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A MP 966 é constitucional

Márcio Cammarosano e Márcio Alexandre G. F. Cammarosano

É compreensível eventual discordância quanto à oportunidade e conveniência da edição da MP 966, e de uma ou outra de suas disposições ou termos.

quarta-feira, 20 de maio de 2020

Atualizado às 08:51

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As reações à edição da MP 966/2020 foram instantâneas. No mesmo dia em que foi produzido, o ato da Presidência da República já soma duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade1, diversos requerimentos de parlamentares pela devolução em razão de "flagrante inconstitucionalidade"2, além da manifestação de destacados profissionais do Direito, entre autoridades e mesmo juristas consagrados.

A má recepção de alguns dispositivos do texto chega mesmo a surpreender, tendo em vista tratarem-se de normas jurídicas que, em sua maioria, já estão em vigor por força de outras produções legislativas, notadamente as alterações promovidas pela lei 13.655/18 na LINDB - Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (decreto-lei 4.657/42), e seu decreto regulamentar 9.830/19, de sorte que a MP 966/20 em verdade traz poucas novidades.

Mas tendo em vista a intensidade das críticas, e a relevância das opiniões, necessário, portanto, proceder a considerações a respeito desses apontamentos a fim de contribuir para o debate em torno do assunto da responsabilização de agentes públicos nestes tempos de pandemia causada pelo covid-19.

De início é importante ressaltar que a responsabilização dos agentes públicos por atos excepcionais praticados em razão da pandemia já despertava a preocupação de inúmeros profissionais, tendo sido este tema objeto de diversas conferências, eventos e produções acadêmicas nos últimos dois meses. Portanto, não se trata de tema irrelevante ou inoportuno, pelo contrário.

Tampouco há de se cogitar ausência de urgência no tema, tendo em vista que os agentes públicos estão sendo instados a tomar decisões que podem custar a vida ou o patrimônio das pessoas, além do Estado, todos os dias desde o início da pandemia, sendo que a incerteza e a insegurança estão presentes em todos os momentos.

Sendo assim, refuta-se de plano uma eventual inconstitucionalidade formal por ausência de urgência da matéria.

Também não cabe o argumento de que com a edição da MP estaria prejudicada a necessária discussão da matéria de forma democrática nas casas legislativas, uma vez que esta fase do processo legislativo, na sistemática das medidas provisórias, não é suprimida, mas diferida restando, portanto, assegurados referidos debates.

Além disso, os arts. 1º, caput3, e 3º, incisos I e IV4 da MP 966 são meras reproduções dos arts. 28 e 22, caput e §1º, respectivamente, da lei 13.655/18, lei esta que obedeceu o trâmite normal do processo legislativo que comportou já as discussões necessárias no âmbito do Poder Legislativo.

Outras disposições da MP, inclusive, constituem apenas decorrências lógicas destes mesmos dispositivos, como é o caso dos parágrafos 1º e 2º do art. 1º5

Logo, o que pode ser realmente entendido como novidade, e que carece do competente debate perante o Poder Legislativo (ainda em tempo de se realizar), são as disposições do artigo 2º, que trata da definição de "erro grosseiro"6, e os incisos II, III e V do art. 3º7, que, em parte, são reproduções do que consta no art. 12 do decreto regulamentar 9.830/19, em vigor desde 11 de junho de 2019.

Logo, não espantam referidas disposições, nem induzem eventual inconstitucionalidade formal da MP, ao menos pelos argumentos até agora formulados.

Mas não faltaram também apontamentos quanto a falhas e possíveis inconstitucionalidades materiais no caso, que merecem considerações.

O primeiro deles é que o termo "agentes públicos" no art. 1º da MP 966 seria termo "vago" e que, portanto, o rol de profissionais e de condutas abarcados pela MP seria extenso demais. Não é a nossa opinião.

caput do art. 1º, quando lido em conjunto com os seus dois incisos deixa bastante claro que apenas os agentes públicos imbuídos da competência para praticar atos de (I) "enfrentamento da emergência de saúde pública decorrente da pandemia da covid-19" e (II) "combate aos efeitos econômicos e sociais decorrentes da pandemia da covid-19" é que estão abrangidos pelas disposições, e para atos dirigidos à essas duas finalidades, apenas.

Por outro lado, nem sempre é possível evitar o uso, na elaboração de leis, de termos ou palavras dotadas de alguma fluidez significativa, de maior grau de abertura denotativa. Basta recordarmos da definição de legítima defesa como causa excludente de antijuridicidade, que se vale de termos vagos tais como "injusta agressão", "uso moderado de meios necessários", e outras mais.

Em matéria cível e administrativa, especialmente de natureza sancionatória, é frequente o uso de palavras que expressam conceitos vagos, como "boa-fé", "falta grave", "moralidade administrativa", "interesse público" e muitos outros.

