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ADIns 6373 e 6378: O futuro do Sistema S nas mãos do STF

Edvaldo Nilo de Almeida

O sistema sempre esteve desde a sua origem em permanente luta com o Poder Executivo e o Poder Legislativo quanto ao seu modelo de financiamento e a cada novo governo ou legislatura o calor do debate se acirra ainda mais.

quarta-feira, 27 de maio de 2020

Atualizado às 10:45

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Os Serviços Sociais Autônomos foram criados na década de 1940 no Brasil por meio de legislação específica que conferiu, a cada um dos entes, a missão constitucional de prestar serviços sociais em favor de determinado setor, de determinados trabalhadores ou, ainda, da sociedade em geral, especialmente na promoção e indução ao emprego.

Decerto, o sistema sempre esteve desde a sua origem em permanente luta com o Poder Executivo e o Poder Legislativo quanto ao seu modelo de financiamento e a cada novo governo ou legislatura o calor do debate se acirra ainda mais ao ponto de um Ministro de Estado afirmar que irá "meter a faca no Sistema S. Se o interlocutor é inteligente, preparado e quer construir, como o Eduardo Eugênio corta 30%. Se não, corta 50%".

Por outro lado, diante da notória deficiência do próprio Estado de cuidar dos direitos  sociais, a cada dia o Sistema S ganha em relevância para a sociedade brasileira e, hoje, no âmbito Federal, por exemplo, compõem essa forma de organização o Serviço Social da Indústria (Sesi), o Serviço Social do Comércio (Sesc), o Serviço Nacional de Aprendizagem da Indústria (Senai), o Serviço Nacional de Aprendizagem do Comércio (Senac), o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), o Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar), o Serviço Nacional do Transporte (Sest), o Serviço Nacional de Aprendizagem do Transporte (Senat), o Serviço Nacional de Aprendizagem das Cooperativas (Sescoop), a Associação das Pioneiras Sociais - Rede Sarah ou Centro de Reabilitação Sarah Kubitschek, a Agência de Promoção de Exportações do Brasil (Apex-Brasil), a Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial (Abdi), a Agência Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural (Anater), a Agência para o Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde (Adaps) e a Agência Brasileira de Promoção Internacional do Turismo (Embratur).

Nessa senda, são hoje aproximadamente 1.100 unidades operacionais dessas quinze entidades do Sistema S citadas com capilaridade amplamente nacional, isto é, em todas as unidades da federação existe pelo menos uma unidade de cada um dos sistemas sociais citados. Só o Sesc São Paulo tem 44 unidades operacionais com atendimento de 30 milhões e 700 mil pessoas nessas unidades apenas em 2019.

Desse modo, invariavelmente, as sucessivas leis que autorizaram, instituíram ou criaram os serviços sociais autônomos, vêm veiculando disposições concretizadoras dos direitos sociais assistenciais, ligadas ao desenvolvimento de categorias profissionais ou econômicas específicas, ou, ainda, de políticas públicas fundamentais ligadas à geração de emprego e a promoção da saúde. Assim, todos os serviços sociais autônomos estabelecidos na ordem jurídica brasileira buscam garantir o acesso dos direitos sociais atualmente previstos no artigo 6º, da CF.

Decerto, o art. 6º da CF estabelece como direitos sociais "a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados". Já o art. 203, III, da CF dispõe que a assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos a promoção da integração ao mercado de trabalho.

Nesse rumo, a lei 8.742/93, que dispõe sobre a assistência social no Brasil, prevê que os objetivos são a proteção social, a promoção da integração ao mercado de trabalho, a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice, a vigilância socioassistencial e a defesa dos direitos sociais dos brasileiros. Assim sendo, os serviços sociais autônomos, na qualidade de entidades de assistência social criadas por lei, fazem jus ao recebimento das contribuições que lhes são destinadas para concretizar os direitos sociais especificados na Constituição e na legislação de sua criação.

A prestação desses serviços não decorre da lei ou do decreto que instituiu cada ente, mas sim da consecução dos objetivos fundamentais da República (art. 3º da CF), especialmente o de garantir o desenvolvimento nacional (art. 3º, inc. II, da CF) e de reduzir as desigualdades sociais (art. 3º, inc. III, da CF). Ademais, a atividade das entidades do Sistema S estão diretamente afetas à implementação dos direitos sociais previstos no art. 6º da Constituição (educação, à saúde, à alimentação, ao trabalho, à moradia, ao transporte, ao lazer, à segurança, à previdência social, à proteção, à maternidade e à infância e à assistência) e da assistência social, prevista no art. 203 da Constituição.

