Supremo de frango à moda do chef
É mais do que hora de o capataz receber as suas contas que na verdade, estão muito negativas, dignas de uma falência múltipla do capataz e dos seus órgãos. Democraticamente.
quinta-feira, 14 de maio de 2020
Atualizado às 08:19
Essa receita era muito usual nos velhos tempos do movimento/ditadura (?) de 1964, mas voltou para o cardápio nesses últimos dias com toda a força. Vamos a ela.
O ingrediente principal é o frango, claro. Hoje em dia compra-se o frango congelado ou resfriado nos fornecedores, destacando-se o intenso uso do delivery como instituição internacional nestes tempos de covid-19, tristemente presente entre nós de forma muito mais agravada do que poderia ser1. Mas para que a receita fique mesmo boa tem de ser frango fresquinho, apanhado vivo, morto e depenado na mesma hora. Para conseguir esse frango, bastou ao nosso Chef atravessar a rua para encontrá-lo. Observe-se que, dependendo da quantidade de convivas, pode ser um frango só, dois, cinco, até onze. Naquele dia bastou um, talvez como aperitivo.
Quem nunca cercou um frango num galinheiro não sabe o que ainda é em muitos lugares uma das mais importantes e divertidas experiências da vida (claro, não para o frango). Para assim se fazer o melhor é que ele seja apanhado desprevenido. Acontece que ele (o frango, não o Chef), no mesmo momento em que vê o seu algoz começa a correr para todo o lado, cacarejando alto, fazendo o maior escândalo, e daí que fica cansativo pegá-lo, pois é muito esperto. Dessa forma é melhor levar um bando de ajudantes que cercarão o frango até que ele não tenha para onde escapar. Sendo mais gente, uns vão ajudar a cercar o frango e os outros só vão olhar. Gente demais atrapalha. Naquele dia do retorno do supremo de frango ao cardápio havia acompanhantes do Chef que foram levados para fazerem a emboscada ao galináceo, voluntários (poucos) e involuntários forçados (a maioria), estes sem saber o que estava acontecendo e que ficaram por ali com cara de vaca na horta, já que estamos falando da fauna doméstica. Se fosse o caso de tratar-se de política, poderia se dizer que haveria entre os agregados do Chef inocentes úteis, inocentes não úteis e muitos culpados de querer ajudá-lo a fazer um prato para lá de indigesto, em proveito próprio.
Chegando inopinadamente ao galinheiro, a caça ao frango em questão foi bem diferente das que eu conheci, porque o Chef fez questão de explicar-lhe a filosofia de sua participação na receita. Normalmente frango não tem o direito de manifestar-se (ou de cacarejar). Ele vai para a panela e pronto. Mas aproveitando a oportunidade rara de uma contestação, ele disse que não desejava fazer parte do banquete que o Chef pretendia preparar com a sua ajuda, mesmo porque a receita estava desvirtuada. Isto porque, como frango que era, não podia entregar o peixe que lhe era solicitado. Havia clara incompatibilidade entre a sua função normal no supremo, em tese, cuja preparação se pretendia, e o que efetivamente se lhe pedia.
No fundo, o que o Chef desejava era que ele, frango, convencesse outros moradores daquele galinheiro a fazerem parte do tal supremo, cuja receita quebrava as mais respeitáveis tradições daquela antiga iguaria. Mas, como todo mundo sabe, frango não cisca na pocilga, não come a grama da vaca e nem avança sobre a ração dos peixes do laguinho. Cada macaco no seu galho, informou o frango ao Chef. Ou cumpro o meu dever inato de ir assim para o fogo, ou não conte comigo, afirmou ele.
O Chef não prestou a mínima atenção à peroração do frango porque, no lugar do tal supremo, ele já tinha pensado que o melhor seria mesmo uma paella, na qual ele jantaria não só aquele frango, mas todos os habitantes do galinheiro e todos os demais bichos daquela fazenda, em uma orgia gastronômica que deixaria Gargantua e Pantagruel na maior depressão.
Já que o frango tergiversou, o Chef retirou-se com os seus ajudantes. Ele estava dando tempo ao tempo e, portanto, aquele não era o fim, certamente, mas só o começo. Pela vontade do Chef o supremo de frango só estava adiado e outros pratos seriam também preparados juntos no seu devido tempo. O galinheiro e toda a fazenda que se cuidem.
Esse acontecimento levou-se a uma reflexão sobre a vida nas fazendas democráticas. Quando ela é muito grande (diferente da Grécia do modelo direto), o dono (povo) fica na supervisão (por meio do voto) e escolhe um capataz para tocar o dia a dia. O capataz recebe as suas instruções, constantes de um Manual, e deve segui-las rigorosamente. Os atos dele são fiscalizados por pessoas de confiança do dono, os quais reportam as falhas do capataz. Essas podem ser classificadas como resultado de negligência, imprudência e imperícia (que as pessoas do direito chamam de culpa). Outras correspondem a desobediências voluntárias, mais graves, consideradas como dolo pelos mesmo juristas. Uma vez caracterizado o dolo, ele determina a demissão do capataz.
O que se tem visto é que o capataz (o nosso mesmo Chef) rasgou o Manual e jogou as folhas numa fogueira, tendo dito que ele mesmo é o Manual, a ser respeitado. Mas pelos feitos do capataz, parece que esse manual que ele diz ser foi escrito por uma formiga que atravessou uma gota de cachaça e suas não-regras têm mais curvas do que a antiga estrada de Santos, e não levam a lugar algum. Elas funcionam como os jogos de mesa, no qual os jogadores vão para a frente e voltam várias casinhas para trás, conforme o resultado dos dados, para depois seguir de novo em frente de forma errática. Isso tudo tem acontecido em meio a uma crise sem precedentes no campo. E, assim, não tem fazenda que aguente.
É mais do que hora de o capataz receber as suas contas que na verdade, estão muito negativas, dignas de uma falência múltipla do capataz e dos seus órgãos. Democraticamente.
1 Ave, Chef, morituri te salutant!
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*Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa é sócio de Duclerc Verçosa Advogados Associados. Professor Sênior do Departamento de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP.