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O (Des)Governo em tempos de pandemia

Alessandra Okuma

Ninguém quer perder a liberdade de locomoção, deixar de se reunir com entes queridos, ser impedido de exercer sua profissão, atividades esportivas e etc. Por isso mesmo precisamos de normas jurídicas que imponham limitações temporárias proporcionais e razoáveis, para conter a disseminação.

segunda-feira, 25 de maio de 2020

Atualizado às 08:49

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Em meio ao caos da saúde pública, os cidadãos brasileiros estão desnorteados. Proibidos de trabalhar normalmente, alguns continuam a frequentar praias, parques e praças. A imprensa noticia o funcionamento de estabelecimentos não essenciais, principalmente em regiões periféricas. Muitos não têm outra alternativa a não ser aglomerar-se nas agências da Caixa Econômica Federal para receber o auxílio federal. As aulas presenciais foram suspensas, mas o exame nacional do ensino básico - ENEM estava mantido até outro dia. Apesar do alarmante número de óbitos, há fotos do calçadão de Copacabana cheio no Rio de Janeiro. O mesmo acontece em inúmeros parques e praças do território nacional, pois não há lei que restrinja a circulação, nem que obrigue o uso de máscara em todo o território nacional.

Ninguém quer perder a liberdade de locomoção, deixar de se reunir com entes queridos, ser impedido de exercer sua profissão, atividades esportivas e etc. Por isso mesmo precisamos de normas jurídicas que imponham limitações temporárias proporcionais e razoáveis, para conter a disseminação, observando a adequação entre meios e fins, a necessidade e a proporcionalidade em sentido estrito (vedação ao excesso)1.

Temos notícia de lockdown no município de São Luis do Maranhão (determinado por ordem judicial a pedido do Ministério Público), em Belém e outras nove cidades do Pará, em Fortaleza, Salvador, Niterói e outras partes do Rio de Janeiro. Todavia, o Poder Judiciário negou os pedidos de lockdown do Ministério Público no Estado do Amazonas e Pernambuco2.

A lacuna legislativa é um problema que causa divergências e suscita muitos questionamentos judiciais. Não é exagero afirmar que a omissão do Governo Federal agravou a situação de calamidade pública resultando em mais de vinte mil mortos (número que aumenta em progressão geométrica com rapidez alarmante).

1. A Distribuição de Constitucional de Competências

Em linhas gerais, a distribuição de competências administrativas e legislativas da Constituição Federal segue a regra do interesse protegido, ou seja: quando o interesse é nacional, a competência é da União; quando é regional, a competência é dos Estados e; quando é local, a competência é dos municípios, como leciona Jose Afonso da Silva3:

"O princípio geral que norteia a repartição de competência entre as entidades componentes do Estado Federal é o da predominância do interesse, segundo o qual à União caberão aquelas matérias e questões de predominante interesse geral, nacional, ao passo que aos Estados tocarão as matérias e assuntos de predominante interesse regional, e aos Municípios concernem os assuntos de interesse local." .

O art. 23 da Constituição Federal dispõe que é competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios "cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência". E o art. 24, XII prevê a competência concorrente da União, dos Estados e do Distrito Federal para legislar sobre a defesa da saúde. Mais adiante, no art. 198 reforçou a competência concorrente ao determinar que "as ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes: I - descentralização, com direção única em cada esfera de governo."

As competências concorrentes podem ser (I) cumulativas, quando os entes federados podem legislar na omissão do ente que lhes superior, sem limites prévios, prevalecendo - todavia - a norma federal em caso de conflito; ou (II) não cumulativas, quando há delimitação previa da matéria por sua extensão (normas gerais e particulares)4.

A competência administrativa e legislativa em matéria de saúde pública é concorrente e cumulativa, na esteira do que reconheceu recentemente o Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADIn 6.341, pois "as medidas adotadas pelo Governo Federal na Medida Provisória (MP) 926/2020 para o enfrentamento do novo coronavírus não afastam a competência concorrente nem a tomada de providências normativas e administrativas pelos Estados, pelo Distrito Federal e pelos municípios". No Plenário, prevaleceu o entendimento do ministro Edson Fachin, de que a União pode legislar sobre o tema, mas que o exercício de sua competência deve sempre resguardar a autonomia dos demais entes.

