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Avanços necessários em processos de reparação de famílias afetadas por desastres ambientais e empreendimentos impactantes

Os processos de escolha das assessorias técnicas independentes remuneradas, para os casos de empreendimentos impactantes ou decorrentes de desastre, deveriam ocorrer de uma forma que garantisse mais autonomia às famílias afetadas, tanto na escolha das entidades, como na contratação e monitoramento de seus assessores.

sexta-feira, 24 de abril de 2020

Atualizado em 29 de abril de 2020 11:36

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A assessoria técnica a pessoas afetadas por empreendimentos impactantes é uma atividade imprescindível para que os conflitos que deles decorrem possam ser devidamente analisados e, quiçá, resolvidos. Ela se torna importante também para conflitos que decorrem de desastres ambientais. Pode ocorrer de forma voluntária ou remunerada, seja por pessoas físicas e jurídicas, com fins lucrativos ou não.

Recentemente, tivemos duas grandes tragédias ambientais em Minas Gerais. Uma em novembro de 2015 decorrente do rompimento da barragem de rejeitos de minérios da Samarco, no município de Mariana e, a outra, em janeiro de 2019 decorrente do rompimento da barragem de rejeitos de minérios da Vale no município de Brumadinho. Esses dois grandes desastres ambientais são importantes para a presente análise por dois motivos: primeiro, pelos danos ambientais causados ao longo de bacias hidrográficas, o que gerou impactos em diversos municípios1 e, segundo, pela conquista de se garantir às famílias afetadas, assessoria técnica independente, custeada pelos causadores dos desastres2.

Essa garantia de assessoria remunerada para pessoas afetadas também foi recentemente assegurada às populações afetadas pelo empreendimento Minas Rio de propriedade da Anglo American S/A na condicionante 393 do processo de licenciamento ambiental da etapa 34 deste empreendimento.

A remuneração da assessoria técnica, sem dúvida, permite que o apoio a estas famílias atingidas ocorra de forma mais efetiva e constante, diante das enormes dificuldades que decorrem dos impactos negativos de desastres e empreendimentos impactantes. Porém, a ausência de remuneração da equipe técnica não é o principal empecilho para a rápida, justa e efetiva resolução dos problemas e implementação das reparações necessárias.

A existência de preconceito de alguns atores sociais e, ainda, a constante desconfiança em relação aos pleitos das famílias afetadas são questões que prejudicam a efetiva solução dos problemas causados por estes desastres ou empreendimentos impactantes.

Há, ainda, a tutela excessiva do protagonismo dessas pessoas afetadas por diversas instituições, públicas ou privadas.

Em relação ao preconceito e à desconfiança há a infeliz ideia, presente em vários atores sociais, de que há fraudes e dolo das pessoas para conseguir reparação5. Um documento emitido recentemente pela Fundação Renova, responsável por conduzir a reparação no caso Samarco, é prova cabal desse fato. Trata-se de uma declaração a ser emitida por produtores rurais residentes à jusante da UHE Risoleta Neves (Candonga) para conseguir o fornecimento de silagem por decisão do juízo da 12ª Vara da Seção Judiciária da Justiça Federal de Minas Gerais. Vejamos em sua integralidade:

DECLARAÇÃO PARA FORNECIMENTO DE SILAGEM

Em 23/02/2020 o MM. Juízo da 12ª Vara Federal de Belo Horizonte determinou que a Fundação Renova forneça temporariamente os meios necessários para a aquisição de silagem pelos produtores rurais situados a jusante da UHE Risoleta Neves (Candonga), especialmente aos que possuem animais para produção leiteira, que manifestarem até 20.04.2020 que tiveram as suas atividades produtivas inviabilizadas em decorrência do rompimento da barragem de Fundão, utilizando-se dos mesmos critérios de elegibilidade e fórmula de cálculo de quantidade definidos pela Fundação Renova para a entrega de silagem aos produtores rurais entre Fundão e Candonga.

De acordo com a decisão de 01/04/2020 (Proc. 1000417-16.2020.4.01.3800), "Os produtores rurais a jusante de Candonga que manifestarem interesse no recebimento da silagem deverão, pessoalmente, firmar perante a Fundação Renova DECLARAÇÃO EXPRESSA" e, ainda, "a qualquer momento, a Fundação Renova não só poderá (mas deverá) identificar e trazer a juízo a situação de produtores que, eventualmente, estejam claramente agindo com má-fé, fraude ou abuso de direito, a fim de que as providências legais cabíveis sejam adotadas."

