O coronavírus e a importância do planejamento sucessório
Esse momento pode ser uma boa hora para se organizar e se dedicar ao planejamento patrimonial e sucessório da família, seja porque isso traz diversas vantagens tributárias, seja porque isso pode prevenir litígios e conferir maior proteção empresarial e societária, preservando o patrimônio no núcleo familiar e conferindo maior segurança jurídica às pessoas envolvidas na sucessão.
segunda-feira, 27 de abril de 2020
Atualizado às 09:22
A pandemia de coronavírus (covid-19) trouxe para perto do brasileiro o medo em relação à morte e inúmeras incertezas econômicas. Em decorrência disso, um assunto muitas vezes negligenciado ganhou destaque: o planejamento sucessório, tanto que em apenas uma semana após o início das medidas restritivas o número de testamentos registrados em cartório no Estado do Paraná aumentou 70%.1 Porém, ao mesmo tempo em que o momento se mostra adequado ao planejamento sucessório, ele também exige cautela para que as ações tomadas durante esse período não sejam posteriormente invalidadas ou questionadas na justiça, vindo a causar um prejuízo ainda maior no futuro, como se vê em diversos planejamentos sucessórios de pessoas ilustres que viraram manchetes e tornaram as brigas de família assunto de jornal.
Principiando pelos testamentos, é bem verdade que sua elaboração não exige formalmente a presença de um advogado. Porém, a orientação de um especialista é recomendável em razão dos diversos limites à liberdade testamentária, a começar pela legítima, que corresponde a 50% do patrimônio do testador e deve ser destinado aos herdeiros necessários (arts. 1.845, 1.846 e 1.847). Embora pareça uma questão básica, a avaliação do patrimônio é algo complexo, em especial se envolver a avaliação de empresas e ativos intangíveis. No tocante aos aspectos formais dos testamentos, em tempos de pandemia e isolamento social, ganha relevo a questão referente às testemunhas. Isso porque todas as suas modalidades exigem sua presença, duas no caso dos testamentos públicos e cerrados (arts. 1.864 e 1.868 do CC), e três no caso dos testamentos particulares (art. 1.876 do CC).
A rigor, a regra que exige a presença das testemunhas no ato do testamento pode ser flexibilizada apenas no caso do testamento particular, que admite sua dispensa em casos excepcionais, conforme prevê o art. 1.879. Porém, nesse período de pandemia, há de se ressalvar a possibilidade de inovação em decorrência das dificuldades enfrentadas com o isolamento social, permitindo-se a utilização de meios eletrônicos de videoconferência para gravar a solenidade na presença de testemunhas, como se admitiu, por exemplo, na Escócia e em alguns estados dos EUA.2
Outro importantíssimo instrumento de planejamento sucessório são as holdings familiares, que permitem a concentração nelas da administração de todo o patrimônio familiar ou mesmo de cotas ou ações de outras empresas da família. Especificamente no que toca à doação das cotas ou ações aos herdeiros, destaque-se que é possível gravá-las com usufruto vitalício e com as cláusulas de inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade, o que confere significativa proteção ao patrimônio familiar. Isso sem falar no leque de vantagens tributárias que se abre com sua estruturação, o que abrange a utilização de alíquotas e deduções diferenciadas na tributação da renda, isenção na distribuição de lucros e dividendos e até mesmo aproveitamento de ágio.
Neste período de isolamento social, porém, a abertura de novas empresas foi sensivelmente impactada pela redução dos serviços notariais e pelo fechamento das juntas comerciais de alguns estados. Assim, em atenção à legislação de cada estado, cumpre ressalvar a possibilidade de se assinar digitalmente os documentos necessários à constituição das empresas, submetendo-os à apreciação da junta digitalmente. A Junta Comercial do Estado do Paraná, por exemplo, disponibilizou a maior parte de seus serviços on-line, o que inclui abertura, alterações e baixa das empresas utilizando o certificado digital.3
Ainda que possa ser classificado como um instrumento de planejamento sucessório autônomo, os acordos de acionistas ou de quotistas estão intimamente ligados às holdings familiares. Por meio deles, é possível equacionar os interesses de todos os envolvidos e até mesmo dirimir certos conflitos de interesse por meio de travas e de opções pré-formatadas entre futuros sucessores e patriarcas. Especificamente em relação à pandemia que enfrentamos, há de se ressalvar a possibilidade de que esses acordos sejam feitos de modo virtual, em conformidade com as leis vigentes e os regulamentos da sociedade. Ademais, acrescente-se a novel regulamentação trazida pela MP 931/20, que permitiu a realização de assembleias gerais de forma virtual. Assim, mesmo os acordos de acionistas que dependam de assembleia geral para ter eficácia plena serão viabilizados na prática, com as devidas adaptações. A título de lege ferenda, merece referência o art. 19 do PL 1.179/20, que amplia o permissivo da referida MP e autoriza, de modo ainda mais amplo, a realização de assembleias virtuais no âmbito das empresas.
Passando aos planos de previdência complementar, focaremos nossa análise nos dois mais conhecidos, a saber, o PGBL (Plano Gerador de Benefício Livre) e o VGBL (Vida Gerador de Benefícios Livre). Embora ambos sejam meios de organização e planejamento patrimonial, o PGBL tem natureza de aplicação financeira de longo prazo, ao passo que o VGBL tem natureza securitária. Isso faz com que embora ambos possam ser operados pelas mesmas instituições financeiras, eles têm tratamento jurídico substancialmente distinto. Assim, no VGBL, por força do disposto no art. 794 do CC, a rigor, o capital estipulado não está sujeito às dívidas do de cujus, não está limitado pela legítima, não é necessário inventário para a liberação dos valores aos beneficiários e, de acordo com a jurisprudência majoritária, sequer incide ITCMD.4 Quanto à tributação do IR, cabe a ressalva de que tanto o PGBL quanto o VGBL têm dois regimes, o progressivo e o decrescente,5 porém, no VGBL o IR incide apenas sobre os rendimentos (e não sobre o capital acumulado). Quanto à sua comunicabilidade no regime de comunhão parcial, merece referência o REsp 1.545.217, que definirá em um futuro breve a questão, ainda controversa.