Assim, a MP 932/20 discutida nas ADIns 6.373 e 6.378, ao reduzir em 50% as alíquotas das contribuições sociais destinadas a essas entidades acaba por violar frontalmente os arts. 3º, 6º e 203 da Constituição, porquanto prejudica desproporcionalmente atividades sociais que visam exatamente o "suposto" objeto da norma provisória que é a promoção do emprego. Essa desoneração da folha de pagamento apenas para os serviços sociais autônomos é medida inócua já que, ela mesma, prejudica abusivamente os serviços que tem por norte garantir a manutenção da produção e emprego na sociedade brasileira e, que devido ao desaquecimento da economia, já estão trabalhando com cerca de 30% da sua arrecadação ordinária e, ainda, não há pertinência temática, inviabilizando a continuidade da prestação de serviços sociais de excelência que contribuem para o desenvolvimento econômico do país.

É certo que essas alterações, em regra momentâneas, de acordo com a conveniência e a oportunidade de determinados dirigentes políticos ou ocupantes temporários de cargos de confiança, estão de encontro a entidades historicamente sólidas que prestam um bom serviço à sociedade brasileira, além de contrariar normas de conduta e normas organizacionais que são longevas e consolidadas contra o enfrentamento de diversas crises fiscais ao longo dos tempos. Não se pode esquecer que os serviços sociais autônomos surgem no Brasil exatamente em razão da ineficiência estatal na formação de profissionais qualificados e a carência de políticas de educação, cultura e saúde para os trabalhadores e seus familiares. Decerto, o Poder Público, diante das dificuldades em cumprir e expandir esses papéis tão indispensáveis, transfere a responsabilidade para os empresários que passam a ser responsáveis não só pela qualificação técnica-profissionalizante dos trabalhadores como por serviços relevantes de assistência social.

Desse modo, diante da problemática estatal em prover serviços de assistência social e educação profissionalizante para inclusão no mercado de trabalho e a atualização constante de técnicas de capacitação, foram criados os serviços sociais autônomos, com objetivos estabelecidos em lei e, por meio de contribuição tributária incidente sobre a própria folha de pagamento das empresas, que tinham enorme necessidade de mão-de-obra saudável e qualificada e, a partir de então, passariam a organizar, a manter e a gerir o seu próprio serviço social e de aprendizagem em favor de seus trabalhadores.

De fato, os serviços sociais autônomos têm a concreção de aspectos da seguridade social na sua concepção constitucional mais atual de promoção de ações destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde e à assistência social do trabalhador (art. 194, caput, da CF) e, assim, de formar e desenvolver políticas de promoção da integração ao mercado de trabalho (art. 203, inciso III, da CF) por meio de desenvolvimento do ensino profissional e geração de empregos.

Nesse ínterim, os serviços sociais autônomos vêm contribuindo para a melhoria da qualidade de vida e para o exercício da cidadania da população brasileira, com a finalidade de promover a execução de políticas de interesse coletivo e utilidade pública voltadas para a saúde no seu sentido mais amplo e adequado, ou seja, de atendimento às necessidades de alimentação, de habitação, de lazer, de cultura, de transporte, de emprego, de educação, de renda do trabalhador, de previdência e acesso a serviços de saúde. Registra-se que constitucionalmente e legalmente a noção de saúde deve ser compreendida não só como a falta de doença, mas sim como bem-estar individual e social do indivíduo.      

Além disso, o próprio Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) já demonstrou através de diversas pesquisas técnicas que a desoneração da folha no Brasil não gera efeitos positivos na demanda por trabalho e, mais, no caso estudado, já faz com que as próprias entidades do S que são as instituições que mais empregam proporcionalmente no Brasil (recursos recebidos x número de funcionários) pelo seu amplo espectro e fundamento social também tenham que demitir centenas de funcionários.

