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Coronavírus e os crimes contra a organização do trabalho

A despeito das recentes alterações legislativas, é aconselhável que as empresas busquem soluções através de acordos entre empregadores e empregados, muitas vezes encontrando meios alternativos de modelo de trabalho, como o teletrabalho.

quarta-feira, 20 de maio de 2020

Atualizado às 11:01

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As relações de trabalho e as novas alterações

Em tempos de quarentena decorrente da covid-19, muito se discute a respeito das relações de trabalho e dos impactos que esse cenário atípico causará para as partes envolvidas e para a economia como um todo.

No contexto da declaração de pandemia pela Organização Mundial de Saúde e do reconhecimento de estado de calamidade pública pelo Congresso Nacional (por meio do decreto legislativo 6, de 20 de março de 20201), no último dia 23 de março, foi publicada a medida provisória 927,2 que trouxe disposições acerca das medidas trabalhistas que poderão ser adotadas para o enfrentamento da emergência de saúde pública provocada pelo coronavírus (covid-19). Dias depois, em 1º de abril do corrente ano, foi publicada a medida provisória 936,3 trazendo novas disposições sobre o mesmo tema.

Dentre as novidades trazidas pela MP 927, está a possibilidade de empregado e empregador celebrarem acordo individual escrito, a fim de garantir a permanência do vínculo empregatício, que terá preponderância sobre os demais instrumentos normativos, legais e negociais, respeitados os limites estabelecidos na Constituição Federal.

Em outras palavras, a medida provisória trouxe a possibilidade de ser firmado um acordo entre empregado e empregador, que possa, inclusive, conter disposições contrárias à legislação trabalhista, ou a acordos e convenções coletivas, desde que observado o disposto no texto Constitucional e que tal acordo seja firmado no intuito de manter o vínculo empregatício.

Entre outras opções previstas pela medida provisória 927, estão o teletrabalho, a concessão de férias antecipadas ou coletivas, o uso do banco de horas e a antecipação de feriados.

A medida provisória 936, por sua vez, instituiu o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda, a ser pago em casos de redução proporcional de jornada de trabalho e de salário ou de suspensão temporária do contrato de trabalho.

De acordo com a nova regra, poderá o empregador acordar a redução proporcional da jornada de trabalho e de salário de seus empregados, por até noventa dias, ou a suspensão temporária do contrato de trabalho pelo prazo máximo de sessenta dias, que poderá ser fracionado em até dois períodos de trinta dias.

Implicações penais

No âmbito do Direito Penal, as relações de trabalho também podem e devem ser tema de discussão, uma vez que a legislação aborda algumas ocasiões em que a condutas tomadas podem configurar crime. Em outras palavras, com o intuito de tutelar os direitos trabalhistas, o legislador levou em consideração a gravidade de certas condutas para a sociedade a ponto de punir de forma mais severa seus autores, considerando-se também o ilícito penal.

O Código Penal, em sua parte especial, prevê as infrações contra a organização do trabalho, visando a proteger a liberdade individual do trabalhador e a própria organização como um todo. Afinal, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa são um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, previstos expressamente na Constituição Federal.

Para ilustrar esse cenário, contextualizando com a atual situação e com as novas leis trazidas, serão abordados a seguir alguns pontos e questionamentos pertinentes que podem ser objeto de preocupação de qualquer cidadão quanto às condutas a serem tomadas no aspecto de seu negócio, ofício ou ocupação, que envolvam uma relação de trabalho e que possam trazer consequências criminais.

Posso exigir que meu empregado trabalhe nesse período?

O artigo 197, inciso I, do Código Penal dispõe ser crime de atentado contra a liberdade de trabalho a conduta de constranger alguém, mediante o emprego de violência ou grave ameaça, a trabalhar (ou não) durante certo período ou em determinados dias, sob pena de detenção de 1 mês a 1 ano e multa, além da pena correspondente à violência realizada.

