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Advocacia da concorrência: a importância da atuação do Cade na pandemia

Alexandre Barreto e Rodrigo Belon Fernandes

Cabe à autoridade da concorrência trazer luz aos debates (sejam eles legislativos, regulatórios ou judiciais) quanto ao risco de seu uso.

terça-feira, 28 de abril de 2020

Atualizado às 07:34

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Na seara concorrencial o Conselho Administrativo de Defesa Econômico (Cade), a despeito de sua missão reativa de analisar fusões ou acordos entre empresas e investigar condutas potencialmente prejudiciais à concorrência, há tempos vem desempenhando papel ativo no acompanhamento de propostas legislativas e normativas, monitoramento de mercado, estudos transversais com outros órgãos, advocacy e acompanhamento de ações judiciais (ainda que não seja diretamente parte afetada). Essa atuação ocorre em relação a temas que impactem - ou possam impactar - os valores tutelados pela Lei de Defesa da Concorrência brasileira (liberdade de iniciativa, livre concorrência, função social da propriedade, defesa dos consumidores e repressão ao abuso do poder econômico - artigo 1º da lei 12.529/11).

Dentre as hipóteses de atuação chama a atenção uma que nem sempre está nos holofotes do debate público, embora de vital importância: a análise de normas (legislativas e administrativas) que acabam por mitigar a livre concorrência com o objetivo de efetivar outros valores sociais caros do momento. Por vezes, na tentativa de "salvar mercados, produtores e empregos", parlamentos ou órgãos estatais emulam condições mono ou oligopolísticas através do estabelecimento de reserva de mercado, tabelamento de preços, manutenção de cadeias de produção, criação de barreiras artificiais de entrada ou operação, dentre outras medidas. Relativamente comuns em situações de normalidade social, no contexto atual da pandemia do novo coronavírus e crise econômica essa saída tende a se proliferar, na medida em que os agentes de mercado buscam se proteger dos efeitos da crise, ao mesmo tempo em que o Poder Público se mostra mais sensível a garantir algum tipo de "proteção" à atividade econômica de setores mais suscetíveis a instabilidades.

Apesar destas iniciativas estarem a princípio acobertadas pela chamada isenção antitruste (uma vez que presentes outras razões de interesse público que possam justificar uma política setorial de mitigação da concorrência para atendimento da necessidade de maximização de outros primados constitucionais que impõem uma atuação mais presente/impositiva do Estado), os danos à livre concorrência e, por consequência, aos consumidores inevitavelmente se impõem em algum momento, e por isso não podem ser ignorados pela autoridade antitruste. 

Neste contexto, importa a estratégica atuação que o Cade desempenha, por meio de sua Procuradoria Federal Especializada, frente a ações que questionam a legalidade ou constitucionalidade destas regras. Como se pode intuir, enquanto o monitoramento de propostas legislativas federais e de normas das agências reguladoras pode ser efetuado - e efetivamente o é - de maneira centralizada (e por meio de participação ativa e pretérita à edição da norma), o acompanhamento de normas estaduais e municipais que restrinjam a concorrência é muito mais complexo e demanda uma visão mais holística sobre uma situação já cristalizada. Aqui, bem-vinda a disposição da lei 12.529/11 que expressamente prescreve o chamamento ao processo e oitiva da autoridade antitruste quando da discussão judicial de uma situação que envolva o direito da concorrência (artigo 118).

Como exemplo recente, o Supremo Tribunal Federal julgou a ADI 5986, declarando por unanimidade a inconstitucionalidade da lei 19.429, de 15 de março de 2018, do Estado do Paraná (relator ministro Gilmar Mendes). A lei estadual desafiada na ADI dizia respeito ao estabelecimento de um piso mínimo nos pagamentos realizados aos cirurgiões-dentistas pelas pessoas jurídicas que operam planos de assistência odontológica no Estado do Paraná (tabela da Classificação Brasileira Hierarquizada de Procedimentos Odontológicos - CBHPO). 