Mas não é só. Da leitura da norma constitucional do art. 149 da CF, elenca-se três modalidades de contribuições: as sociais, as de intervenção no domínio econômico e as de interesse de categorias profissionais ou econômicas. Referidas contribuições possuem natureza jurídica tributária autônomas, diferente de impostos, taxas, contribuições de melhoria ou empréstimo compulsório. Outra característica singular dessas contribuições é a destinação da sua arrecadação, pois, nem sempre, é destinada ao Estado, mas, também, a pessoas jurídicas que não integram, diretamente, a estrutura administrativa estatal como as autarquias e as entidades privadas que colaboram com o Poder Público.

A natureza das contribuições tributárias que financiam o sistema S, o qual existe como instrumento para a concretização de direitos sociais, exige um cuidado maior ao se lidar com os recursos recebidos pelas entidades do serviço social autônomo. Por certo, o caráter finalístico é elemento que diferencia as contribuições sociais de outras espécies tributárias e, ao mesmo tempo, determina a destinação a ser dada ao produto das arrecadações.

Se o art. 149 da CF prevê a possibilidade de a União instituir contribuições para a garantia de direitos sociais, por exemplo, a instituição desse tributo tem que ser destinada ao seu desiderato, em regra, sob pena de se retirar a lógica normativa do texto constitucional. Esse argumento da finalidade das contribuições sociais encontra validade jurídica na estrutura desses tributos dentro da CF, porquanto o art. 149 vinculou expressamente a instituição de contribuições para as áreas para as quais foram criadas, mediante a utilização da expressão "como instrumento de atuação nas respectivas áreas", ou seja, como meio de atuação nas áreas sociais, de intervenção de domínio econômico e de categorias profissionais ou econômicas.

Decerto, o artigo 149 da CF prevê a competência tributária privativa da União Federal para "instituir contribuições sociais, de intervenção no domínio econômico e de interesse das categorias profissionais ou econômicas, como instrumento de sua atuação nas respectivas áreas". Acerca das contribuições de seguridade social, o artigo 195 dispõe que a seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios, e das contribuições sociais a que alude o dispositivo.

Por sua vez, o artigo 240 da Carta Magna esclarece que as contribuições compulsórias dos empregadores sobre a folha de salários, destinadas às entidades privadas de serviço social e de formação profissional vinculadas ao sistema sindical, não se incluem naquelas listadas no citado artigo 195. Assim, a alteração da destinação das contribuições do sistema S representa uma violação à finalidade das contribuições sociais, prevista nos arts. 149 e 240 da Constituição.

Por fim e não menos importante, o aumento exacerbado de 100% da taxa de retribuição da Receita Federal do Brasil para arrecadação das contribuições do S configura nítido confisco, pois representa uma interdição desproporcional ou injusta apropriação estatal, comprometendo-se de forma abusiva ainda mais as atividades sociais das entidades, ou seja, configura-se confisco o injustificado aumento em dobro da retribuição a ser paga à RFB pelos mesmos serviços administrativos prestados há anos às entidades sociais.

Nesse contexto, é incontestável que os serviços sociais autônomos visam criar mercado de trabalho e melhorar a quantidade e a qualidade dos empregos, com a inclusão das pessoas mais afastadas do mercado de trabalho, bem como de reduzir a pobreza, com eficazes medidas de interconexão de políticas de emprego, sociais e de pobreza.

Portanto, entende-se que chegou a hora do Excelso Supremo Tribunal Federal de uma vez por todas barrar as intempéries momentâneas do governo de ocasião e medidas legislativas como a MP 932/20, pois, além dos óbices constitucionais materiais, traduzidos na violação aos arts. 3º, 6º, 149, 150, IV, 194, 195, 203, III, e 240 da Constituição Cidadã, não contribuem em nada para inclusão no mercado de trabalho e será um inconteste recado para o futuro no sentido de que leis de claro retrocesso social não passam pelo crivo da razoabilidade que também condiciona os atos estatais.

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*Edvaldo Nilo de Almeida é pós-doutorando no Programa de Pós-Doutoramento em Democracia e Direitos Humanos. Doutor em Direito Público. Mestre em Direito Constitucional. Especialista em Direito Tributário. Procurador da Fazenda do Distrito Federal no Tribunal Administrativo de Recursos Fiscais do Distrito Federal - TARF/DF. É sócio do escritório Nilo & Almeida Advogados Associados.

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