O objetivo da norma é justamente tutelar a liberdade individual, seja do empregado, seja do empregador. O tipo, nada mais é, do que um crime de constrangimento ilegal, ainda que específico quanto às relações de trabalho.

Assim, mesmo em tempos de pandemia, não pode o empregador se utilizar de violência ou de grave ameaça para forçar o empregado a trabalhar (ou a não trabalhar) durante esse período. A possibilidade trazida pela medida provisória 927, de ser firmado um pacto entre as partes, que possa, inclusive, contrariar o disposto na legislação trabalhista, não abarca, no entanto, o emprego de violência ou grave ameaça.

Grave ameaça é qualquer constrangimento moral de uma parte a outra, de causar um dano a um bem jurídico, no intuito de impor a sua vontade. Segundo o entendimento da doutrina, pode ser caracterizada pela violência moral, a promessa de fazer mal à vítima, intimidando-a, atemorizando-a, viciando sua vontade de modo a evitar uma eventual reação4.

Aqui, obviamente, não se pode conceber a possibilidade de demissão àquele que se recusa a laborar como uma grave ameaça, pois a efetiva prestação de serviços de natureza não eventual faz parte do próprio conceito de empregado.

Ainda que alguns serviços estejam temporariamente suspensos, como se exporá a frente, outros são considerados essenciais. No caso de uma rede de supermercados, por exemplo, a exigência de comparecimento presencial, sob pena de desconstituição do vínculo empregatício não pode ser tida como uma grave ameaça a constituir o crime do artigo 197, inciso I, do Código Penal.

Por outro lado, não cabe ao empregador, por exemplo, exigir que o empregado trabalhe, sob pena de incendiar sua casa, ou comparecer armado à residência do empregado, exigindo que esse se apresente ao trabalho.

Podem me obrigar a fechar o meu estabelecimento?

O Governador do Estado de São Paulo promulgou o decreto 64.881, decretando medida de quarentena no Estado, período no qual ficam suspensos o atendimento presencial ao público em estabelecimentos comerciais e prestadores de serviços e o consumo local em bares, restaurantes, padarias e supermercados. A regra deixa de ser aplicada apenas para estabelecimentos que tenham por objeto atividades essenciais, tidas essas como de saúde, alimentação (aqui compreendidos supermercados e congêneres), abastecimento, segurança e comunicação social.

O artigo 197 do Código Penal, em seu inciso II, tipifica a conduta de constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a abrir ou fechar o seu estabelecimento de trabalho, ou a participar de parede ou paralisação de atividade econômica, sob pena de detenção de 3 meses a 1 ano e multa, além da pena correspondente à violência.

O artigo 268 do Código Penal, por sua vez, estipula ser criminosa a conduta de infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa.

Assim, uma vez que o decreto estadual visa a evitar a possível contaminação ou propagação do coronavírus, está o poder público legitimado a suspender as atividades consideradas não essenciais durante esse período, incidindo nas penas do artigo 268 quem infringir a referida regra.

Cabe salientar, contudo, que cabe apenas ao poder público estabelecer regras de medida sanitária preventiva. Não cabe, por exemplo, aos Sindicatos, decidir quanto à abertura ou fechamento dos estabelecimentos, em caso de já haver uma diretriz nesse sentido. Podem esses realizar acordos,5 com propostas de redução de efetivo ou aumento de tele trabalho, mas não constranger os empregadores a fechar seus estabelecimentos. Se, para tanto, inclusive, forem empregadas violência ou grave ameaça, estar-se-á diante da figura típica prevista no artigo 197, II, do Código Penal.

Ainda, vale mencionar que o Supremo Tribunal Federal decidiu, na ADIn 6.363 que, os acordos individuais celebrados entre o empregador e o empregado, previstos na medida provisória n. 936, não dependem, durante esse período, do crivo sindicalista para validação.

