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O portador do coronavírus que não segue o isolamento social pratica algum crime?

O enclausuramento de toda a população gera dúvidas e angústias sob vários aspectos.

quinta-feira, 30 de abril de 2020

Atualizado às 10:25

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Vivemos tempos de muita insegurança. Em todos os sentidos. A grande maioria da população está sob ameaça de uma pandemia que atingiu proporções nunca antes imaginadas. As incertezas indicam um só caminho, por enquanto: a permanência das pessoas em casa, o máximo possível.

Diante desta inédita situação, alguns aspectos chamam à reflexão no âmbito do Direito Penal. Pergunta-se: o portador do vírus que não seguir a orientação do isolamento social praticará crime?

Em primeiro lugar, sempre cabe repetir: Direito não é matemática. Cabem interpretações. O que pretendemos aqui fazer é tentar entender como as autoridades poderão enfrentar a questão.

Pois bem. Para que a discussão tenha início, entendemos ser essencial que o cidadão tenha consciência de que é portador do coronavírus. Esta condição é imprescindível para que se possa definir se aquele que não segue a orientação do isolamento social poderá ser enquadrado em algum crime. Sem consciência, não há crime.

Concluímos, inicialmente, que o indivíduo que, estando ciente de sua contaminação, sair de casa, sem necessidade, pouco se importando com as medidas recomendadas pelas autoridades de saúde, mantendo contato com pessoas, correrá o risco, sim, de ver sua conduta enquadrada no artigo 132 do Código Penal.

De acordo com a lei, pratica o referido delito aquele que expõe "a vida ou a saúde de outrem a perigo direto e iminente", hipótese que poderá ser atribuída ao indivíduo que não obedecer a orientação e continuar estabelecendo contato com terceiros.

Veja-se que não é necessário nem que o indivíduo efetivamente contamine alguém, nem mesmo que queira contaminar. Basta o desejo de criar uma situação que ele sabe ser arriscada. Muito possivelmente, condutas simples, como a mera participação em reuniões com amigos, ou mesmo profissionais, ja seriam entendidas como suficientes para caracterizar o crime. A pena prevista é de prisão de três meses a um ano.

Mas o tema ainda envolve outras discussões. A conduta prevista no artigo 131 do Código Penal prevê hipótese mais grave e específica. Nesse caso, a pena prevista é de prisão de um a quatro anos. Bem maior, portanto. Mas a conduta é bem mais grave também.

Comete o delito previsto no mencionado artigo aquele que, "com o fim de transmitir a outrem moléstia grave de que está contaminado" pratica "ato capaz de produzir o contágio". Aqui a situação é diferente. Aqui não se trata de apenas não seguir a orientação de isolamento, mas de querer transmitir a doença.

Como se vê pela leitura da lei, o crime só ocorre se a pessoa tem a intenção de transmitir a doença e adota uma conduta ativa como tossir, espirrar, ou até mesmo dar abraço ou aperto de mão em terceiros.

É uma situação difícil de imaginar acontecer na prática, mas parece importante fazer a diferenciação.

Há ainda um outro crime que poderia ser praticado. Esse ligado à desobediência à determinações públicas. Nos termos do artigo 268, do Código Penal, é crime "infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa". A pena prevista neste caso é de prisão de um mês a um ano.

Inicialmente, é imprescindível que a pessoa tenha conhecimento da "determinação do poder público". É preciso que essa determinação seja clara e tenha valor legal. Ainda que o assunto seja hoje o tema principal de todos os noticiários nacionais, a pessoa deve ter a consciência de que está descumprindo a exigência das autoridades sanitárias e do governo.

Essas normas, muitas vezes, são confusas e difíceis de entender. Pra piorar, no caso do Brasil, os Governos Federal, Estaduais e Municipais acabam dando determinações diferentes e, às vezes, opostas.

Nesse terceiro caso, diferentemente dos dois primeiros, o crime pode ser cometido até por quem não está contaminado. Basta desobedecer alguma ordem que vise impedir a propagação da doença. Assim, por exemplo, a pessoa que promove aglomerações contra ordem expressa.

Note-se que nos três casos o crime ocorrerá mesmo que o contágio não aconteça. Nos dois primeiros basta a criação do perigo. No terceiro, temos uma espécie de desobediência.

Mas e se houver o efetivo contágio? Aí, é claro que a pessoa poderá responder por crimes mais graves, como lesão corporal, homicídio e, até mesmo, o crime de "causar epidemia", previsto no artigo 267 do Código Penal. Contudo, na prática, será muito difícil provar de forma segura  quem transmitiu o vírus para outras pessoas. E, provavelmente, a pessoa só responderá por um daqueles três crimes estudados.

Enfim, a situação atual é inédita. O enclausuramento de toda a população gera dúvidas e angústias sob vários aspectos. Ainda que os anseios sejam diversos, tanto as recomendações técnicas da OMS, em sentido mais amplo, como a das autoridades de saúde nacionais, de maneira mais específica, devem ser cumpridas. É uma questão de saúde. E, como aqui visto, é uma questão legal.

É lógico que criminalizar toda e qualquer conduta e sair prendendo pessoas não ajudará a conter a evolução da pandemia.

Entretanto, de nossa parte, cabe alertar que as atitudes mais graves e que se encaixam nos crimes descritos neste pequeno estudo podem, sim, estar sujeitas à responsabilização criminal das pessoas infectadas que insistem em resistir ao isolamento social.

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*Paola Zanelato é advogada da Advocacia Mariz de Oliveira.

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