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Efeitos da pandemia da covid-19 no funcionamento do Poder Judiciário e a realização de atos judiciais: oportunidade para o progresso e a necessária preservação de garantias processuais constitucionais

São inegáveis os efeitos e transformações já produzidos pela pandemia e a necessidade de serem implementadas medidas de contingenciamento da crise, inclusive no ambiente do Poder Judiciário.

quinta-feira, 7 de maio de 2020

Atualizado às 12:39

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A pandemia da covid-19 se instaurou há pouco mais de 1 mês e meio1 e já acarretou uma série de repercussões na esfera econômica, política e social em âmbito mundial. São inegáveis os efeitos e transformações já produzidos pela pandemia e a necessidade de serem implementadas medidas de contingenciamento da crise, inclusive no ambiente do Poder Judiciário.

O contexto de inadimplemento contratual na esfera consumerista e empresarial, além de demandas de naturezas transindividuais geram ações de índole repetitiva, as quais já estão sendo direcionadas ao Poder Judiciário e agravando ainda mais a realidade de congestionamento. Nesse cenário, é preciso que se apliquem técnicas em prol da adequada, efetiva e célere prestação jurisdicional.

Um dos mecanismos já utilizados pelo sistema - e intensificado no atual contexto de necessário isolamento social - é o dos julgamentos/sessões virtuais (que não se confunde com as sessões por videoconferência), as quais geram algumas discussões entre os agentes do processo judicial. É inegável que a realidade instaurada pela pandemia constitui-se em importante oportunidade para a agilização do processo de digitalização da Justiça brasileira viabilizando ainda mais, nessa medida, a aplicação de meios de inteligência artificial para a otimização da celeridade processual e da qualidade da atividade jurisdicional.

Contudo, é preciso considerar a necessária preservação das garantias processuais constitucionais, como a ampla defesa e o contraditório, especialmente no que tange à sistemática dos julgamentos/sessões virtuais, em razão da impossibilidade de realização da sustentação oral no formato presencial ou de pedido de preferência pelo advogado da parte (no caso de serem requeridos, o processo é automaticamente excluído de pauta e aguardará por uma sessão presencial). A sessão por videoconferência funciona praticamente como uma sessão normal, porém realizada à distância. Há possibilidade de sustentação oral, também por meio remoto, que deverá ser solicitada no prazo de 48 horas antes da data da sessão, em formulário eletrônico disponível na página do Tribunal respectivo.

Como enfatizado pelo presidente nacional da OAB/RS, Dr. Felipe Santa Cruz (em debate realizado em "live" no perfil do Instagram da ESA Nacional em 24/04/20 sobre o tema: "Julgamentos virtuais e trabalho remoto no Judiciário"), é preciso considerar a realidade de advogados que militam no formato artesanal, sem uma estrutura e aparelhamento para a realização de atos processuais digitalmente, por isso, é importante que seja facultado ao advogado que não tenha condições de fazer a sustentação oral de forma virtual o pedido de retirada do processo da pauta, com mínimo de 48 horas de antecedência. Nesse caso, o processo será incluído na pauta de uma sessão presencial, a qual será retomada quando encerrado o plantão extraordinário, a exemplo do procedimento realizado no Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região.

As sessões de julgamento online (decisões home office) estão sendo também implementadas nos tribunais superiores (STF - 1ª sessão por videoconferência da 1ª Turma realizada em 13/04/20) em função do regime de trabalho remoto estabelecido pela pandemia da covid-19. Apesar do aspecto positivo da continuidade dos julgamentos e agilização dos processos, há o problema da ausência dos meios executivos eletrônicos, além da suspensão dos prazos processuais (até 30/04/20) que impedem o andamento dos processos nesse período, mas especialmente, a crítica quanto a possível lesão a garantias processuais constitucionais, como a ampla defesa e contraditório, em função da impossibilidade da sustentação oral presencial, bem como de eventuais esclarecimentos de questões de fato. Há ainda a preocupação com a efetiva transparência e publicidade das sessões de julgamento.

