns oficiais. Muitos, por não terem qualquer informação de como resolver seus conflitos. Diversos, por ignorância. A morosidade é um estigma do Poder Judiciário. Solenidades sem fim. Formalidades desnecessárias. Discursos e votos intermináveis. Tudo leva a um distanciamento solene de povo/juiz.
Em tal sociedade dividida, o conceito de justo é dado pelos meios informais de solução de litígios.
Ocorre que há o justo formal, isto é, o decorrente da lei. É que a maioria ignora que o legislador apenas fornece um quadro, um escaninho mental de raciocínio através das palavras da lei. Na Antiguidade grega, o justo era o legal. Na Roma, da mesma forma, através do sistema formular. Gestos podiam ensejar a vitória em uma causa.
Ainda não logramos resolver nosso assunto. O que é o justo?
Avancemos no raciocínio. Temos o uso de palavras ou sintagmas que contêm um amplo campo de incidência. Necessitam de interpretação, mas vimos que esta demanda uma série de problemas por força da influência subjetiva.
Para Platão, o justo só pode ser encontrado naquele que mantém o "comando sobre si mesmo", "estabeleça ordem", venha a ser amigo de si mesmo e "ponha em harmonia as três partes de sua alma" (A República, Livro IV, XVII, n. 443, letra e), e, então, torna-se "uno, temperante e pleno de harmonia". O justo é o equilíbrio, a ponderação, a equidade.
Aristóteles segue no mesmo rumo. Em Ética a Nicômaco (Livro V, item X), o justo é o equitativo. Afirma que "a equidade, embora sendo superior a uma forma de justiça, é ainda assim, justa" (1137, 7). O justo exerce uma função retificadora da justiça legal.
Acho que avançamos bastante.
O ideal é encontrar, em primeiro lugar, a pacificação consigo próprio (dizia o oráculo de Delfos: nosce te ipsum - "conhece-te a ti mesmo"). A partir dessa paz interna é que pode agir com equilíbrio, ponderação e temperança. Esse é o justo.
Não tenho dúvida em afirmar que o ilustre doutor Walter Ceneviva encontrou-se dentro das angústias diárias, pacificou-se consigo próprio e comportou-se, em todas as atividades que descrevemos, como um justo. Sempre se valeu da linguagem adequada para transmitir o que desejava. Soube superar os eternos conflitos humanos e sociais.
A esse homem é que presto minha homenagem.
A um justo.
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O artigo foi publicado na Revista do Advogado, da AASP, ano XXXX, nº 145, de abril de 2020.
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*Regis Fernandes de Oliveira é desembargador aposentado. Professor titular aposentado da USP. Ex-vice-prefeito de São Paulo. Ex-deputado federal. Autor de 17 livros, dentre os quais obras de Direito, filosofia política e romances.