STF, Poder Legislativo e denúncia de tratados internacionais (oitenta anos depois)
O Supremo Tribunal Federal está em vias de decidir uma questão jurídica histórica, que acaba de completar os seus 80 anos. A questão diz respeito à possibilidade do Presidente da República denunciar tratados internacionais sem a anuência do Congresso Nacional.
quinta-feira, 16 de novembro de 2006
Atualizado em 14 de novembro de 2006 13:55
STF, Poder Legislativo e denúncia de tratados internacionais (oitenta anos depois)
Valerio de Oliveira Mazzuoli*
A questão diz respeito à possibilidade do Presidente da República denunciar tratados internacionais (isto é, desengajar o Brasil de um compromisso internacionalmente assumido) sem a anuência do Congresso Nacional. Este problema veio à tona, pela primeira vez entre nós, em 1926, quando, nos últimos meses do governo Artur Bernardes, ficou decidido que o país se desligaria da Sociedade (ou Liga) das Nações.
Clóvis Beviláqua, à época, Consultor Jurídico do Itamaraty, chamado a se pronunciar, em minucioso parecer de 5 de julho de 1926, entendeu ser possível ao Poder Executivo denunciar tratados sem o assentimento do Parlamento, ainda que da vontade deste último tenha aquele necessitado quando da ratificação do acordo. Desde então, em decorrência desta tese altamente favorável ao Poder Executivo e lastimável à consagração da democracia, o poder de denunciar tratados passou a pertencer com exclusividade ao Presidente da República. O grande Pontes de Miranda, negando validade à lição de Beviláqua, lecionara então no sentido de ser "subversivo dos princípios constitucionais" a denúncia de tratados sem autorização do Congresso Nacional, de forma que o Presidente da República, do mesmo modo que faz na ratificação, deveria "apresentar projeto de denúncia, ou denunciar o tratado, convenção ou acordo ad referendum do Poder Legislativo".
Esta questão, já quase centenária, volta à tona no Brasil em 16 de junho de 1997, quando a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG) e a Central Única dos Trabalhadores (CUT) ingressam no Supremo Tribunal Federal com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIn) visando obter a declaração de inconstitucionalidade do Decreto presidencial nº 2.100 (clique aqui), de 20 de dezembro de 1996, que denunciou a Convenção 158 da Organização Internacional do Trabalho, devidamente aprovada pelo Congresso Nacional (Decreto Legislativo nº 68/92 - clique aqui) e promulgada pelo Poder Executivo (Decreto nº 1.855/96 - clique aqui), e até então em pleno vigor no Brasil. Na petição inicial, assinada pelos advogados Marthius Sávio Cavalcante Lobato, José Eymard Loguercio e Ericson Crivelli, defendeu-se a tese (que entendemos correta) da impossibilidade da denúncia de tratados internacionais sem o assentimento prévio do Congresso Nacional, tendo os peticionários argumentado que a Constituição de 1988 (art. 49, inc.)
I) "obrigou o governo brasileiro a que toda e qualquer denúncia por ele intencionada, seja devidamente aprovada pelo Congresso Nacional, sem o que, estar-se-á violando o referido dispositivo constitucional".
Ressaltou, ainda, que embora caiba ao Congresso Nacional a aprovação dos tratados, por meio de decreto legislativo, sua função, nessa matéria, é de natureza negativa, eis que não detém o poder para negociar termos e cláusulas ou assinar, mas apenas evitar a aplicação interna de tais normas. Entendeu, por fim, que o princípio da harmonia dos poderes "confere predominância" ao Chefe do Poder Executivo, porquanto somente a ele compete o juízo político de conveniência e oportunidade na admissão do tratado internacional no âmbito interno (cf., Informativo do STF n° 421, de março de 2006). O julgamento foi suspenso, em 29 de março desse ano, com o pedido de vista do Ministro Joaquim Barbosa, encontrando-se até hoje aberta a discussão no plenário do STF.
Portanto, este Tribunal terá agora que decidir se é ou não possível o Presidente da República denunciar tratados sem autorização do Poder Legislativo. E, para tanto, terão os demais Ministros que ainda não se manifestaram que concordar, basicamente, ou com a tese de Clóvis Beviláqua ou com a de Pontes de Miranda, e seus respectivos seguidores.
Vejamos, brevemente, cada um desses posicionamentos. Entendia Beviláqua que a regra jurídica constitucional (então em vigor) que exigia a manifestação do Congresso não havia se referido à denúncia, só tendo feito menção de que necessita aprovação congressual a ratificação. E, se a Constituição silenciou a respeito, é porque a intervenção do Congresso no processo de denúncia seria dispensável. Assim, não obstante os dispositivos constitucionais terem silenciado a respeito da denúncia dos tratados, só se referindo ao procedimento de formação do atos jurídicos internacionais, a faculdade do Poder Executivo denunciar os tratados que ele próprio celebrou, dar- e-ia em virtude da combinação dos preceitos constitucionais que conferem as atribuições dos Poderes em que se divide a soberania nacional.
Já para Pontes de Miranda, que lecionava ao tempo da Constituição de 1967 com a Emenda n° 1 de
Espera-se que a referida ADIn 1.625/DF (clique aqui) seja definitivamente julgada de acordo com a tese de Pontes de Miranda, a qual também reputamos como correta à luz do texto constitucional de 1988. O que se espera é que o STF decida corretamente, impedindo que o Poder Executivo, a seu alvedrio e a seu talante, denuncie tratados internacionais sem o assentimento do Congresso Nacional, que, em última análise, representa a vontade de todo o povo brasileiro. Assim, é de se perguntar: será que o povo brasileiro quer ver o país desengajado de tratados internacionais importantes para a proteção de direitos no plano interno e, também, para o desenvolvimento nacional? Será que o povo aceita a denúncia de tratados por meio da vontade discricionária do Presidente da República? Para nós, enfim, deixar ao Presidente da República a faculdade de denunciar tratados internacionais, principalmente os de proteção dos direitos humanos, como é o caso das convenções da OIT, é fazer tábula rasa da vontade popular e do princípios democráticos do texto constitucional de 1988.
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* Professor Honorário da Faculdade de Direito e Ciências Políticas da Universidade de Huánuco (Peru). Professor de Direito Internacional Público e Direitos Humanos na Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes
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