Diante disso, declaro, para os devidos fins de direito, que as informações prestadas abaixo são verdadeiras: I) Estou enfrentando dificuldades técnicas/operacionais na manutenção de atividades produtivas desenvolvidas em propriedade rural localizada na calha do Rio Doce, decorrentes do rompimento da barragem de Fundão, o qual, no meu entendimento, teria ocasionado impactos na minha produção agropecuária; II) Autorizo, a qualquer tempo, que a Fundação Renova possa entrar e vistoriar toda a propriedade rural, com vistas a identificar eventual área atingida e comprovação da alegada produção agropecuária; III) Tenho plena ciência de que o fornecimento dos meios de aquisição de silagem é provisório, temporário e excepcional, com vigência até outubro de 2020, SEM qualquer reconhecimento do direito a posterior recebimento por parte da Fundação Renova, Samarco Mineração S.A., Vale S.A. e BHP Billiton Brasil Ltda., ou, ainda, por parte do Juízo da 12ª Vara Federal de Belo Horizonte/MG; IV) Declaro que o montante a ser recebido da Fundação Renova será exclusivamente empregado na aquisição de silagem a ser utilizada para alimentação de animais mantidos para fins de atividade produtiva em áreas da propriedade rural, diretamente afetadas pelo rompimento da barragem de Fundão, nos termos de que trata esta declaração, e que a utilização destes recursos para quaisquer outros fins importará em quebra desta declaração e da boa-fé objetiva, acarretando a imediata suspensão do pagamento pela Fundação Renova; VI) Reconheço que é de minha única e exclusiva responsabilidade a seleção do fornecedor para a aquisição da silagem e o seu correto armazenamento e uso, bem como a guarda dos recibos para a eventual comprovação da utilização dos recursos para a compra de silagem, nos termos do item (IV) acima; VII) Estou ciente e concordo que receberei o valor de R$ ______ /mês, equivalente à ______ ton/mês, até, no máximo, outubro de 2020, observadas as condições e critérios estabelecidos no presente documento. Nestas condições, firmo esta declaração, em 02 (duas) vias de igual teor e forma, acompanhada da cópia dos seguintes documentos, cuja autenticidade garanto,: (I) RG; (II) CPF; (III) Comprovante de residência; e (IV) Comprovante dos dados bancários para o depósito do valor para compra da silagem.

____________, ____ de _______________________ de 2020.

O que se destaca e impressiona é que a declaração, além de ser firmada pelo produtor, terá que ter duas assinaturas de testemunhas. Mesmo assim, ainda salientam "em negrito" os termos fraude, abuso de direito e má-fé que podem permitir que a Fundação Renova cancele o benefício. Isso é uma pequena demonstração de como as pessoas são tratadas nesses processos de reparação com o preconceito de que a fraude é presumida, sendo considerada algo comum nesse contexto.

Essa infeliz atitude ainda é recorrente em diversas defesas judiciais quando essas pessoas afetadas procuram o Poder Judiciário para defender seus direitos. E como muitas dessas comunidades são rurais e carentes, a informalidade das relações sociais e econômicas é excessiva, o que, ao invés de ser interpretado com sensibilidade, acaba dando azo a que esses sentimentos de preconceito e desconfiança se aflorem.

Essa situação também ocorre, por exemplo, no monitoramento das atividades da assessoria técnica prestada na implementação da condicionante 39 no caso do empreendimento Minas Rio. Em várias análises feitas pela entidade que faz o gerenciamento, não se aceitam relatórios simples das atividades dos técnicos. É preciso apresentar "comprovação" das atividades exercidas, o que, em muitas atividades da assessoria técnica, é impossível. Esse controle das atividades deve ser exercido por quem mais interessa: as famílias beneficiadas, que deveriam participar não só da escolha, como da contratação, definição de regras e controle das atividades da entidade que presta a assessoria técnica.

Por fim, cita-se o segundo ponto de dificuldade do exercício da assessoria técnica independente remunerada. A tutela excessiva do protagonismo dessas pessoas afetadas por diversas instituições, públicas ou privadas.

Os recentes casos de implementação dessas assessorias não têm sido totalmente conduzidos por quem deveria: as famílias afetadas. Não ocorrendo desta forma, diversas regras acabam sendo definidas por atores como o Ministério Público, Defensorias Públicas e Advocacia Geral do Estado quando deveriam ser feitas pelos principais interessados, repito, as pessoas prejudicadas pelo empreendimento ou desastre. Por exemplo, a análise e a definição das regras dos planos de trabalho das assessorias técnicas acabam sendo totalmente conduzidas por essas entidades e não pelas famílias atingidas6.