Na ADPF 672, o min. Alexandre de Moraes reconheceu a competência constitucional da União exercida por juízo de conveniência e oportunidade do Chefe do Executivo, mas ressalvou que que "não compete ao Poder Executivo federal afastar, unilateralmente, as decisões dos governos estaduais, distrital e municipais que, no exercício de suas competências constitucionais, adotaram ou venham a adotar, no âmbito de seus respectivos territórios, importantes medidas restritivas como a imposição de distanciamento/isolamento social, quarentena, suspensão de atividades de ensino, restrições de comércio, atividades culturais e à circulação de pessoas, entre outros mecanismos reconhecidamente eficazes para a redução do número de infectados e de óbitos, como demonstram a recomendação da OMS (Organização Mundial de Saúde) e vários estudos técnicos científicos, como por exemplo, os estudos realizados pelo Imperial College of London, a partir de modelos matemáticos (The Global Impact of COVID-19 and Strategies for Mitigation and Suppression, vários autores; Impact of non-pharmaceutical interventions (NPIs) to reduce COVID-19 mortality and healthcare demand, vários autores)."

A decisão do min. Edson Fachin na reclamação 40.342-PN, também demanda base cientifica, ao afirmar que "seja o exercício da competência dos entes federados, seja o seu afastamento, deve-se fundar, em cada caso concreto, em evidências científicas e nas recomendações da OMS".

Conclui-se, portanto, que atos normativos da União, dos Estados e dos municípios devem ser fundamentados por fatos e pela ciência, com coerência e razoabilidade, como impõe o princípio da proibição da arbitrariedade dos poderes públicos.

2. A Competência da União - Normas Gerais

Como afirmaram Fernando Scaff e Hamilton Dias de Souza em recente artigo, é competência da União de veicular diretrizes para defesa da saúde, de modo que os Estados e os municípios atuem de modo harmônico5. Nesse sentido, é dever da União estabelecer normas gerais, que "dispõem de forma homogênea para determinadas situações para garantia da segurança e certeza jurídicas, estabelecem diretrizes para o cumprimento dos princípios constitucionais expressos e implícitos, sem se imiscuírem no âmbito de competências específicas dos outros entes federativos", como apontou Lucia Valle Figueiredo6.

Na tentativa de conter a disseminação nacional do vírus SARS-CoV-2, a lei 13.979/20 do Congresso Nacional permitiu que "as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências": isolamento; quarentena; determinação de realização compulsória de exames, vacinas e outros procedimentos médicos e outros; restrição excepcional e temporária a entrada e saída do território nacional, locomoção interestadual e intermunicipal e etc. Entretanto, a lei federal não estabeleceu critérios objetivos para a imposição dessas restrições.

O decreto do presidente da República 10.282/20 definiu serviços públicos e atividades essenciais e, recentemente, o decreto 10.344/20 permitiu o funcionamento de salões de beleza, barbearias e academias de esporte, locais nos quais quase não se respeita a distância mínima entre pessoas recomendada pela Organização Mundial da Saúde. Essa arbitraria inclusão deu-se sem qualquer justificativa e contrariando evidências cientificas, em um momento no qual o sistema de saúde pública de muitos Estados e municípios se encontra em - ou a beira de - colapso. Mais uma polemica que deve ser levada ao Supremo Tribunal Federal, onde já se acumulam 1944 ações nas quais se discutem consequências jurídicas da pandemia.

Na excepcional situação de calamidade pública que enfrentamos, a União deveria traçar diretrizes, editar normas gerais nacionais para garantir a segurança física e jurídica. A omissão do Governo Federal quanto aos critérios para decretação de isolamento, quarentena e lockdown torna-se grave, à medida que é dever da União de planejar e coordenar ações para impedir a disseminação nacional do vírus, como veremos a seguir.

3. A Competência Excepcional da União em Situação de Calamidade Publica

Em seu artigo 21, XVIII, a Constituição Federal estabelece que é competência da União "planejar e promover a defesa permanente contra as calamidades públicas, especialmente as secas e as inundações". Ou seja, numa situação de calamidade como a que vivemos, a União deve planejar e coordenar a atuação de todos os Estados e municípios. E mais, nos termos do art. 16, parágrafo único, da lei 8.080/90, nessas circunstâncias excepcionais a União deve executar diretamente as ações de saúde, verbis:

"Parágrafo único. A União poderá executar ações de vigilância epidemiológica e sanitária em circunstâncias especiais, como na ocorrência de agravos inusitados à saúde, que possam escapar do controle da direção estadual do Sistema Único de Saúde (SUS) ou que representem risco de disseminação nacional."