Nessa ordem de raciocínio é de causar espécie investidas até mesmo de estudiosos e operadores do direito quanto às expressões "erro grosseiro" e/ou "culpa grave", de largo uso pelas leis, doutrina e jurisprudência, olvidando que nada soa mais vago como certos princípios decantados em prosa e verso, como os da eficiência, razoabilidade, modicidade de tarifas e tantos outros que enfadonho seria enumerar.

Eliminem-se da Constituição e das leis palavras ou termos que expressam conceitos vagos, e muito pouco restará, ainda que em razão mesmo de impostergável exigência de segurança jurídica. Quanto mais severa a sanção a ser cominada, mais fechados devem ser os tipos legais descritivos de comportamentos qualificados como ilícitos.

Já em sentido contrário, justifica-se menor rigor exatamente no elencar causas excludentes de antijuridicidade, de culpabilidade, sendo admissíveis palavras ou expressões como "inexigibilidade de outro comportamento", "princípio da insignificância" e "erro escusável".

Não por outra razão é Bobbio mesmo quem chega a falar em "direito ao erro de boa fé", consideradas obviamente as variadas circunstâncias de cada caso.

Outro apontamento é o de que essas disposições seriam uma espécie de permissivo para a prestação de serviços de baixa qualidade, ou de negligência com o patrimônio público, o que também não concordamos.

As normas gerais sobre licitações e contratos administrativos da lei 8.666/93, do pregão (lei 10.520/02), e outras disposições aplicáveis, inclusive no tocante à dispensa e inexigibilidade de licitação, continuam hígidas, mesmo após a entrada em vigor da lei 13.979/20. Os princípios da motivação, da finalidade, da economicidade, da razoabilidade, da proporcionalidade, da eficiência, e todos os demais relativos à boa prestação dos serviços públicos também não sofrem alteração com a entrada em vigor da MP.

Com a edição da MP os atos praticados de má-fé, com o intuito de burlar a lei ou os princípios da administração pública, para satisfazer interesses escusos, bem como o erro grosseiro, entendido este como o "manifesto, evidente e inescusável praticado com culpa grave, caracterizado por ação ou omissão com elevado grau de negligência, imprudência ou imperícia" continuam a ser regularmente reprimidos, com todas as consequências que a lei e a Constituição preveem para o caso.

Apenas o erro cometido de boa-fé é que, com justiça, não implicará a aplicação de penalidades ao seu autor, e é isso o que vimos sustentando há bastante tempo em matéria de improbidade administrativa.

O conceito de probidade, como se sabe, é intrinsicamente ligado ao de honestidade. E até por questão de lógica não faz sentido penalizar alguém por ato de desonestidade por este ter errado enquanto tentava acertar. Afinal de contas, é impossível ser desonesto "sem querer". Muitos autores sustentam (e compartilhamos desse entendimento), que a "improbidade administrativa na modalidade culposa é uma contradictio in terminis".

Com efeito, a intenção da MP é nitidamente diferenciar os atos de má-fé, praticados com o intuito de atender interesses escusos, além dos praticados com culpa grave, caracterizados pela mais absoluta negligência, cujos resultados danosos poderiam ter sido evitados com o mínimo de diligência, daqueles em que, embora o agente público tenha sido diligente, mesmo assim incide em erro que a maioria de nós, se no lugar dele estivéssemos, poderíamos também incidir.

E é justo que assim o seja, pois o Direito costuma mesmo diferenciar o tratamento jurídico que se dá aos casos dolosos ou culposos.

Não se verifica, assim, o advento da "irresponsabilidade". Não se está, com a MP 966, inaugurando uma era em que impera o superfaturamento, que se toleram os desvios, ou que se premia a fraude. Como se vê, nenhum destes comportamentos, o superfaturamento, o desvio, e a fraude, assim como muitos outros reprimidos pelo ordenamento jurídico, podem ser realmente realizados por alguém inspirado pela boa-fé e que atua com diligência.

O que se busca com edição da MP é diluir a responsabilidade do agente público honesto que navega atualmente nas águas da incerteza e da insegurança.

Vale dizer que os agentes públicos encarregados de tomar decisões, assim como o resto de nós, recebem uma quantidade enorme de informações muitas vezes contraditórias. As orientações técnicas são atualizadas praticamente toda semana, quando não de um dia para o outro.

O mesmo se pode dizer das informações a respeito dos sintomas da doença, as formas de contágio, a intensidade e as taxas de mortalidade, das medidas de distanciamento ou isolamento social, enfim, há incertezas por todos os lados.

