Os juros, o dólar, a água e as rolhas: efeito e causas
O que os juros têm a ver com as rolhas é que eles também flutuam para cima e para baixo, em movimentos complexos que resultam de diversos fatores, os quais os entendidos chamam de spread (bancário, quando que empresta o dinheiro é um banco).
quinta-feira, 21 de maio de 2020
Atualizado em 22 de maio de 2020 09:34
Ora, direis, o que têm a ver os juros e o dólar com as rolhas? Muita coisa, como veremos em seguida.
Vamos começar pelas rolhas, aquelas que nós sacamos das garrafas de vinho. Bom, de preferência. Elas são leves, de baixa densidade e boiam sobre as águas. Muito científico isto, mas penso que dá para entender. E quando colocadas na água as rolhas têm movimentos atrelados, por sua vez, ao movimento da água sobre a qual está boiando. Se a água está parada, idem as rolhas; se elas se mexem, também as rolhas. Se estão no mar, sobem e descem ao sabor das ondas, alcançando maior ou menor altura na dependência de uma calmaria, de uma tempestade ou de um furacão.
É possível que algum psicólogo tenha dito que as rolhas são muito teimosas. Têm TOC. Isto porque quando alguém a empurra para baixo na água, basta soltá-las que elas voltam para a superfície. Não dá outra, a não ser que elas tenham ficado encharcadas por longo tempo de exposição à agua, tendo perdido a sua capacidade de flutuar.
Vamos em seguida para os juros e eu juro que não vou enrolar muito. Singelamente falando, os juros são a expressão de diversos fatores, um deles, muito importante, consiste no fato de que representam o custo do dinheiro no tempo. Isto é, se alguém pega dinheiro emprestado para alguma necessidade, por exemplo, por seis meses, ao devolver a importância tomada do mutuante deve fazê-lo acrescida de certo valor (principal mais juros). No fundo trata-se de uma compensação ao dono do dinheiro pelo tempo que ficará sem poder utilizá-lo, mediante a renúncia que resulta do empréstimo feito. Funcionaria mais ou menos como um aluguel a ser pago ao mutuante, relativamente à importância recebida pelo mutuário.
Essa operação é muiiiiito antiga, podendo ser encontradas referências indiretas no famoso Código de Hamurabi do qual os alunos das faculdades de direito tão ouviram falar, mas é provável que nem os professores e nem eles jamais o tenham lido. Mas, para não irmos muito longe nem perdermos o foco, o empréstimo a juros é tratado pelo direito romano na Lei das XII Tábuas. Algum marceneiro jurídico que se mostrar interessado em fazer a sua leitura tem todo o direito. Do nosso lado vamos passar ao largo.
O que os juros têm a ver com as rolhas é que eles também flutuam para cima e para baixo, em movimentos complexos que resultam de diversos fatores, os quais os entendidos chamam de spread (bancário, quando que empresta o dinheiro é um banco). De acordo com a teoria econômica, quando se trata de um mercado livre, não é o banco o responsável pela oscilação dos juros. De modo simples, eles apenas contabilizam a junção dos diversos fatores que operam sobre o dinheiro emprestado para o fim de fixaram a taxa a ser aplicada a determinada operação de crédito.
Um ponto importante a ser relevado é que não existem empréstimos gêmeos, especialmente do tipo univitelinos, que implica em irmãos idênticos. Cada operação de empréstimo é uma individualidade financeira e, portanto, o juro correspondente será marcado para cada situação em particular1. Daí que - como confusão generalizada praticada no meio jurídico desavisado - não existe uma taxa média objetiva de juros que possa ser aplicada indistintamente pelo julgador. A tal taxa média que, para nós desavisadamente o Banco Central do Brasil - BCB - divulga em seu site não passa de uma média da média. Ou seja, não quer dizer nada. Qualquer um pode tirar uma média como essa. Por exemplo, o Zezinho come toda a comida do seu prato; o Juca somente dois terços; e o Geraldinho somente um terço. Somando-se os fatores, - nós temos 3 pessoas que comem no total nove terços e que, portanto, a média do que eles comem é de nove terços do Zezinho; dois terços do Juca; e um terço do Geraldinho, do que resulta um total de quinze terços. Assim, a média, portanto, é de cinco terços por comensal, quantidade de comida que, então, deve ser colocada no prato de cada um.