Chamado a se manifestar, o Cade argumentou que, ao estabelecer um piso mínimo de remuneração por tabelamento, a lei estadual inibiu os efeitos benéficos de uma concorrência saudável ao consumidor de longo prazo, na medida em que impediria a prestação de serviços mais baratos, ao mesmo tempo que desincentivaria a inovação e o incremento de qualidade pelos profissionais de saúde.

Demandas de caráter semelhante tramitam na Suprema Corte e em outros Tribunais pátrios. A que possivelmente mais chama a memória é a discussão sobre a "tabela de frete" (lei 13.703, de 2018, desafiada na ADI 5956), ocasião em que o Cade, apesar de reconhecer a existência de uma situação de crise que demandava atuação estatal, se posicionou de maneira contrária ao estabelecimento de uma política de tabelamento diante das consequências para o consumidor e para próprio setor - em verdade, os efeitos de longo prazo iriam na contramão da própria intenção da norma.

Mas não apenas discussões judiciais de tabelamento estão no radar da Procuradoria do Cade. O "caso Uber" (ADPFs 449; Representação de Inconstitucionalidade 0055838-98.2015.8.19.000 no Tribunal de Justiça do RJ; Ação Direta de Inconstitucionalidade 2216901-06.2015.8.26.0000 no Tribunal de Justiça de SP) também foi arena de amplas discussões. Nestas ações, o Cade defendeu judicialmente as vantagens competitivas e consumeristas na abertura de mercado (no caso, transportes) para inovações tecnológicas disruptivas que diminuíam a assimetria informacional e, por tal razão, propiciavam um serviço mais barato e de melhor qualidade aos consumidores. As ponderações foram determinantes para o reconhecimento da inconstitucionalidade das leis que limitavam a implantação de aplicativos de transporte de passageiros e bens.

Em geral, temos dentre as principais consequências destes tipos de política invasiva sobre a livre iniciativa: mitigação de liberdade contratual, impactando nos interesses individuais (marcados pela especificidade de situações) e incentivando a colusão; incremento de custos na cadeia de formação de preços (repasse), diminuindo a capacidade de barganha dos consumidores; redução dos incentivos de inovação (na produção ou prestação de serviço), e por consequência perda de qualidade; possibilidade de desvio de demanda para produtos ou serviços substitutos, impactando diretamente o setor que se pretende proteger.  

Tais efeitos são implicações deletérias comuns, na literatura antitruste, de uma equivocada fixação artificial das variáveis de mercado, efetuadas por uma atuação estatal reativa ao desejo de salvar setores da economia sem o necessário estudo e debate técnico. Apesar de conhecidas na academia, por vezes não são devidamente elencadas, sopesadas e enfrentadas nos parlamentos (ou mesmo nos órgãos competentes para regulação). A história brasileira está repleta de exemplos de protecionismo mediante ferramental de controle das variáveis do mercado e intervenção direta dos mais variados tipos, mecanismos muito planificados e estáticos para dar conta de equilíbrios que são por definição fenômenos dinâmicos, e cujo descompasso com a realidade pode causar sérios problemas, em razão de sinalizações equivocadas. 

Cabe à autoridade da concorrência trazer luz aos debates (sejam eles legislativos, regulatórios ou judiciais) quanto ao risco de seu uso, mesmo que aparentemente necessário em situações limítrofes, demonstrando que os efeitos destas políticas podem resultar em agravamento das condições que as motivaram, e orientando sua adoção apenas em caráter extraordinário e monitorado. No contexto da crise econômica gerada pelo isolamento social, bloqueio das cadeias produtivas e colapso de alguns setores, essa atividade certamente se intensificará. 

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*Alexandre Barreto é presidente do Cade.

*Rodrigo Belon Fernandes é procurador-chefe adjunto do Cade.

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