No ponto do dispositivo penal, cabe frisar que, tanto o crime do inciso I, quanto o crime do inciso II, poderia ser imputado a sindicalistas que se utilizassem de ameaças ou violência para interferir nas tratativas entre empregadores e empregados quanto à paralização ou não das atividades, ainda mais com sua participação reduzida por força da decisão do STF.

Sou obrigado a trabalhar?

O art. 200 do Código Penal tipifica a conduta de participar de suspensão ou abandono coletivo de trabalho, praticando violência contra pessoa ou contra coisa. Aqui, mais uma vez, exige-se o emprego de violência, podendo essa ser praticada tanto contra alguém, quanto contra um bem. O parágrafo único do referido artigo estabelece que para que seja configurado como "coletivo", o abandono tenha que ser de pelo menos três pessoas.6

Não é difícil se imaginar hipóteses em que, empregados, com temor de contágio, optem por simplesmente abandonar seus postos de trabalho. Tal conduta não pode ser tida como típica, salvo se esse abandono, em sendo de três ou mais pessoas, se der mediante o emprego de violência.

Diferente, no entanto, é a conduta prevista no artigo 201 do Código Penal, em que se pune a paralisação de trabalho de interesse coletivo. Nessa hipótese, por se tutelar com mais vigor a não interrupção de obra pública ou serviço de interesse coletivo, dispensa-se o emprego da violência, sendo típica a própria paralização.

Embora parte da doutrina entenda que o referido artigo foi revogado pela Lei de Greve, há notícias de um julgado da Justiça Federal do Rio Grande do Sul, que reconheceu ser crime a paralisação de atividade de interesse coletivo.7

No caso julgado, o presidente de um sindicato de transportes foi condenado por causar a paralização do serviço, causando danos à população. Em tempos de pandemia, poderia se pensar na hipótese de profissionais da saúde abandonarem, injustificadamente, seus postos de trabalho.

É evidente que o crime exige uma conduta dolosa. Ou seja, é necessária a vontade livre e consciente de praticar a conduta. Mas é necessário que, com a paralização, haja de fato a suspensão ou paralização do serviço (ou obra pública).

Por fim, outra conduta típica que se poderia cogitar em temos de covid-19 é prevista no artigo 203 do Código Penal, que prevê o crime de frustração de direito assegurado por lei trabalhista, mediante fraude ou violência, estabelecendo uma pena detenção de um ano a dois anos, e multa, além da pena correspondente à violência. Nesse caso, poderia se cogitar a hipótese de um empregador que, desesperado com a falta de mão de obra para a continuidade de suas atividades, impede o empregado de se desligar do trabalho mediante coação ou retenção de seus documentos.

Com relação à greve, cabe frisar que, embora seja um direito trabalhista, é preciso que preencha certos requisitos para ser considerada legal. Não pode haver a simples determinação de paralização das atividades por parte do sindicato, sob o argumento de que os trabalhadores estão expostos ao surto do novo coronavírus.8

E nos casos de suspeita de infecção por covid-19?

Situação A - funcionário liga para a empresa, alegando ter sintomas de covid-19, porém não consegue fazer o teste.

Situação B - funcionário sabe que um colega de trabalho ou seu empregador está em quarentena ou com suspeita de covid-19.

Posso ser obrigado a trabalhar ou obrigar meu funcionário a trabalhar?

Obrigar alguém a trabalhar em violação a determinação sanitária pode dar ensejo ao crime do art. 268 do Código Penal: "infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa". Isso porque, o sujeito a quem se determinou o isolamento não se impõe apenas o direito de ele não infectar outras pessoas, mas é razoável exigir que ele também não traga pessoas para o âmbito de risco de contração da doença.

Em linha com o que antecipamos em outro texto,9 é preciso, primeiro, verificar se os elementos do crime (decisão de autoridade pública, sobretudo) estão presentes; além disso, há outras circunstâncias que devem ser sopesadas. Um pai de família que contraia a doença provavelmente não consiga isolar-se de tal modo a excluir a esposa e/ou filhos, que compartilham uma mesma residência. Da mesma forma, há profissionais que não podem invocar o perigo como escusa, a exemplo dos profissionais de saúde.