Especificamente no que toca à pandemia de coronavírus, o PGBL e o VGBL são menos afetados do ponto de vista operacional, pois continuam sendo realizados pelas instituições financeiras credenciadas, e mais pela questão econômica. A queda na taxa de juros pode fazer com que muitos investidores tenham a tentação ou a necessidade de resgatar seus recursos para investi-los de outra forma. Porém, aqui algumas cautelas são necessárias. A primeira é verificar o custo da operação, que envolve, para além das taxas da instituição financeira o imposto devido no caso de resgate do dinheiro. Caso se verifique alguma boa oportunidade de negócio em outra operadora, que ofereça taxas e rendimentos melhores, destaque-se que isso é possível, sem maiores custos, se a migração ocorrer de um plano com tabela regressiva para um plano com tabela progressiva. Ressalve-se, ademais, que não é possível alterar a natureza do plano; se for um VGBL, não será possível sua conversão em PGBL, e vice-versa. Por fim, dado que a pandemia se caracteriza como evento de força maior, é possível, ainda, cogitar-se de uma redução do aporte periódico ou até mesmo da interrupção no seu pagamento por certo tempo, o que depende de uma negociação direta com a instituição financeira competente ou ordem judicial.
Por fim, citem-se os fundos de investimento, regulados pela primeira vez no Brasil pela lei 4.728/65. Destituídos de personalidade jurídica, eles têm natureza condominial, podendo ser conceituados, de acordo com a Instrução do CVM 555/14, como a comunhão de recursos destinada à aplicação por um gestor em ativos financeiros de qualquer natureza, o que inclui ações, debêntures, títulos de renda fixa, moedas, derivativos e até participação em empreendimentos imobiliários, empresas e direitos creditórios. Nesse período de incertezas e de alta volatilidade do mercado financeiro em virtude da pandemia, cabe a ressalva de que os fundos de investimento em geral e os fundos de investimento familiar em especial podem fechar a possibilidade de resgates, evitando, assim, problemas de liquidez.6 Tudo isso, porém, depende do regulamento de cada fundo e está sujeito, ainda, às diretrizes de investimento adotadas pelo seu gestor, que tem liberdade para gerir os recursos investidos.
Diante de todo o exposto, verifica-se que esse momento pode ser uma boa hora para se organizar e se dedicar ao planejamento patrimonial e sucessório da família, seja porque isso traz diversas vantagens tributárias, seja porque isso pode prevenir litígios e conferir maior proteção empresarial e societária, preservando o patrimônio no núcleo familiar e conferindo maior segurança jurídica às pessoas envolvidas na sucessão.
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1 Acesse aqui.
2 Acesse aqui.
3 Acesse aqui.
4 Vale ressalvar que a questão ainda pende de análise pelos tribunais superiores, porém, a maioria dos tribunais locais já declarou a inconstitucionalidade do ITCMD sobre o VGBL. Fonte: acesse aqui.
5 No regime progressivo, o total dos rendimentos do VGBL ao longo da aplicação sofrerá a retenção de 15% na fonte, porém, a alíquota definitiva dependerá da faixa de renda do segurado, que poderá ser de 0%, 7,5%, 15%, 22,5% ou 27,5%. Assim, é possível que o contribuinte tenha direito à restituição ou que tenha que complementar o valor devido a título de IR, a depender da faixa em que se encontra. Já no regime decrescente, o IR é cobrado sob alíquota independente, que não está relacionada à faixa de tributação do contribuinte, mas sim ao tempo da aplicação. Nesse caso, a alíquota será de 35% se o tempo de aplicação do VGBL for de 0 a 2 anos, 30% de 2 a 4 anos, 25% de 4 a 6 anos, 20% de 6 a 8 anos, 15% de 8 a 10 anos, ou 10% para 10 anos ou mais.
6 Acesse aqui.
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*Felipe Frank é academic fellow em Direito Empresarial por Harvard; mestre em Direito Empresarial (LLM) por Harvard; doutor e mestre em Direito pela UFPR; com intercâmbio acadêmico pela Scuola di Specializzazione in Diritto Civile dell'Università di Camerino (Unicam/Itália); graduado em Direito pela UFPR; foi assistente de pesquisa do min. Luís Roberto Barroso em Harvard. Atualmente é coordenador da pós-graduação de Direito das Famílias e Sucessões da Academia Brasileira de Direito Constitucional e sócio no escritório Manoel Caetano Advocacia.
*Ricardo Lucas Calderón é doutorando e mestre em Direito Civil. Coordenador da pós-graduação em Direito das Famílias e Sucessões da Academia Brasileira de Direito Constitucional. Professor dos cursos de pós-graduação da FGV, ISAE Curitiba, Escola Paulista de Direito e da Universidade Positivo. Diretor Nacional do IBDFAM - Instituto Brasileiro de Direito de Família. Vice-presidente da Comissão de Direito de Família da OAB/PR. Sócio do escritório Calderón Advogados, sediado em Curitiba/PR.