Covid-19 e a postura das operadoras de planos de saúde e seguradoras
Duas grandes relações afetadas foram as travadas entre operadoras de planos de saúde e os contratantes destes planos, e a relação entre seguradoras e segurados, especialmente os seguros de vida, de renda e prestamistas.
sexta-feira, 29 de maio de 2020
Atualizado às 13:46
O momento em que nos encontramos pode ser identificado como o centro de uma combustão. Não estamos mais na faísca inicial vivida em fevereiro, meados de março, tampouco estamos, infelizmente, no período em que o fogo já se apagou.
Quer no campo sanitário, com o crescente número de casos e óbitos, quer no campo econômico, com o aumento no número de desempregados, falidos, e famintos, parece estarmos ainda no pior cenário desta crise.
Na seara jurídica não é diferente: estamos no olho do furacão. Diversas áreas do direito já foram e serão afetadas pela covid-19, é o caso das relações de trabalho, de consumo, de comércio internacional, de locações, etc.
Neste cenário, duas grandes relações afetadas foram as travadas entre operadoras de planos de saúde e os contratantes destes planos, e a relação entre seguradoras e segurados, especialmente os seguros de vida, de renda e prestamistas.
Longe de traçar a solução para cada um destes setores, é preciso conhecer os riscos que estão por vir nestas relações.
No caso dos planos de saúde pode ser identificada uma tendência acentuada à judicialização massificadas destas questões. Judicialização essa que já ocorre historicamente.
Isso porque, via de regra, os planos de saúde no Brasil e no mundo não cobrem riscos relacionados a danos causados em razão de pandemias. As operadoras nacionais se firmam principalmente no artigo 10 da lei 9.656, de 19981, que, em seu inciso X, dispõe que o plano referência, naquela ocasião criado, não contempla cobertura em casos de "cataclismos, guerras e comoções internas, quando declarados pela autoridade competente".
Com relação aos tratamentos e medicamentos prescritos, afiançam-se no inciso primeiro do mesmo artigo, o qual determina a inexistência de cobertura para "tratamento cirúrgico ou clínico experimental".
Ainda que seja assim, as proporções dos danos econômicos e sociais causadas pela covid-19 levaram à comoção e engajamento de uma grande rede de empresas e instituições. Munida deste sentimento, e da necessidade de minimizar os efeitos da crise (econômica e sanitária) a Agência Nacional de Saúde Suplementar - ANS, através da resolução normativa 4532, incluiu o exame de detecção da covid-19, bem como o tratamento da doença, no rol de procedimentos mínimos a serem observados pelos planos de saúde.
Além de tais disposições, a ANS, através de termos de compromisso, tem tentado garantir a continuidade da assistência à saúde em contrapartida a incentivos econômico-financeiros concedidos às prestadoras.
Estes termos de compromisso visam garantir (I) a renegociação dos contratos existentes, evitando rescisões até junho de 2020; e (II) a continuidade no atendimento de segurados que estejam inadimplentes.
Adicionalmente, as operadoras se comprometem, pelo termo de compromisso, a adotar medidas de austeridade econômica, incluindo a distribuição de dividendos estritamente no mínimo exigido pelo estatuto ou contrato social, não aumento de pro labore de administradores, não redução de capital social, etc.
Em contrapartida, as operadoras que aderissem ao termo de compromisso poderiam acessar recursos do fundo garantidor de saúde suplementar, cujo montante perfaz, aproximadamente, 52 bilhões de reais. Estimasse que aproximadamente 15 bilhões do fundo seriam destinados ao socorro às operadoras.
O resultado, no entanto, não foi como o esperado pela ANS, e poucas empresas aderiram à proposta. Grandes operadoras, tais como AMIL, GreenLine, SulAmérica, e outras, não firmaram os termos de compromisso.3 4
Em nota, a ANS, em 25 de abril de 2020, destacou que a posição das operadoras em não aceitar o termo de compromisso indica que estão suficientemente preparadas para combater esta crise. Indicou a ANS, ao fim, que um termo de compromisso que militasse apenas em favor das operadoras sem qualquer contrapartida aos consumidores seria ilegal.5
Com efeito, as operadoras apostam, como há anos vêm apostando, na judicialização destes temas.