Acompanharam? Nem eu. Mas essa é a tal taxa média do mercado. Muito cientifico, como estamos percebendo.
Para que possamos compreender a flutuação dos juros e sua parecença com as rolhas, vamos pensar em termos de spread bancário, ou seja, a diferença entre o que o banco cobra para quem toma dinheiro emprestado e o que o banco paga para quem lhe empresta dinheiro. Anote-se que o spread não é um ente monocelular. Ele é formado por diversas células que interagem umas com as outras, a saber, o custo da operação, os depósitos compulsórios, os impostos, a inadimplência e a margem líquida (ou resíduo); etc.
O custo operacional dos bancos é extremamente elevado, dada a natureza da sua atividade, que depende de um aparelhamento sofisticado, do qual a informática tem feito parte cada vez mais relevante, ressalvando-se o âmbito de sua atuação que é abrange todo o território nacional. Veja-se a evolução tão drástica quanto a esse aspecto. Até alguns anos no passado as agências físicas eram sumamente estratégicas para os bancos, o lugar para aonde necessariamente a clientela se exigia. Nos tempos recentes as
Parte dos recursos que os bancos têm no seu caixa deve ser encaminhado ao BCB a título de depósito compulsório com o fim duplo de ser instrumento de política monetária e de segurança. Não será discutida aqui a situação da Sra. Política Monetária, que anda muito estressada nesses tempos de pandemia, mas que tem apresentado um problema um pouco mais antigo que são as taxas de juros negativas2.
Os impostos que são devidos por todas as empresas privadas representam parte relevante do spread.
A inadimplência é o risco materializado. Toda operação de crédito apresenta uma arte de risco, maior ou menor, conforme o valor da operação, o tempo de sua duração, o perfil do devedor, a garantia que oferece. Muitas vezes la garantia soy jo, como acontece nos empréstimos consignados e ela costuma ser muito boa, principalmente quando se trata de funcionários públicos ou de aposentados, os quais têm uma renda certa. Quando se trata de operações de crédito com empresas, as garantias são de diversas espécies como avais, fianças, alienação fiduciária, hipotecas, etc.
É preciso falar um pouco mais sobre alguns aspectos relevantes inerentes ao risco bancário. O tempo é um fator importantíssimo porque as condições econômicas originais existentes ao tempo da operação podem mudar em relação ao devedor, tanto do ponto de vista particular como geral. Neste último caso a presente pandemia é um exemplo marcante ainda que, do ponto de vista jurídico, colocada no plano da incerteza, ela não poderia ter sido razoavelmente prevista. Mas a perda de uma safra em decorrência de falta de chuvas é capaz de levar um devedor à insolvência.
Um fator de risco ponderável na atividade bancária tem sido a incerteza gerada por decisões inesperadas do Judiciário. Inesperadas porque elas fogem ao padrão jurídico assente nos mercados, desviando-se daquilo que geralmente se espera em função de uma interpretação racional e ponderada das normas jurídicas aplicáveis e da natureza dos institutos jurídicos ligados às operações correspondentes. Isso tem se dado, v.g., no plano das garantias quando algumas delas até então consideradas seguras, são esvaziadas nos seus efeitos como resultado de interpretações dos tribunais fundadas em princípios abertos (função social dos contratos) e muitas vezes ideológicos (preservação da empresa tout court). Assim sendo, nesse plano de incerteza, parte da taxa de juros aplicadas às operações bancárias são afetadas pela incerteza jurídica. E o que é pior, a elevação de taxas de crédito não afetará somente aquele mesmo devedor que pretenda pleitear junto a um banco nova operação, mas afetará aquele mesmo mercado como um todo, por força de um efeito que os economistas chamam de externalidade negativa (que seria um tipo de contágio financeiro).