A situação é urgente, relevante e impõe a adoção de medidas de contenção cientificamente comprovadas para defesa da sociedade, com fundamento no art. 21, XVII da Constituição Federal. Nessa emergência, o presidente da República, que tem o poder de editar medidas provisórias na forma do art. 62, tem também o dever de atuar como para garantir a sintonia, o equilíbrio e a segurança de toda Federação. Seria um bom uso para esse instrumento utilizado banalmente de modo abusivo7.

Portanto, em uma pandemia com risco de disseminação nacional, é o dever da União planejar e coordenar as providencias em caso de calamidade pública e os demais entes descentralizados devem seguir suas diretrizes. Assim sendo, o presidente da República poderia/deveria determinar os critérios de circulação de pessoas, exigindo o uso de máscara em ambientes públicos e estabelecer condições para o lockdown de municípios quando o sistema de saúde assim exige - por exemplo, quando há ocupação de 80% dos leitos de unidades de terapia intensiva nos hospitais públicos.

4. Conclusões

A ausência de normas e de fiscalização da circulação de pessoas expõe todos ao risco de contágio e ao iminente colapso do sistema de saúde pública. É hora de a União editar normas gerais de contenção a pandemia, com base nas evidências científicas e nas recomendações da Organização Mundial de Saúde (OMS).

Em uma situação gravíssima como a que vivemos exige medidas drásticas, com restrições temporárias e excepcionais de direitos e liberdades individuais em prol da saúde pública e da proteção a dignidade da pessoa humana8. É urgente que a União exerça a competência legislativa que lhe foi atribuída no art. 21, XVIII e no art. 62, caput da Constituição Federal para planejar, coordenar e executar as ações de combate à pandemia. E o mais importante, essa competência deve ser exercida com razoabilidade, de modo coerente com os fatos e as evidências cientificas como decidiu o Supremo Tribunal Federal.

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1 SOUZA, Hamilton Dias de e CARVALHO, Thúlio J.M.M. Covid 19, crise institucional e repartição de competências. JOTA, 22.04.20.

2 RODAS, Sergio. Restrições do lockdown não dependem do estado de defesa ou sitio. Conjur, 09.05.20.

3 SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 16. ed. São Paulo: Malheiros, 1998. p. 478.

4 FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio e MARANHÃO, Juliano Souza de Albuquerque. O Acesso a rodovias e a competência dos entes federados: Federalismo solidários e articulação do sistema viário nacional. Revista de Direito Administrativo, v. 244. Rio de Janeiro: 2007.

5 SCAFF, Fernando e SOUZA, Hamilton Dias. Breves notas sobre a competência federativa no âmbito da pandemia. Conjur, 18.05.20. 

6 FIGUEIREDO, Lucia Valle. Competência administrativa dos Estados e municípios. Revista de Direito Administrativo, v. 207. Rio de Janeiro: 2007.

7 SOUZA, Hamilton Dias. medidas provisórias e abuso do poder de legislar. In: VELLOSO, Carlos Mario da Silva et al. Princípios constitucionais fundamentais: estudos em homenagem ao Professor Ives Gandra da Silva Martins. São Paulo: Lex, 2005, p. 583-890.

8 "Numa palavra: Em termos legais-constitucionais, não há qualquer exigência de Estado de sítio ou de defesa para restringir o direito de ir e vir. Todos os dias essas restrições são feitas até por portaria. Aeroportos restringem, estádios, ruas etc. Leis restringem liberdades. Então, qual seria o problema de, em meio a uma pandemia, via legalidade extraordinária, restringir direitos para salvar vidas? Aliás, decretar Estado de Sítio ou de Defesa seria desproporcional. No sentido mais cru da palavra "proporcionalidade" (lá do Código Prussiano)." STRECK, Lenio Luiz. Lockdown e estado de sitio: operar uma unha não exige anestesia geral. Conjur, 11.05.20.

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t*Alessandra Okuma é doutora em direito tributário e advogada de Dias de Souza Advogados Associados.

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