De boas intenções...
A verdade é que a organicidade e funcionalidade de qualquer estado que se pretenda Democrático de Direito reclama uma segmentação de competências.
terça-feira, 12 de maio de 2020
Atualizado às 10:36
No contexto da pandemia atual, temos nos deparado com iniciativas institucionais múltiplas, emanadas dos mais variados órgãos administrativos. Todas tendo como móvel, certamente, a melhor das intenções quanto à receita para debelar a moléstia que fustiga a sociedade.
Ocorre que, por mais que um determinado segmento estatal esteja imbuído do mister de circunscrever a disseminação da patologia - mormente sem implicar na inanição da economia (a "escolha de sofia" é sempre tormentosa) -, a verdade é que a organicidade e funcionalidade de qualquer estado que se pretenda Democrático de Direito reclama uma segmentação de competências.
Nenhum segmento estatal é um potentado! E não o é de hoje. Aristóteles, na Grécia clássica, através de sua obra "A Política", pioneiramente já esboçava a repartição tripartite das competências nodais do estado - executivas, legislativas e judiciárias -, segmentação essa reavivada por Locke e, finalmente, minudenciada por Montesquieu na sua célebre "O Espírito das Leis" ("De L'esprit de Lois"), de 1748, obra essa que se constitui no alicerce da organização estatal, tal qual a conhecemos até hoje.
Ainda que cada sociedade empreste à dita segmentação o tempero que lhe pareça mais próprio, não se pode olvidar que, no caso destes trópicos, a sociedade o fez de forma clara através da Assembléia Constituinte que promulgou a Carta Constitucional que até hoje vige do Oiapoque ao Chuí (retalhada, por certo, mas ainda vigente)! Nela subsiste o dogma da sectarização dos Poderes, a exigir que as atividades de criação e restrição de direitos advenham de lei em sentido estrito, da respectiva esfera de poder.
Assim, não basta advir do Legislativo, tendo que sê-lo daquele inserto na órbita titular da respectiva matéria, de modo que as cinco modalidades de competências (exclusiva, privativa, cumulativa, concorrente e suplementar - na terminologia do Prof. José Afonso da Silva) sejam exercitadas pela União, Estados e Municípios quando, respectiva e reciprocamente, sejam competentes para tanto.
E a lógica disso, em verdade, é bastante simples. Isso significa que, por mais que quaisquer das vertentes estatais entenda estar de posse do melhor encaminhamento para lidar com a "covid-19", na prática, a saída para a pandemia a ser perseguida será aquela ditada pelo Legislativo e executada pelo Executivo, dentro dos limites impostos a esse por aquele.
Ao Poder Judiciário, a seu turno, competirá decantar os excessos e propulsar a retificação das omissões, mas sempre jungido ao arcabouço legal e executivo emanado dos braços estatais coirmãos. Fora dessa tríade, por mais que uma outra ramificação pública goze organicamente de autonomia financeira e seus membros de autonomia funcional, a implantação do lockdown - o aforismo exógeno do momento (confinamento, no vernáculo) - a pedido da mesma, ainda que paroquialmente na Veneza Brasileira, não há de receber guarida.
As multifacetadas vicissitudes da atual epidemia, várias das quais experimentadas pelo tecido social em escala planetária de forma primeva, não comportam ativismos transbordantes do eixo de freios e contrapesos desenhado na Constituição Cidadã.
A fidúcia alicerçada no sufrágio legitimam o Executivo e o Legislativo a assim proceder, não havendo razão objetiva alguma para olvidar do escorreito tino do Judiciário para as correções de prumo que se revelarem necessárias, ao fim e ao cabo e nos termos da lei.
Assim, mais do que chegada a hora da convergência de propósitos e iniciativas (parece funcionar no estrangeiro!). Afinal, como diz o adágio popular - e mesmo num País com mais de 200 milhões de juízes e técnicos de futebol -, de boas intenções.....
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*Erik Limongi Sial é advogado e sócio fundador do escritório Limongi Sial & Reynaldo Alves Advocacia e Consultoria Jurídica.