Independente disso, há o tipo do artigo 132 do Código Penal, que chamamos de norma penal subsidiária: "expor a vida ou a saúde de outrem a perigo direto e iminente". Aquele que está infectado expõe a saúde, e potencialmente a vida, de terceiros, sem sombra de dúvidas.

Ocorre que muitos funcionários possivelmente se verão entre uma escolha de Sofia: perder o emprego, ou correr o risco de transmitir covid-19, ao irem trabalhar. Nesse caso, é possível, em tese, invocar-se duas figuras ao caso concreto: a) a da coação, que, em sendo irresistível, desloca a punibilidade para o coator (a resistível reduz a pena, apenas); e b) do estado de necessidade exculpante (inexigibilidade de conduta diversa), em que, de maneira muito sintética, os bens jurídicos sacrificados (exposição a perigo a saúde e vida de outrem), o foram, no caso concreto, toleráveis em face dos resguardados (manutenção de condições mínimas de sobrevivência).

Conclusão

Para evitar complicações penais, a despeito das recentes alterações legislativas, é aconselhável que as empresas busquem soluções através de acordos entre empregadores e empregados, muitas vezes encontrando meios alternativos de modelo de trabalho, como o teletrabalho, estando presente o fator consentimento para ambas as partes.

Diante do atual cenário de instabilidade e de graves riscos à saúde humana existentes pela pandemia, bem como de diversas determinações das autoridades governamentais, a empresa, ao tomar alguma medida, deve se atentar aos limites estabelecidos pela lei e a uma eventual conduta não extrapolar a ponto de configurar também um crime.

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1 Decreto Legislativo Federal  6, de 2020. Disponível clicando aqui

2 Medida Provisória 926, de 22 de março de 2020. Disponível clicando aqui

3 Medida Provisória 936, de 1 de abril de 2020. Disponível clicando aqui

4 PRADO, Luiz Régis. Curso de Direito Penal Brasileiro. Vol. 2. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais.  5ª ed. 2006, p. 418.

5 Sincomércio e sindicato dos empregados fazem acordo em meio à crise do coronavírus. G1, Tv Diário, Mogi das Cruzes e Suzano, 19 mar. 2020. Disponível clicando aqui

6 Nos termos do parágrafo único, artigo 200, do Código Penal: "Para que se considere coletivo o abandono de trabalho é indispensável o concurso de, pelo menos, três empregados."

7 JFRS: presidente do Sindimetrô é condenado por paralisação integral de transporte público em greve. Justiça Federal Seção Judiciária do Rio Grande do Sul, notícia, 9 ju. 2014. Disponível clicando aqui

8 Sindicato teme exposição ao coronavírus e decreta estado de greve para 40 mil em SP. Folha de São Paulo, Coronavírus, 22 mar. 2020. Disponível clicando aqui

9 TANGERINO, Davi; RODRIGUES, Gabriel Brezinski. O crime de infração de medida sanitária em uma epidemia de decretos. 1 abr. 2020.

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*Davi Tangerino é sócio do Davi Tangerino e Salo de Carvalho Advogados, doutor em Direito Penal pela USP e professor da FGV-SP e da Universidade do Estado do Rio de janeiro (Uerj).

*Patrícia Lopes Dannebrock Águedo é advogada no Davi Tangerino e Salo de Carvalho Advogados, pós-graduanda em Direito Penal Econômico pela FGV-SP e especialista em Direito Penal e Processual Penal pelo Instituto de Desenvolvimento Cultural (IDC).

*Felipe Gubernati Colloca é advogado no Davi Tangerino e Salo de Carvalho Advogados e graduado na Faculdade de Direito da Univerdidade Presbiteriana Mackenzie.

 

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