Por outro lado, em meio a tantas informações incertas, os agentes públicos também têm que lidar muitas vezes com a falta de informações. A final de contas qual o preço de mercado de um item essencial para enfrentamento da pandemia em um ambiente, ao mesmo tempo, de escassez e de grande competitividade? A ausência desses bens pode inclusive custar numerosas vidas, e não há tempo muitas vezes para proceder a pesquisas de mercado, ou não há margem de negociação, sob pena de perda da oportunidade de adquirir estes bens.

Nesse cenário, se o agente público perde a oportunidade de uma compra, pode ser responsabilizado por omissão. E se não perde a oportunidade pode ser responsabilizado por ter gastado demais, ou qualquer outro vício formal que, procurando com lupa, pode-se encontrar.

Ora, é isso evidentemente que se quer evitar com a introdução dos três artigos da MP.

A MP 966, portanto, exerce papel importante de oferecer tranquilidade e paz de espírito mínimos para que o agente público honesto possa tomar decisões preocupado apenas em satisfazer da melhor forma possível o interesse público.

Com efeito, a proposta de punição destes comportamentos honestos só premia e fomenta a desonestidade, desequilibrando a balança e fazendo com que seja mais vantajoso desviar e fraudar a fim de que o agente público tenha meios de responder por todas as sanções que certamente lhe serão impostas no futuro sem prejuízo do seu patrimônio legitimamente conquistado.

A segurança para o administrador honesto, ao contrário do que se tem comentado, é fundamental para a satisfação do interesse público, especialmente nestes dias que estamos vivendo.

E nem se diga que a MP em comento estaria em conflito com o art. 37, §6º da Constituição da República, que, prescrevendo responsabilidade civil objetiva de pessoas jurídicas de direito público, e de direito privado prestadoras de serviço público, assegura o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.

Os conceitos de dolo e culpa pertencem à teoria geral do direito e constam da Constituição da República, mas esta não os define. E não obstante sejam dotados de um núcleo significativo, que ao legislador ordinário não é dado restringir ou alargar desarrazoadamente, também não está ele impedido de especificar as modalidades de dolo e culpa e, modelando-as, contemplar hipóteses de exclusão de culpabilidade no sentido amplo da expressão. E é exatamente disso que se ocupou tanto a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, em seu art.28, como a MP 966.

É compreensível eventual discordância quanto à oportunidade e conveniência da edição da MP 966, e de uma ou outra de suas disposições ou termos. Consideramos inclusive desnecessárias as reproduções da LINDB em vigor, uma vez que suscita rediscussão de matéria vencida. Mas inconstitucionalidade, a nosso ver, é vicio de que definitivamente não padece.

______________

1 Propostas pelos partidos Cidadania e Rede Sustentabilidade.

3 Os agentes públicos somente poderão ser responsabilizados nas esferas civil e administrativa se agirem ou se omitirem com dolo ou erro grosseiro pela prática de atos relacionados, direta ou indiretamente, com as medidas de: (...)

4 Art. 3º  Na aferição da ocorrência do erro grosseiro serão considerados:

I - os obstáculos e as dificuldades reais do agente público; (...)

IV - as circunstâncias práticas que houverem imposto, limitado ou condicionado a ação ou a omissão do agente público;

5 § 1º  A responsabilização pela opinião técnica não se estenderá de forma automática ao decisor que a houver adotado como fundamento de decidir e somente se configurará:

I - se estiverem presentes elementos suficientes para o decisor aferir o dolo ou o erro grosseiro da opinião técnica; ou

II - se houver conluio entre os agentes.

§ 2º  O mero nexo de causalidade entre a conduta e o resultado danoso não implica responsabilização do agente público.

6 Art. 2º  Para fins do disposto nesta Medida Provisória, considera-se erro grosseiro o erro manifesto, evidente e inescusável praticado com culpa grave, caracterizado por ação ou omissão com elevado grau de negligência, imprudência ou imperícia.

7 Art. 3º  Na aferição da ocorrência do erro grosseiro serão considerados:

(...)

II - a complexidade da matéria e das atribuições exercidas pelo agente público;

III - a circunstância de incompletude de informações na situação de urgência ou emergência;

(...)

V - o contexto de incerteza acerca das medidas mais adequadas para enfrentamento da pandemia da covid-19 e das suas consequências, inclusive as econômicas.

______________

*Márcio Cammarosano é mestre e doutor em Direito do Estado pela PUC/SP, professor de Direito Administrativo da Graduação e Pós-Graduação na PUC/SP. Ex-Presidente da Comissão de Direito Administrativo do Conselho Federal da OAB. Ex-Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Administrativo - IBDA. Advogado do escritório Cammarosano Advogados Associados.

*Márcio Alexandre G. F. Cammarosano é mestre em Direito do Estado pela PUC/SP. Professor no Curso de Especialização em Direito Administratico da COGEAE/PUC-SP. Advogado do escritório Cammarosano Advogados Associados.

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