Embora as práticas referidas muitas vezes não interferiam no conteúdo da decisão, o direito de realizá-las corresponde às garantias processuais previstas constitucionalmente, porém é preciso que sejam sopesadas as demais garantias constitucionais, como a celeridade processual e, até mesmo o acesso ao Poder Judiciário, a partir da possibilidade de realização de atos processuais por meios eletrônicos.2 O modelo de cortes online é uma tendência mundial e pode representar também maior acesso à Justiça, pois, como pondera o escritor referência na temática Richard Susskind em seu livro "Online Courts and the Future of Justice",3 mais pessoas no mundo têm acesso à internet do que acesso à Justiça e a atividade jurisdicional deve ser vista como um serviço a ser prestado à sociedade ("Justice as a service") e não necessariamente como um tribunal físico.

Contudo, no Brasil as iniciativas e experiências de implementação de inteligência artificial no âmbito do Poder Judiciário são mais voltadas à automatização do processo e não à prevenção de demandas judiciais (autocomposição de conflitos), a exemplo das experiências bem sucedidas dos sistemas privados de resolução online de disputas (ODR), como a mediação online (Caso eBay). Mais do que nunca é preciso investir em medidas preventivas para conter o avanço das ações de massa originadas pela crise de naturezas indenizatórias/reparatórias, como o estímulo de acordos por meio da antecipação da orientação dos tribunais, utilização de técnicas de gestão de processos repetitivos e avisos programados de cobrança para evitar ações de execução (alternativas discutidas pelo sistema jurídico alemão no âmbito do procedimento de reparação civil coletiva do consumidor, criado a partir do caso Volkswagen - "escândalo do Diesel" -, denominado "Musterfeststellungsverfahren" - §§ 606 a 614 da ZPO alemã).4

Outro problema na realidade brasileira seria a ausência de um código de ética nacional para padronização, definição de papéis e aplicação das técnicas de inteligência artificial, como a Carta Ética Europeia (Comissão Europeia para a Eficiência da Justiça), que possui a finalidade de regular a ética na aplicação da inteligência artificial nos sistemas jurídicos (evitar migração de preconceitos humanos para os robôs e o prejuízo de direitos/liberdades individuais, por exemplo).

Assim, percebe-se que a adoção de mecanismos de inteligência artificial e a utilização de recursos e meios digitais são movimentos inevitáveis em prol do avanço qualitativo da prestação jurisdicional em todo o mundo. O atual momento e o contexto de necessário isolamento social estabelecidos pela pandemia devem ser tratados como oportunidade para o desenvolvimento e implementação desses instrumentos tecnológicos, mas, a toda evidência, a partir da necessária ponderação e preservação máxima possíveis das garantias e liberdades constitucionais, por meio do diálogo ético e democrático e de um modelo colaborativo de processo5, todos amparados pela legislação processual brasileira vigente.

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1 A OMS decretou o estado de pandemia mundial pela covid-19 em 11/03/20.

2 Artigos 193 a 199 do CPC/15.

3 SUSSKIND, Richard. Online Courts and the Future of Justice. Oxford University Press: New York, 2019 (edição Kindle).

4 WELSCH, Gisele Mazzoni. "Musterfeststellungsverfahren (§§ 606 a 614 da ZPO): novo instituto de reparação civil coletiva na Alemanha". Revista de Processo (Revista dos Tribunais Editora), 2020 (no prelo).

5 Art. 6º Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva.

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*Gisele Mazzoni Welsch é Visiting Scholar na Universidade de Heidelberg (Alemanha). Doutora e Mestre em Teoria da Jurisdição e Processo pela PUC/RS. Especialista em Direito Público pela PUC/RS. Professora de cursos de pós-graduação "lato sensu" em Processo Civil.

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