À guisa de exemplo, menciono o processo 1031866-05.2020.8.26.0100, distribuído perante a justiça do Estado de São Paulo. Mesmo após a resolução 453 da ANS, que determinou a cobertura para tratamento da covid-19, a Notredame Intermédica, ré em supracitada ação, negou cobertura ao segurado. Liminarmente foi garantida a internação em unidade de terapia intensiva pretendida (ainda não há sentença neste caso).6
Como dito no início do texto, estamos no olho do furacão, ocasião em que dificilmente se enxerga com clareza a extensão dos danos causados. No entanto, podemos esperar com acentuada segurança que crescerá significativamente o número de ações versando sobre cobertura de exames, cobertura de tratamento, rescisão de contratos por inadimplência e atendimento aos inadimplentes.
Com relação aos seguros, temos no Brasil um cenário um tanto quanto distinto, menos bélico, mas também com possibilidade de discussões judiciais em um futuro próximo.
Tal como ocorre com os planos de saúde, é praxe neste ramo que sinistros relacionados a situações de pandemia não estejam cobertos pelo seguro, desde que tal situação de pandemia seja declarada por órgão competente, assim como o fora a covid-19, pela Organização Mundial de Saúde.
Quando tratamos de seguros e implicações relacionadas a uma pandemia, devemos lembrar não apenas dos seguros cujo bem segurado é a vida, mas também dos seguros de renda; seguros para quitação de mensalidades escolares; de vencimentos locatícios; os prestamistas, que garantem a quitação de contratos de financiamento; etc.
Pode-se identificar que, no Brasil, grandes empresas seguradoras adotaram uma postura distinta das operadoras de plano de saúde e, espontaneamente, afirmaram que cobrirão os sinistros relacionados à covid-19. São exemplos: Prudential7; MAPFRE8; Zurich Seguros9, dentre outros.
É preciso observar, no entanto, que a maioria destas empresas trata apenas do seguro "vida", sendo menor o número de empresas que se comprometeram a cobrir também os demais tipos de sinistros, relacionados à renda e aos prestamistas.
É certo que, diferente do que ocorre com o setor dos planos de saúde, o setor de seguros é mais sensível aos danos de imagem e descrédito do consumidor. Afirmaremos com razão que aquele consumidor, que tendo contratado um seguro e pagado o prêmio durante anos a fio, se sentirá traído e desacreditará do sistema quando o sinistro ocorrer e lhe for negado acesso ao benefício.
Somado a isto, as empresas seguradoras se depararam com um aumento no número de busca por seguros, especificamente para proteção contra os danos causados pela covid-19, e, respeitado o período de carência, têm vendido estes novos produtos.
Entretanto, o cálculo das seguradoras, não podemos ignorar, é realizado em detalhes, e podemos esperar que, caso suas operações se tornem deficitárias, haverá negativas em cadeia ao pagamento de benefícios relacionados a sinistros da covid-19 e, por consequência, teremos também discussões judiciais sobre o alcance das cláusulas limitativas de cobertura em caso de pandemia.
Necessário mencionar que eventual discussão passará, também, pelo Poder Legislativo, onde já há projeto de lei, apresentado pelo senador Randolfe Rodrigues (REDE-AP)10, acrescentando ao Código Civil a impossibilidade de que as seguradoras neguem benefícios em caso de pandemia, ainda que declarada por órgão competente.
Diante desse cenário, o que podemos esperar, certamente, é uma grande quantidade de ações discutindo cobertura de planos de saúde, em um cenário desfavorável às operadoras dos planos, e uma potencial discussão judicial sobre os seguros, ainda não definida em razão de estratégias bem desenhadas por parte das empresas seguradoras.
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*Mauricio Bispo de Souza Dantonio é advogado pós-graduado em direito empresarial. Colaborador do escritório Suchodolski Advogados Associados.