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A liberdade de expressão como mínimo democrático

O manto da Liberdade de Expressão deve cobrir sobretudo os grupos que representam o discurso mais repulsivo, mais controverso, que mais desafia a crença na inteligência humana.

segunda-feira, 11 de maio de 2020

Atualizado às 10:00

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Em meio à pandemia, autoridades vociferam que devemos ignorar a pandemia. De dentro de um sistema democrático, governantes discursam contra a democracia. Ministros de Estado se manifestam contra o Estado. Comentários raivosos, grunhidos, confusão. 

E dizem estar protegidos pela Liberdade de expressão. 

Uma juíza de Brasília ordena que o Ministro da Defesa apague postagens odiosas de suas redes sociais, o Ministro Alexandre de Moraes, do STF, assevera que atos antidemocráticos não são constitucionais. 

E dizem estar protegendo a Liberdade de expressão. 

Leio, em artigo de Conrado Hübner Mendes, que a sociedade deve empenhar esforços para preservar um mínimo democrático. Concordo, mas penso que não ajudam nada as notas de repúdio de entidades de classe, as manchetes indignadas de jornais, ou as respostas do judiciário. A única forma de preservarmos um mínimo de democracia é sermos intransigentes com a defesa da Liberdade, e, de forma enfática, assegurarmos até mesmo (ou sobretudo) o direito ao discurso antidemocrático. 

Talvez soe estranha essa afirmação, a qual provavelmente dará margem a inteligentes divergências, mas minha premissa se beneficia de uma vantagem inabalável - ela não se amolda ao sabor do vento, não é circunstancial. Um Estado democrático precisa entender que seu lugar é o de proteger o discurso de todos a qualquer custo. Ao Estado, por ser titular da força e do poder, a proteção é um dever; aos que o odeiam, o discurso é um direito.

É uma temeridade imensa aceitarmos a habitual, pouca técnica e frouxa ideia de que existe uma Liberdade de expressão boa e outra ruim, uma certa e outra errada, uma correta e outra incorreta - e que a uma delas o Estado dará a benção de ser livre. O casuísmo é inevitável. A interpretação da norma constitucional passa a ser uma questão de gosto.

Não há como fugir da obviedade de que não foi isso que pretendeu o legislador ao esculpir na Constituição a Liberdade de expressão. Pelo contrário, decerto desejou proteger o discurso controverso, que não gozava de aceitação. O manto da Liberdade de Expressão deve cobrir sobretudo os grupos que representam o discurso mais repulsivo, mais controverso, que mais desafia a crença na inteligência humana.

Somente dessa forma alcançaremos, por meio de valores constitucionais tão importantes como a Liberdade de expressão, um mínimo democrático: ofertando amor constitucional ao discurso de quem odeia a democracia. De outro modo, seguiremos fantasiando que somos democráticos e justos ao escolhermos arbitrariamente quem tem direito a falar livremente, fingindo não perceber quão selvagem é um Estado que ameaçado ameaça, que combatido combate, com todo seu poder e força descomunais os que possuem discursos que o contrariam.

E tem sido exatamente este obscuro caminho o escolhido por grande parte dos Estados democráticos modernos, iludidos de que para assegurar um mínimo de democracia precisam combater suas sombras.

Iludidos, porque as democracias modernas de massa, tão dispersas e desiguais, são incapazes de harmonizar seus valores coletivos, terceirizando à subjetiva análise das autoridades de Estado o problema, tornando perigosamente político o jurídico conceito de Liberdade de expressão. Iludidos, porque o combate não preserva o mínimo democrático, justamente porque combate.

Aponto para o caminho do acolhimento de todo e qualquer discurso, fazendo da defesa intransigente da Liberdade de cada um se expressar sem freios um valor, fazendo do acolhimento ao discurso do outro, seja qual for o discurso, e seja qual for o outro, o nosso mínimo democrático.

A saída é não buscarmos a saída e assumirmos nossas sombras como parte do que somos. Borges deu a senha para todo e qualquer labirinto: Não haverá nunca uma porta. Já estás dentro!

______________

t*André Marsiglia Santos é advogado especializado em Liberdades de expressão e de imprensa. Membro da Comissão de Liberdade de Imprensa da OAB-SP e da Comissão de Mídia e Entretenimento do IASP (Instituto dos Advogados de São Paulo). Idealizador da L +: Speech and Press e sócio da Lourival J. Santos - Advogados.

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