Elemento subjetivo e a medida provisória 966/20
As disposições da medida provisória aparentam mais ser uma tentativa de conforto legislativo do que algo novo. Gestor público que tem risco, tem medo.
sexta-feira, 15 de maio de 2020
Atualizado às 10:58
A aplicação de punições no Direito Administrativo sancionatório remete, por definição legal, aos mecanismos fundados na responsabilidade subjetiva: a necessária observância de culpa ou dolo do agente que praticar eventual ato sob escrutínio. A doutrina1 e a jurisprudência2 não divergem sobre o tema. Analisando-se os tipos de atos ímprobos previstos pela lei 8.429/92 nos seus artigos 9°, 10 e 11 (respectivamente: enriquecimento ilícito, prejuízo ao erário e violação aos princípios da Administração Pública), conclui-se que sempre deve ser observado a presença do elemento subjetivo.
No nosso entendimento, e expomos abaixo o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça, se partirmos da premissa de que é possível o ato ímprobo por conduta culposa, ela há de se revelar, ao menos, de especial gravidade (culpa qualificada).
Ou seja, deve-se observar não somente a presença do elemento culpa, mas sobretudo a sua gradação. Em verdade, mesmo no caso do art. 10 da lei, não basta a simples culpa, devendo ser afastada a aplicação de sanções diante de condutas culposas leves ou levíssimas.3
Por este motivo é reiterada a afirmação de que a ação de improbidade não alcança o administrador inábil, mas apenas o desonesto, como foi a ratio decidendi no REsp 213.994/MG, rel. min. Garcia Vieira, do Superior Tribunal de Justiça.
O mesmo STJ, em julgado recente4 sob a relatoria do ministro Mauro Campbell, decidiu que, para a configuração dos atos de improbidade que acarretam enriquecimento ilícito (artigo 9º da lei 8.429/92), causam prejuízo ao erário (artigo 10) e atentam contra os princípios da administração pública (artigo 11), é indispensável a presença do elemento subjetivo - em regra, conduta dolosa para todos os tipos e, excepcionalmente, culpa grave no caso do artigo 10. Assim, não é admitida a atribuição de responsabilidade objetiva na ação de improbidade.
Para a 2ª Turma, como deliberado no referido recurso especial, ações culposas não configuram o elemento subjetivo capaz de configurar ato de improbidade nos termos da legislação, não se aceitando a imputação objetiva. O ministro asseverou, por exemplo, que "entendimento diverso significaria dizer que eventual desvio praticado por comissão licitatória, de qualquer órgão público, exigiria a fiscalização direta do responsável pela nomeação, sob pena de responder por eventual ímprobo, sem a necessidade de qualquer elemento volitivo ou participação na prática da ilegalidade qualificada".
Não à toa, a reforma recente à Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB - decreto-lei 4.647, de 4 de setembro de 1942), positivou em seu art. 28 o destaque no sentido de que "o agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro" e em seu art. 22 o entendimento de que "na interpretação de normas sobre gestão pública, serão considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados".
A edição da medida provisória 966, de 13 de maio de 2020, ao dispor, no contexto da pandemia da covid-19 que os "agentes públicos somente poderão ser responsabilizados nas esferas civil e administrativa se agirem ou se omitirem com dolo ou erro grosseiro" pareceria, a primeira vista, estar relativamente harmonizada com o que já se vem sendo discutido no âmbito do Direito Administrativo Sancionatório (com as devidas ressalvas no que diz respeito ao ressarcimento ao erário5).
Contudo, o caráter extremamente genérico das previsões trazidas pela MP 966/20, antes de trazer mais segurança para os agentes públicos, acaba ampliando ainda mais a insegurança jurídica na sua atuação, e pode aumentar o chamado "apagão das canetas"6 no período - crítica que já era feita pela doutrina em relação à própria LINDB7.
Vale lembrar, aqui, que a razão adotada para o veto ao §1º do artigo 28 da LINDB foi exatamente que o dispositivo proposto aprovado pelo Congresso Nacional admitiria "a desconsideração de responsabilidade do agente público por decisão ou opinião baseada em interpretação jurisprudencial ou doutrinária não pacificada ou mesmo minoritária", e que "a propositura atribui[ria] discricionariedade ao administrado em agir com base em sua própria convicção, o que se traduz em insegurança jurídica".
A MP 966/20 fez exatamente isso. Ao prever que o erro grosseiro é o "erro manifesto, evidente e inescusável praticado com culpa grave, caracterizado por ação ou omissão com elevado grau de negligência, imprudência ou imperícia", e que devem ser considerados os critérios extremamente genéricos elencados em seu artigo 3º8, a norma, antes de proteger os agentes públicos, acaba por aumentar a insegurança jurídica para os servidores e agentes políticos que estão diretamente ligados ao combate da pandemia, deixando-os à mercê de uma interpretação vaga dos dispositivos pelos órgãos de controle.
A tomada de decisões importantes, como a edição de uma medida provisória tão relevante não pode ser feita de forma tão açodada, sem pensar (com o perdão do trocadilho) nas "consequências práticas" dela advindas. A redação também afeta agente particulares, já que não há responsabilização isolada de agente privado sem a participação de um agente público.9
Estamos, uma vez mais, diante de um "solublema" (na feliz expressão de Irene Nohara10, uma solução legislativa que acaba trazendo mais problemas na sua aplicação) que seguramente levará à intensa judicialização da questão, como já iniciado no dia de sua publicação11, o que amplia ainda mais o cenário de insegurança vivenciado pelos agentes públicos.
