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Covid-19 e financiamentos estruturados

No Brasil, merecem destaque as debêntures, os Certificados de Recebíveis do Agronegócio (CRA), os Certificados de Recebíveis Imobiliários (CRI) e as Notas Promissórias (NP).

terça-feira, 28 de abril de 2020

Atualizado às 12:48

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Professores da Faculdade de Direito da Universidade de Oxford publicaram recentemente o artigo "Covid-19: A Global Moratorium for Corporate Bonds?". Em suma, o trabalho acadêmico propõe que seja editada uma legislação de emergência, estendendo o prazo de vencimento dos valores mobiliários representativos de dívidas corporativas. A proposta vem acompanhada de forte embasamento jurídico e econômico.

Os desafios provocados pela pandemia da covid-19 atingem as mais variadas áreas. A frente jurídica e regulatória não poderia ficar de fora. Os chamados financiamentos estruturados compõem peça fundamental para a economia global. No Brasil, merecem destaque as debêntures, os Certificados de Recebíveis do Agronegócio (CRA), os Certificados de Recebíveis Imobiliários (CRI) e as Notas Promissórias (NP), todos valores mobiliários que viabilizam a captação de recursos no mercado de capitais para utilização em determinada atividade empresarial, geração de empregos e criação de riqueza.

Os documentos jurídicos que formalizam essa complexa estrutura de financiamento estabelecem diversos direitos e obrigações entre os agentes. Os devedores, além do cumprimento pontual dos pagamentos devidos, usualmente assumem a obrigação de manter em dia seus outros financiamentos. Em caso de descumprimento, ocorre o vencimento antecipado cruzado entre as dívidas (cross-default) e todas as obrigações passam a ser exigíveis integral e simultaneamente. Outra cláusula comum consiste no compromisso de o devedor preservar uma certa relação entre índices financeiros que venham a ser estabelecidos (financial covenants), como dívida líquida e EBITDA, por exemplo. Como consequência da pandemia, os dados publicamente disponíveis no Brasil preveem que serão poucos os financiamentos que não terão esses pesados gatilhos disparados.

De imediato, esse cenário de incerteza generalizada preocupa os credores. Ao mesmo tempo em que tentam digerir a perspectiva de não recebimento do seu crédito, precisam dedicar novos recursos na tentativa de renegociar ou recuperar judicialmente o seu investimento. Na outra ponta, trata-se de um evidente problema também para os devedores, que correm o risco real de quebra, ainda que sejam saudáveis financeiramente.

Estamos diante de uma crise sem precedentes, que transcende as mais catastróficas previsões. Nesse contexto, diversas jurisdições já editaram medidas legislativas e regulatórias para minimizar os impactos da crise nos financiamentos e nas relações de crédito em geral. É o que fizeram Portugal, Espanha, Alemanha e o estado norte-americano de Massachusetts, por exemplo. Uma solução verificada consiste em suspender, provisoriamente, a eficácia dos eventos de vencimento antecipado em financiamentos.

Os objetivos comuns da experiência estrangeira - todos pertinentes às preocupações da realidade brasileira - podem ser resumidos em (i) evitar uma excessiva judicialização de discussões relacionadas ao tema; (ii) resguardar a força jurídica do direito de crédito dos credores; (iii) preservar as atividades empresariais saudáveis, mantendo empregos e pagadores de impostos; (iv) assegurar o tempo necessário para que seja reestabelecido um equilíbrio contratual consensual razoável entre as partes; e (v) diminuir as chances de que eventuais abusos produzam efeitos de difícil reparação a posteriori.

Expressamente, há a previsão de que credores e devedores continuarão titulares dos mesmos direitos e obrigações pactuados no início da relação jurídica. Não se trata da perda de qualquer direito por parte do credor. O evento de vencimento antecipado continua a ser existente e válido, ficando apenas os seus efeitos suspensos por um período.

A questão está focada apenas em uma suspensão temporária da produção dos efeitos de um direito. Soa razoável a previsão de um prazo adicional para que as partes conversem extrajudicialmente. A manutenção expressa dos direitos (interesse do credor) e a suspensão momentânea dos efeitos do vencimento da dívida (interesse do devedor) pode ser de vital importância.

Diversas atividades empresariais relevantes - de todos os tamanhos, incluindo as de pequeno porte - continuam saudáveis e devem ser preservadas. Por outro lado, as partes envolvidas precisam de prazo e segurança jurídica para restabelecerem o equilíbrio contratual, caso assim o desejem. Existirão sempre os casos em que as partes - no exercício sagrado da autonomia privada da vontade - não chegarão a uma composição durante o período de suspensão. Trata-se de um resultado perfeitamente possível e legítimo, o que de forma alguma invalida a discussão. Não havendo acordo, encerrado o prazo de suspensão, as partes retomarão o exercício das pretensões e dos direitos inicialmente contratados.

Convém lembrar que, no Brasil, as decisões jurisprudenciais e teses acadêmicas que tratam do caso fortuito, da força maior, da teoria da imprevisão, da onerosidade excessiva superveniente e da malfadada intervenção judicial no contrato não sugerem qualquer previsibilidade de posicionamento.

Portanto, tomando a experiência estrangeira como ponto de partida, o Brasil precisa refletir sobre a melhor maneira de enfrentar o assunto. É fundamental o sólido apoio nas ciências jurídica e econômica, sem esquecer dos estudos de avaliação de impactos regulatórios, com especial atenção para a boa técnica legislativa. Do contrário, prevalecerão os abusos de direito e as interpretações de ocasião, acompanhados quase sempre de danos irreversíveis.

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*Alexandre Costa Rangel é advogado e sócio de Costa Rangel Advogados. Trabalhou na CVM - Comissão de Valores Mobiliários e no CRSFN - Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional.

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