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A relevância do princípio da boa-fé contratual durante a pandemia (covid-19)

O direito contratual é regido por diversos princípios, dentre os quais se destacam: a autonomia da vontade, a supremacia da ordem pública, o consensualismo, a obrigatoriedade, a revisão ou onerosidade excessiva e a boa-fé.

segunda-feira, 1 de junho de 2020

Atualizado às 11:13

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Como notório, estamos vivenciando um momento completamente atípico, decorrente da pandemia da covid-19, doença causada pelo coronavírus SARS-CoV-2, cujo quadro clínico de infecção respiratória pode acarretar graves complicações de saúde e, até mesmo, a morte dos infectados.

Diante do atual cenário, em que o Estado tem imposto inúmeras medidas restritivas à população, tais como o isolamento social e a limitação ao funcionamento de empresas, muitas dúvidas têm surgido quanto à necessidade de cumprimento das obrigações contratualmente assumidas, como por exemplo: Devo pagar o aluguel do imóvel onde minha empresa está estabelecida?

Para responder esta pergunta, assim como outras semelhantes, faz-se necessário considerar alguns pontos importantes.

Como se sabe, o contrato é a mais comum fonte de obrigações e, em regra, ele deve ser cumprido. Se assim não fosse, os negócios jurídicos não trariam aos pactuantes a segurança esperada.

O direito contratual é regido por diversos princípios, dentre os quais se destacam: a autonomia da vontade, a supremacia da ordem pública, o consensualismo, a obrigatoriedade, a revisão ou onerosidade excessiva e a boa-fé.

Observa-se que, embora parte dos princípios acima elencados almejem, justamente, forçar o cumprimento das obrigações assumidas (ex.: a autonomia da vontade, o consensualismo, a obrigatoriedade e a boa-fé), estes não são absolutos, existindo outros princípios que possibilitam a flexibilização do pactuado, ainda que em caráter de exceção (ex.: a supremacia da ordem pública, a revisão ou onerosidade excessiva e a boa-fé).

Não é por acaso que o princípio da boa-fé foi mencionado tanto como fundamento para compelir o adimplemento do pactuado, como viabilizador da flexibilização das obrigações previstas, pois o dever de boa-fé é imposto a ambos os contratantes,  em todas as fases da relação contratual (art. 422 do Código Civil).

Segundo a doutrina civilista:

"Positivado no art. 422 do CC, o princípio da boa-fé objetiva constitui cláusula geral que deve ser observada em todas as relações contatuais. De acordo com o princípio da boa-fé, as partes devem proceder com lealdade, honestidade, transparência e confiança recíproca, seja durante a fase de negociação, como na forma e na execução do contrato, sempre buscando aquilo que é justo e o equilíbrio contratual. A boa-fé objetiva é, por seu turno, uma regra geral de conduta que defini um modelo de comportamento socialmente esperado". (SANTOS, José Van Cleef de Almeida e CASCALDI, Luis de Carvalho. Manual de Direito Civil. 2ª Edição. São Paulo: Editora revista dos Tribunais, 2014. Página 407).

Logo, uma vez que experimentamos situação atípica, cujos efeitos sociais e econômicos não podem ser mensurados, bem como que o nosso ordenamento jurídico impõe aos contratantes o dever de boa-fé, o ideal é que os mesmos encontrem uma forma de tornar o contrato equilibrado, inclusive considerado que o momento de incerteza é passageiro.

Assim sendo, para responder ao questionamento apresentado anteriormente, atinente a ser ou não necessário o cumprimento de obrigações locatícias no cenário atual, deve-se observar o caso concreto, notadamente porque as medidas restritivas imposta pelo Estado podem ou não gerar efeitos sobre a situação financeira específica do locatário.

Imaginemos a situação em que determinado imóvel é alugado para servir de sede à uma empresa que atua na revenda de combustíveis. Embora a mencionada atividade tenha sido considerada essencial (decreto 10.282, de 20 de março de 2020, com redação alterada pelo decreto 10.329, de 28 de abril de 2020), de modo que os Postos de Combustíveis continuam abertos, não há dúvida de que a restrição à circulação de veículos na cidade reduz drasticamente o volume de vendas e, com isso, o custo fixo do estabelecimento empresarial pode ser superior ao ganho auferido pelo locatário com a comercialização de produtos, o que poderia tornar ao empresário mais interessante suspender suas atividades do que mantê-las, gerando reflexos negativos para a toda sociedade, eis que, além de geradora de empregos e recolhedora de tributos, a referida atividade empresarial é de extrema importância para a circulação de produtos e serviços, em um país extremamente dependente da malha rodoviária. Nesta hipótese, parece perfeitamente aceitável que os contratantes revejam o valor do aluguel. Caso locador e locatário não cheguem a um acordo, a questão pode ser debatida judicialmente.

Aliás, recentemente, o Dr. Luís Maurício Sodré de Oliveira, Juiz de Direito responsável pela 03ª Vara Cível da Comarca de São José dos Campos - SP, entendeu pelo deferimento da liminar pretendida por um Posto de Combustíveis, para determinar a redução do valor pago a título de aluguel, em 50% (cinquenta por cento), com base nos seguintes argumentos:

"Uma vez que a pandemia impacta a sociedade como um todo, sem nenhuma exceção, afigura-se mais razoável e proporcional, neste momento, diante da ausência de prova que deve ser feita durante o processo de conhecimento, a redução do valor do aluguel em 50% do preço atual, já que os esforços diante da pandemia devem ser suportados por ambas as partes, no que concerne às expectativas com a queda das respectivas receitas". (pedido de tutela antecipada antecedente 1008834-92.2020.8.26.0577 - 3ª Vara Cível - Foro de São José dos Campos).

Situação diversa seria visualizada se o locatário exercesse atividade empresarial que experimentou aumento nas vendas, como por exemplo a dos supermercados, que só em São Paulo tiveram a alta de 15% (quinze por cento) durante a pandemia1. Neste caso, não parece aceitável que se buscasse a revisão do valor do aluguel, seja pelo locatário (redução), seja pelo locador (aumento).

Como bem destacado na decisão judicial destacada acima, a pandemia impacta a sociedade como um todo, de modo que todos devem cooperar para a minimização dos seus efeitos. Portanto, não pairam dúvidas quanto à relevância do prestígio ao princípio da boa-fé para a solução das celeumas decorrentes do atual momento de pandemia (covid-19), tanto nas tratativas extrajudiciais, entre as partes relacionadas, como na resolução dos conflitos judiciais.

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*Mário Eduardo Barrella é advogado do escritório Cruz, Gregolin e Amaral Sociedade de Advogados.

*Caio Marcelo Gregolin Sampaio é sócio do escritório Cruz, Gregolin e Amaral Sociedade de Advogados.

 

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