A vagueza desta legislação tenderá a ser questionada no âmbito do Supremo Tribunal Federal ("STF"), parecendo que essa norma, em uma primeira análise, não resistirá a um exame de constitucionalidade. A crítica é ainda mais enfática em virtude da maneira como a presidência da República vem lidando com a crise em questão, razão pela qual diversos partidos políticos já informaram que ajuizarão ações no STF. A referida normativa aparenta, para esses players políticos, uma anistia prévia a potenciais atos ilícitos praticados.
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1 Cf. Fábio Medina Osório, "Das sanções da Lei 8.424/92 aos atos de improbidade administrativa", in Revista Trimestral de Direito Público, São Paulo: Malheiros, 1998, vol. 24, p. 150; Carlos Ari Sundfeld e Jacintho Arruda Câmara, "Improbidade administrativa de dirigente de empresa estatal", in Revista Trimestral de Direito Público, São Paulo: Malheiros, 2002, vol. 40, n. 2, p. 23.
2 Dentre muitos outros acórdãos, o REsp 769.642, rel. Min. Campbell Marques, j. em 17.11.09, DJe 27.11.09; o REsp 1.036.229/PR, rel. Min. Denise Arruda, j. em 17.12.09, DJe 02.02.10; o AgReg no REsp 763.441/MG, rel. Min. Teori Zavascki, j. em 27.10.09, DJe 11.11.09 e o REsp 827.445/SP, rel. Min. Luiz Fux, j. Em 02.02.10, DJe 08.03.10.
3 Cf. Juarez Freitas, "Do princípio da probidade administrativa e de sua máxima efetivação", in Boletim de direito administrativo, São Paulo, NDJ, 1996, p. 433-447.
4 Cf. o STJ. Resp 1.713.044. rel. ministro Mauro Campbell. 2ª Turma. Julgamento em 07.11.19.
5 A propósito, ao tratar do art. 28 da LINDB (parecido com o dispositivo da MP 965/20, Alcir Moreno da Cruz e Mauro Borges defendem "uma interpretação conforme a Constituição, de modo a preservar o texto legal, observando a devida deferência ao legislador ordinário", na medida em que "o texto constitucional está tratando de ressarcimento aos cofres públicos no exercício do seu direito de regresso de modo a garantir a observância do princípio constitucional da eficiência (artigo 37, caput, da CF/88)" (In: O artigo 28 da LINDB e a questão do erro grosseiro. Acesso em 14 mai. 2020.
6 Termo amplamente utilizado no dia a dia da Administração Pública, assim sintetizado por Fernando Vernalha Guimarães: "Decidir sobre o dia a dia da Administração passou a atrair riscos jurídicos de toda a ordem, que podem chegar ao ponto da criminalização da conduta. Sob as garras de todo esse controle, o administrador desistiu de decidir. Viu seus riscos ampliados e, por um instinto de autoproteção, demarcou suas ações a` sua 'zona de conforto'" (In: O Direito Administrativo do Medo: a crise da ineficiência pelo controle. Disponível clicando aqui. Acesso em 14 mai. 2020).
7 Veja-se, a propósito, o entendimento de Irene Nohara e Fabrício Motta: "mesmo com essa positivação [trazida no art. 28 da LINDB], que procura restringir as possibilidades de arbítrio, ainda assim ele não é afastado, pois são conceitos indeterminados: erro grosseiro e interpretação razoável" (In: LINDB no Direito Público - lei 13.655/18. São Paulo: Thomson Reuters, 2019, p. 95).
8 "Art. 3º Na aferição da ocorrência do erro grosseiro serão considerados: I - os obstáculos e as dificuldades reais do agente público; II - a complexidade da matéria e das atribuições exercidas pelo agente público; III - a circunstância de incompletude de informações na situação de urgência ou emergência; IV - as circunstâncias práticas que houverem imposto, limitado ou condicionado a ação ou a omissão do agente público; e V - o contexto de incerteza acerca das medidas mais adequadas para enfrentamento da pandemia da covid-19 e das suas consequências, inclusive as econômicas".
9 Vide caso do filme Chatô - O Rei de Brasil, em que o STJ, ao julgar o REsp 1.405.748, em que a maioria da 1ª Turma entendeu que particulares não podem responder sozinhos a ações com base na lei de Improbidade Administrativa, sem que também figure como réu na ação um agente público responsável pela prática do ato considerado ímprobo.
10 "'Solublemas' da LINDB ao direito público". Disponível clicando aqui. Acesso em 14 mai. 2020.
11 Cf. "MBL aciona Justiça para barrar MP de Bolsonaro que protege agentes públicos". Disponível em
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*Marlus Santos Alves é sócio do escritório Silva Matos Advogados; atua em diversos processos de Direito Administrativo Sancionador; foi head jurídico de empresa brasileira de infraestrutura e atua em arbitragens internacionais. É Vice-Presidente CAMARB - Câmara de Mediação e Arbitragem Empresarial - Brasil; e frequentou especialização em Law Enforcement e Compliance pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.
*Luiz Guilherme Ros é sócio do escritório Silva Matos Advogados, mestrando em Direito Constitucional pelo Instituto de Direito Público de Brasília, pós-graduado em Direito Penal Econômico pela Fundação Getúlio Vargas, bacharel em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). É membro da Comissão de Direito Regulatório e da Comissão de Direito de Defesa da Concorrência da OAB-DF. Foi assistente técnico e coordenador substituto na Superintendência Geral e assessor do Tribunal do Conselho Administrativo de Defesa Econômica e autor de artigos relacionados à área de antitruste.
*Gabriel Vinícius Carmona Gonçalves é advogado especialista em Direito Público do Pereira Neto, Macedo Advogados. É mestrando em Direito Político e Econômico na Universidade Presbiteriana Mackenzie e pós-graduado em Direito Administrativo pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.