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O direito de emergência instala crise de legalidade no enfrentamento da pandemia do novo coronavírus

Nicácio Carvalho

Decretos, positivados pelo Poder Executivo, tem despertado preocupação, com concentração de atos normativos que ferem o princípio da legalidade

quarta-feira, 13 de maio de 2020

Atualizado às 13:25

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Surgiu um direito de emergência, misturando Leis formais, medidas provisórias e decretos. No afã de atender às demandas sociais no contexto de crise provocada pela doença covid-19, disseminada a partir da proliferação do vírus SARS-CoV-2, o Estado - aqui compreendido em sentido amplo - buscou meios ágeis para inovar no ordenamento jurídico.

Daí, no entanto, emerge à superfície da democracia uma verdadeira crise de legalidade, a ser sanada pelos intérpretes autênticos do direito, tendo a Constituição como alternativa à uma cegueira deliberada. Isto é, fechar os olhos para as regras atinentes à produção e edição de normas não é medida saudável na preservação da higidez institucional.

O que se apresenta, portanto, é um estado de coisa que afronta o rule of law (Estado de Direito), fundado sob o primado da hierarquia das normas, onde Decretos e Medidas Provisórias desempenham papéis inferiores às Leis e, sobretudo, à Constituição, cuja posição é o ápice da pirâmide. Inverte-se, outrossim, a tradicional pirâmide de Kelsen.

Na hipótese de reconhecer a competência de Estados e municípios na regulação do enfrentamento à pandemia, ainda assim não seria competência das Assembleias Legislativas e Câmaras Municipais a edição de normas, em vez dos Poderes Executivos?!

Com efeito, um conjunto de fatores contribuem com a crise de legalidade instalada no país. A título de inspiração, extrai-se trecho do decreto 29.583/20, editado pelo Poder Executivo do Estado do Rio Grande do Norte e objeto de diversas alterações por outros decretos, consolidando o artigo 22 com a seguinte redação:

Art. 22. O descumprimento das medidas de saúde para o enfrentamento do novo coronavírus (covid-19) decretadas no âmbito do Estado do Rio Grande do Norte enseja ao infrator a aplicação de multa diária de até R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais), sem prejuízo da adoção de medidas administrativas como a apreensão, interdição e o emprego de força policial, bem como da responsabilização penal, pela caracterização de crime contra a saúde pública, tipificado no art. 268 do Código Penal, e civil.

§ 1º A multa de que trata o caput observará os valores mínimos:

I - de R$ 5.000,00 (cinco mil reais) para pessoas naturais;

II - de R$ 25.000,00 (vinte e cinco mil reais) para pessoas jurídicas de direito privado.

§ 2º O descumprimento ao artigo 20, §§ 1º e 1º-A, submeterá a pessoa natural, unicamente, ao processamento pela infração cometida ao artigo 268, do Código Penal, sem prejuízo de eventual sanção pecuniária prevista em norma municipal editada até a publicação deste decreto.

§ 3º As pessoas jurídicas autorizadas a funcionar deverão exigir dos clientes, funcionários e colaboradores o cumprimento do art. 20, § 1º, sob pena de multa de 20% (vinte por cento) do valor mínimo previsto no art. 22, § 1º, II.".

É de estranhar, considerada a ordem jurídica brasileira, que um decreto institua medidas de restrição de direitos, com aplicação de multa, sem a participação do Poder Legislativo Estadual. A Constituição, no inciso II do artigo 5º, em uma de suas vozes mais populares, afirma: ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei.

Em outro exemplo, cita-se o decreto 64.959, de 4 de maio de 2020, emanado do Governo do Estado de São Paulo, fica instituída a obrigatoriedade do uso de máscaras, fixando multa relevante por seu descumprimento. Diferente do Decreto do Rio Grande do Norte, contudo, a norma paulista faz referência ao Código Sanitário do Estado (lei 10.083, de 23 de setembro de 1998), que fora debatida e aprovada pela Assembleia Legislativa de São Paulo, cujo teor prevê as sanções pecuniárias.

Não obstante a correta indicação de multa prevista em lei, o decreto não escapa ao erro técnico, infringindo a Constituição, porquanto cria conduta enquadrada como infração administrativa à revelia da legalidade. Nesta feita, há inovação na ordem jurídica por meio de decreto, sem condução do Poder Legislativo.

Compreensível - bom que se registre - a necessidade de regular a atuação dos particulares e implementar medidas enérgicas no combate à disseminação do vírus; há, por outro lado, a imprescindibilidade de obediência às leis e à Constituição.

De mais a mais, nem mesmo a lei 13.979, de 06 de janeiro de 2020, aprovada pela Congresso Nacional e sancionada pela presidência da República, cujo teor disciplina as ações de enfrentamento da emergência de saúde pública decorrente do coronavírus, autoriza a imposição de multas a pessoas naturais ou jurídicas.

Depreende-se do cenário que, embora haja legitimidade e autoridade para exercício do poder político, não se pode escamotear a distribuição de prerrogativas definida pela Constituição da República, usurpando a instância máxima de deliberação das vontades sociais: o parlamento. Some-se a isso a limitação imposta pelo ordenamento jurídico brasileiro no que se refere ao exercício do poder de polícia.

Nesse contexto, a solução repousa na participação ativa dos órgãos legislativos, fórum ideal para a regulação da vida em sociedade, mormente em circunstâncias de estresse, como é o caso. Afinal de contas, cabe ao Poder Legislativo, por natureza constitucional, inovar no mundo jurídico, restringindo - ou criando - direitos, assim como impondo obrigações.

O Estado Democrático de Direito é nossa escolha, mormente nas crises. Sintetizamos nosso acordo de vontades, enquanto nação, na Constituição de 1988. Não há solução à margem da lei.

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*Nicácio Carvalho é advogado, sócio do escritório Carvalho, Costa, Guerra & Damasceno Sociedade de Advogados, professor, especialista em processo pela PUC/MG e Diretor Jurídico da CDL Jovem Natal.

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