Os governos são outro fator de risco (político) por razões diversas (nós brasileiros que o digamos), entre elas a indevida intervenção no mercado financeiro, a par da adoção de políticas erráticas, que mudam a cada dia nos portões dos palácios. E como o mercado financeiro é do tipo global, o que acontece lá fora muitas vezes repercute aqui dentro, como foram os casos das crises de 2007/2008 e 2011. Pelo que se sabe, a política do panis et circenses quebrou as finanças de Roma, tendo gerado muitos efeitos nefastos. A ideia desse projeto segue na mesma linha, pois não há virtude econômica em sua concepção.
Uma explicação recorrente para as elevadas taxas de juros praticadas é a da ausência de competição no mercado financeiro dominado por poucos grandes bancos. Como resposta a essa dita realidade, o BCB tem criado condições para a abertura de outros tipos de instituições financeiras (as fintechs), mas ainda não se sabe o quanto de resultado essas medidas terão produzido (ou produziriam), pois o período de tempo de sua atividade é relativamente curto e foi também afetado pela pandemia. Mas uma coisa é certa, seria uma quantidade maior de empresas financeiras a disputar o mesmo bolo da oferta de recursos, que somente cresceria, por sua vez, pelo crescimento da economia. Daí que para conseguir manter a sua fatia do bolo para quem já é comensal ou para pegar uma fatia nova para que está chegando, seria necessário aumentar a remuneração dos investidores, o que automaticamente se refletiria nas taxas de juros cobradas dos tomadores de empréstimo, em um círculo vicioso.
Esse arrazoado é levado a demonstrar que os juros têm a sua lógica econômica a ser protegida pelo direito e não como se fazia no direito canônico medieval, estabelecer que o dinheiro era estéril e que, portanto, não produzia filhos (os próprios juros). E essa brilhante afirmação econômica varou séculos, tendo chegado ao nosso direito pela chamada Lei da Usura (Dec. 22.626/1933 - que era lei ordinária sob o aspecto formal), figurado por um pouco no art. 192 da CF/1988 e presente em termos no CC/2002.
Vamos a outros aspectos, que os promitentes legisladores desconhecem em relação ao cartão de crédito e ao cheque especial. Um deles é a história do arqueiro que atirou no que viu e matou o que não viu. Haverá no final do túnel um aumento dos juros e não o contrário. Isto porque se a tal lei for aprovada, não haverá luz no final da travessia, mas uma parede de concreto bem reforçada.
Veja-se que parte dos usuários do cartão de crédito utilizam o parcelamento, pagando a fatura à vista e, portanto, sem juros, a não ser a taxa do cartão. Não nos esqueçamos também que geralmente o vendedor não dá desconto ou ele não é significativo para o pagamento à vista (no débito). Mesmo porque o usuário muitas vezes faz uma compra de valor mais elevado precisamente porque tem a opção do parcelamento. O cheque especial, por sua vez, apresenta um caráter de conveniência e de emergência, exercendo um papel relevante no consumo por impulso, próprio do comércio varejista3. Ora, o tabelamento dos juros reduzirá a oferta de crédito, do que resultará a redução do consumo e a recuperação da economia. Justamente o oposto que essa medida pretenderia alcançar. A direção da flecha a levaria a pegar uma vítima inocente.
Um aspecto interessante relacionado aos juros (que deveria ser tratado pela medicina psiquiátrica) é que eles afetam sistematicamente o cérebro de legisladores e de governantes os quais, imbuídos de uma doença chamada voluntarismo, pretendem (não só pretendem, como muitas vezes têm feito mesmo isso) violar as leis econômicas, forçando-as a entrar em camisas- de-força via tabelamento. Os efeitos sarneysianos dessas medidas são os de desarranjo do mercado financeiro e da fraude. Quando se trata de fugir a um tabelamento de juros imposto por lei eu quase seria capaz de afirmar que se trataria de legítima defesa para o fim de se preservar a atividade. Isto porque, no limite, no final da ópera todos teriam morrido (personagens, roteirista, autor, orquestra, coro lírico, etc.). E para que assim não acontecesse, o Tesouro (evitando-se a quebra do mercado e junto com ele de toda a economia) teria de bancar a conta, endossando-a para nós outros, alegres contribuintes.
Tudo o que foi exposto até aqui serve para mostrar a sandice do tabelamento das taxas do cheque especial e do empréstimo consignado, objeto de um projeto de lei em andamento. O aspecto social é relevante, sem dúvida alguma, mas como vimos, tratar-se-á de uma intromissão indevida - mais uma vez - na racionalidade indevida do sistema de crédito que, certamente, apresentará externalidades negativas e efeitos de segunda ordem, levando-se ao aumento generalizado das taxas de juros de outras operações e, mesmo, do seu corte em maior ou em menor intensidade.
Não me cabe ensinar economia ao legislador, mas essa história é velha de séculos e o seu resultado foi sempre o mesmo, deu errado. O momento é de se pensar em transferência efetiva de renda para as pessoas e empresas necessitadas, deixando-se o mercado financeiro funcionar de forma livre.
Veja-se que uma das razões presentes no aludido projeto de lei é a de que, encontrando-se toda a economia em crise como fruto da pandemia, os bancos também deveriam dar a sua parte de contribuição para que a situação fique menos traumática. Vamos lá. Como é que eles fariam? A única fonte de recursos para tal finalidade seria a margem líquida ou no resíduo, de onde é formado o seu lucro, parte a ser distribuído aos acionistas, parte destinada a formar reservas de segurança, inclusive aumentos capital (e em muitos casos o BCB assim determina em termos de exigências de capital mínimo).
Ora, o dinheiro que os bancos aplicam não é deles, é dos depositantes e investidores. Os bancos são intermediários financeiros. Dessa forma, o tabelamento dos juros dessas operações afetará a segurança e o rendimento das operações financeiras e se o volume das operações favorecidas for muito elevado, o reflexo na segurança dos bancos poderá ser muito forte, o que não é nada bom para o mercado financeiro e para a economia em geral.
Eu não sei se o autor desse projeto acredita mesmo que ele é uma solução para o problema ou se somente está jogando para a torcida. Espero que não passe e que as rolhas dos juros flutuem segundo as forças econômicas e não por mágicas legislativas.
E o dólar? Esse é uma rolha que navega no mar mais revolto que se possa conhecer. Ele vai desde as profundezas abissais até a estrela mais próxima e isso acontece mais depressa do que a velocidade da luz. Não cabe aqui discutir profundamente essa moeda planetária, mas devemos ter em conta que os juros refletem também a flutuação do dólar, rolhas que se comunicam entre si. Com dólar alto, muitas operações financeiras internas são afetadas. Isto ocorre, por exemplo, quando é feita captação de recursos no mercado internacional para o fim do financiamento de empreendimentos no país. Internalizada a importância levantada lá fora pela conversão em real segundo a cotação do dia, no vencimento, caso o preço do dólar tenha subido, a quantidade de reais para pagar o principal e os juros será evidentemente muito maior. Azar do devedor, especialmente se ele não se preveniu de alguma forma. Este assunto fica para outra oportunidade.
Vamos ver se nosso sistema financeiro passará por mais essa tentativa de sua deturpação, devendo os governantes e o legislador buscar soluções fundadas em princípios racionais, ainda que seja o caso de se jogar dinheiro na economia a título de um gigantesco Plano Marshall, cujo custo não será nada palatável, mas ao menos será de causa e efeito mais equilibrados, desde que no plano fiscal o reequilíbrio do caixa seja feito com uma adequada distribuição das capacidades e responsabilidades cabíveis.
1 Do ponto de vista prático e de forma a não onerar os custos de transação, operações financeiras de massa são consideradas economicamente homogêneas com reflexos pertinentes do direito, especialmente naquele voltado para o consumidor.
2 Por exemplo, no Japão, os bancos entregam recursos financeiros ao banco central local e quando os retiram, seu saldo é menor do que o da data do depósito. Dessa forma aquela vetusta senhora anda meio sem saber o que fazer para o efeito de cuidar da estabilidade da moeda, mormente quando ela á pressionada também a ajudar a aumentar o nível de emprego, o que a coloca em sua situação inteiramente hamletiana.
3 Cf. Cláudia Safatle, in "Instituições alertam que pauta bomba reduzirá oferta de crédito na crise", Valor Econômico de 18.05.20.
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*Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa é sócio de Duclerc Verçosa Advogados Associados. Professor Sênior do Departamento de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP.