O filósofo e o juiz da insolvência no Brasil
O Direito é vivo, pois a sociedade é dinâmica e os acontecimentos são imprevisíveis e o juiz optou por pautar sua decisão no conhecimento e experiência para atingir o mundo inteligível.
segunda-feira, 4 de maio de 2020
Atualizado às 09:04
Certo dia um juiz de uma comarca de entrância final1 de um grande estado do Brasil, que julgava processos de insolvência e estava acostumado com grandes recuperações de empresas que possuíam um faturamento anual elevado, se deparou com um crescimento exponencial de processos e bancarrotas, em virtude de uma grande crise decorrente de uma pandemia.
Os serviços e as atividades empresariais estavam fechados por determinação do Poder Público há mais de um mês por conta de um vírus de nome covid-19, que tinha um alto contágio e gerava um colapso no sistema de saúde. Esse fechamento fez com que muitas empresas, que já estavam na fase de cumprimento do plano de recuperação judicial, retornassem ao Judiciário, buscando a suspensão do prazo das obrigações e um desses processos tinha o juiz da comarca de entrância final como prevento.
Ao se deparar com aquele pedido, a primeira indagação do juiz foi:
- Mas por que até agora as autoridades públicas não fizeram nada, perguntou o juiz para seu assessor?
E ele respondeu:
- Parece-me, Excelência, que lá colapsou também e os empresários estão vindo para cá na esperança de verem suspensas as suas dívidas.
- Mas como faremos com os credores, como eles sobreviverão? E os empregados, morrerão de fome?
- Mas Excelência, não se está falando em empresário, e sim, na empresa, atividade economicamente organizada que emprega, contrata, deve e faz a economia girar, que muitas vezes é responsável pela economia de uma cidade inteira por força dos serviços diretos e indiretos que contrata.
E, nesse momento, o juiz concordou em parte, porque não se sentia seguro a decidir sem uma lei que o autorizasse a conceder moratória, pois estava vivendo um dilema ético. Muitas dúvidas surgiam em um momento extremamente particular e atípico de tantas incertezas e em uma situação completamente adversa ao seu cotidiano.
E o juiz se debruçava em seus mais escusos pensamentos:
- E se pelo menos houvesse uma lei para respaldar a minha decisão? Como posso suspender a dívida de um empresário sem pensar em seus credores? Acho que vou pedir para os credores se manifestarem, para ver o posicionamento da contrária.
E assim o fez. Porém, quando veio a resposta de diversos credores, ele percebeu que havia certa resistência, porque já haviam se submetido ao stay period2 e o lockdown3 que gerava um sinalagma bilateral, segundo eles, e acabava por inviabilizar qualquer nova suspensão, porque a pandemia afetava a todos.
Mas, nesse momento, veio um provimento do seu Tribunal e a Corregedoria informou que os processos de insolvência deveriam passar por um processo prévio de conciliação, o que deu um alívio imediato ao juiz, porque pensou:
- Eles que tentem acordar primeiro e chegar a um consenso, porque essa decisão é muito difícil de tomar, e resolvam o meu dilema ético. Caso não cheguem a um denominador, falarei que a suspensão das obrigações não tem previsão legal.
Mas ao ler o provimento percebeu que o mesmo se destinava a demandas pré-processuais para disputas empresariais decorrentes dos efeitos da covid-19 e, nesse momento, o dilema ético do juiz se intensificou porque as obrigações decorriam de um plano recuperacional que havia sido aprovado pelos credores. E se questionava:
- Como posso interferir nas questões referentes ao cumprimento das obrigações, em que os credores votaram e acordaram entre si, o que fazer diante desse dilema ético? Estaria eu, usurpando a vontade dos credores ou apenas concedendo ferramentas processuais?
Em contrapartida, o seu assessor o indaga:
- Excelência, a prestação jurisdicional, quando provocada, não tem que ter uma resposta? O senhor tem o ordenamento jurídico todo a seu favor e pode utilizar dos princípios para orientarem sua decisão, não é?
Mas o juiz responde:
- Pois é, eu posso, mas queria me sentir mais seguro, se pelo menos houvesse alguma recomendação me ajudaria!
E o assessor respondeu:
- Eu encontrei, Excelência, tem a recomendação 63 do Conselho Nacional de Justiça4 que permite fazer uma mudança no plano, quando ele está na fase de cumprimento, mas nada diz acerca da suspensão de um mês, dois meses, três meses das obrigações da recuperanda.
E continua o assessor:
- Não seria melhor para essa empresa, fazer uma modificação em seu plano? Não seria mais seguro?
Nesse momento, o juiz não sabia responder, porque tudo era muito novo e tinha receio de que um pedido de modificação do plano pudesse ser interpretado como uma declaração de falência, caso os credores não aprovassem a modificação do PRJ (Plano de Recuperação Judicial). Talvez, a suspensão fosse uma medida mais emergencial em um momento de incertezas para aquele caso concreto. Ainda era tudo muito incipiente em um momento que autoridades de saúde informavam que a curva da pandemia ainda estava no início.
O juiz resolve, então, buscar na jurisprudência, uma fonte do direito, como uma decisão de outros colegas, que pudessem auxiliá-lo em seu dilema ético. E é quando o assessor encontra duas decisões, mas diz:
- São conflitantes, Excelência! Acho que V.Exa terá que decidir segundo sua convicção!
Mas continua o assessor:
- Achei um projeto de lei de número 13975, mas foi mandado para três comissões diferentes do Congresso Nacional. Acredito que vá demorar para ser aprovado.
Em seguida, indaga o juiz:
- Será que eu poderia usar um projeto de lei para fundamentar minha decisão? Será que pode ser considerado fonte do direito?
Em um pensamento retrospectivo, o juiz disse para seu assessor, que se recordava que há alguns anos, quando a Teoria da Empresa não estava em vigor e o que se tinha era o ato de comércio, a Soletur6, que prestava serviços, teria requerido a concordata e outro colega a teria concedido, alegando um princípio e um entendimento com base em uma teoria, que ainda nem estava vigorando, sob o argumento de que a teoria do ato de comércio estaria obsoleta e que o conceito de comerciante deveria ser estendido para englobar, não apenas quem praticava a intermediação, mas também o prestador de serviço. Exatamente como é hoje o posicionamento daqueles que fazem uma interpretação mais conservadora do artigo 966 do Código Civil e não o estendem para qualquer empresa que exerce atividade econômica.
E, após divagar em seus mais altos pensamentos, concluiu o juiz, que não havia necessidade de se invocar um projeto de lei, mas que a solução estaria em invocar os princípios básicos previstos na lei 11.101/2005, como o da preservação da empresa, pois se tratava de uma situação nova, que dependia de uma medida imediata para conter a crise da empresa e não do empresário.
Mas havia de fato um dilema ético muito maior a ser enfrentado pelo juiz em relação a questão ética e aqueles que buscavam no Judiciário a segurança econômica de suas relações jurídicas, que respaldavam seu discurso em uma decisão baseada no respaldo legal, aproximando o direito da base econômica e da estabilidade do sistema, dos contratos e das relações jurídicas firmadas anteriormente. Seria o reconhecimento de um sistema eficiente e essencial ao desenvolvimento econômico. Nesse pensamento, destacava-se Jeremy Bentham7, considerado o pai do utilitarismo e da aproximação do Direito da Economia e que fundamentava a ideia da ética utilitarista baseada na coletividade, muito mais próxima aos conceitos econômicos.
Em contrapartida, havia todo um movimento que considerava os efeitos nefastos e sociais em cadeia da crise ocasionada pela pandemia porque não tinha como a Recuperanda maximizar seus custos, que vinham se agravando e exigiam medidas, independente da previsão legal. E novamente o juiz se perguntava:
- Como posso fechar os olhos para os efeitos negativos da crise, transformando as empresas economicamente viáveis em falidas?
E continuava:
- E, se o plano não for aprovado, decretarei a falência de uma empresa que estava cumprindo o seu plano!
Então, o juiz via a dilação dos prazos para pagamento das obrigações, como uma realidade atual, e que necessitava do magistrado um olhar apurado acerca da crise.
O grande problema é que sabia o juiz, que, ao aplicar essa visão, ele se distanciava da Teoria da Law and Economics8, tanto invocada no meio empresarial e aplicada pela Escola de Harvard que se orienta as ações do agente em um cálculo racional material desprezando a possibilidade de outros resultados com base em critérios não materiais, como princípios maiores. E suas últimas indagações foram:
- Será que dava para comparar a aplicação e interpretação da lei brasileira com a da lei americana? O Chapter Eleven9 teria o condão de produzir os mesmos efeitos em um ambiente jurídico diverso?
Todas essas indagações mostravam que o juiz estava vivendo o dilema do mito da caverna de Platão, entre o mundo sensível e o ideal, entre soluções eficientes, considerando os custos da transação ou os diversos resultados que poderiam surgir da decisão dos sujeitos livres envolvidos.
Foi quando esse juiz resolveu desvendar a alegoria da caverna e desprezar a doxa, o senso comum, para atender o social que era produzido e atingido por meio de empresa. Em sua decisão deferiu a suspensão das obrigações daquela Recuperanda na fase de cumprimento do plano, acreditando no soerguimento daquela empresa, na manutenção dos postos de trabalho e na situação excepcional que a pandemia teria gerado.
Essa segunda visão aplicada pelo juiz ao processo trazia novos elementos, distantes de uma racionalidade econômica orientada com base no cálculo racional maximizador de sua utilidade, pois acreditava não ser possível prever os resultados de uma assembleia de plano modificativo de recuperação judicial, mas acreditava que a empresa necessitava daquele prazo para se soerguer. O artigo 47 da lei 11.101/2005 ao agregar outros elementos sociais, como a função social da empresa, não estaria permitindo ao julgador agregar elementos "irracionais" do ponto de vista econômico e até muitas vezes imprevisíveis no processo de recuperação judicial? O que significariam, então, as decisões referentes às travas bancárias no processo de recuperação judicial que permitem quebrar as garantias em prol de um coletivo que é a manutenção da atividade produtiva?
Então, o juiz da comarca de entrância especial pensou, analisou e se decidiu por prestar a jurisdição ao caso concreto, considerando a situação emergencial e deferiu a suspensão das obrigações emergenciais para aquela empresa, que estava em fase do cumprimento do plano de recuperação judicial e exigiu um plano de contingência em 30 dias, enquanto durasse a crise, a fim de salvaguardar o interesse da coletividade porque a pandemia era pontual, mas a saúde da empresa era essencial para a manutenção em longo prazo de todas as relações jurídicas que gravitavam em torno dela.
Logo, o Direito é vivo, pois a sociedade é dinâmica e os acontecimentos são imprevisíveis e o juiz optou por pautar sua decisão no conhecimento e experiência para atingir o mundo inteligível10.
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1 Em alguns Estados também chamada de Entrância Especial.
2 Período em as execuções ficam suspensas até que seja realizada a Assembleia de Credores que poderá aprovar o plano de recuperação judicial.
3 Seria um bloqueio autorizado pelas autoridades que impede o deslocamento em determinada área e que ocasiona o fechamento das atividades econômicas. No Brasil, em alguns Estados houve a opção por um lockdown parcial, pois houve a opção pela manutenção de atividades essenciais.
4 O PL 1397/20 altera diversas regras da legislação falimentar para acomodar o impacto econômico da pandemia causada pelo coronavírus sobre empresas em dificuldades econômicas. Foi encaminhado no dia 24/4/2020 às Comissões de Desenvolvimento Econômico, Indústria, Comércio e Serviços; Finanças e Tributação e Constituição e Justiça e de Cidadania.
5 Recomenda aos Juízos com competência para o julgamento de ações de recuperação empresarial e falência a adoção de medidas para a mitigação do impacto decorrente das medidas de combate à contaminação pelo novo coronavírus causador da covid-19.
6 Trata-se de uma sociedade que prestava serviços no ramo de turismo chamada Soletur Sol Agência de Viagens e Turismo Ltda, processo 0127527-93.2001.8.19.0001.
7 BENTHAM, Jeremy; Stuart Mill. Os pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1989.
8 É uma teoria que estaria presa ao paradigma neoclássico que supõe um homo economicus em abstrato, que orienta sua ação por meio do cálculo racional, maximizador de sua utilidade.
9 Seria o Capítulo da Legislação Americana que teria influenciado a Recuperação de Empresas na L. 11.101/2005.
10 Chamado por Platão como mundo ideal.
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*Taíssa Romeiro é doutora em Direito pela Universidade Federal Fluminense, professora de Direito Empresarial da UFFRJ, sócia da Romeiro Advogados e da Ad Massa Falida e integrante da Comissão de Insolvência da OAB/RJ.