Essa ausência de participação efetiva das populações afetadas ocorre desde o processo de escolha até a condução dos trabalhos da assessoria técnica remunerada, colocando-se regras que impedem a judicialização de questões pelas entidades contratadas e, ainda, a escolha de entidades com fins lucrativos para a assessoria. Em relação a esta última proibição, por exemplo, há algumas determinações de proibição para a assessoria de comunidades afetadas quando, para a assessoria aos entes da Justiça como o Ministério Público, inexiste essa proibição. Nesse sentido, entidades com fins lucrativos como Ramboll, AECOM, LACTEC têm sido contratadas como assessorias técnicas do Ministério Público. Várias delas possuem fins lucrativos, pois, o que importa é a capacidade técnica e independência para atuar no caso. Se o Ministério Público pode contratar, às custas do empreendedor ou causador do dano, empresas com fins lucrativos, por que existe essa proibição para as comunidades diretamente prejudicadas? O que importa é vedar o lucro ou a capacidade técnica para o exercício do assessoramento?

Logo, o que se percebe é que, ao não dar total independência para as famílias afetadas cuidarem de sua assessoria técnica, permite-se que questões ideológicas ou, de outra ordem, entrem no processo de escolha e contratação dessas entidades, o que não ocorreria se isso fosse conduzido com plena autonomia pelas famílias atingidas por estes tipos de desastres ambientais ou empreendimentos impactantes.

Neste sentido, os processos de escolha das assessorias técnicas independentes remuneradas, para os casos de empreendimentos impactantes ou decorrentes de desastre, deveriam ocorrer de uma forma que garantisse mais autonomia às famílias afetadas, tanto na escolha das entidades, como na contratação e monitoramento de seus assessores.

Uma alternativa para que isto seja permitido é que seja acordado com empreendedores ou causadores de desastres um montante financeiro disponível para a assessoria técnica remunerada. Definido o valor, caberia às entidades representativas das famílias afetadas (ou comissões) escolher seus assessores, os planos de trabalho e a forma de monitoramento dos serviços.

Não há dúvida que a contratação de assessorias técnicas independentes remuneradas para famílias afetadas por desastres ou empreendimentos impactantes é uma conquista e deve ser cada vez mais incentivada7. Porém, é preciso que seja repensada a maneira de se realizar estas contratações, de forma que se permita a estas famílias mais liberdade em suas tomadas de decisões ao escolherem, definirem regras, contratarem e monitorarem suas assessorias.

É preciso, ainda, estar atento para que preconceitos e desconfianças não influenciem os atores sociais que atuam nos processos de reparação para que o debate técnico ocorra de forma livre, no intuito de buscar a justa, rápida e efetiva reparação dessas pessoas.

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1 É o chamado litígio de difusão irradiada nas palavras do Dr Edilson Vitorelli "Litígios coletivos de difusão irradiada: é aquela em que a lesão ou ameaça de lesão atinge diretamente os interesses de diversas pessoas ou segmentos sociais, mas essas pessoas não compõem uma comunidade, não tem a mesma perspectiva social e não serão atingidas, na mesma medida, pelo resultado do litígio, o que faz com que suas visões acerca de seu resultado desejável sejam divergentes e, não raramente, antagônicas" (Edilson Vitoreli, "Tipologia dos litígios transindividuais: um ponto de partida para a tutela coletiva". Repercussões do novo CPC - Processo Coletivo, 2016)

2 Vide parágrafo segundo da cláusula quarta do TAC GOV no caso Samarco e item 7 do Aditivo ao TAP . No caso Vale esse direito foi assegurado no processo judicial número 010709-36.2019.8.13.0024. Vide ainda Clique aqui.

3 Essa é a redação da condicionante ambiental: "Custear a contratação e disponibilizar Assessoria Técnica Independente e multidisciplinar, a ser escolhida por cada comunidade, a fim de subsidiar a participação ampla e informada de todas as comunidades em todos os planos, programas e ações de responsabilidade do empreendedor junto às comunidades que sofreram ou sofrem algum dano ou que tenham seu modo de vida afetado pelo empreendimento, devendo contemplar, no mínimo, as comunidades de Água Quente, Beco, Turco, Cabeceira do Turco, Córregos, Itapanhoacanga, Passa Sete, São Sebastião do Bom Sucesso (Sapo), São José do Jassém, São José do Arruda, São José da Ilha e Taporoco".

4 Número base 472/07.

5 Isso, até pode ocorrer em uma mínima e pequena escala, mas, não é a regra.

6 Por exemplo, no caso da ATI 39, há clara divergência entre a comunidade afetada (que deseja que a entidade contratada faça a judicialização de questões) com o Ministério Público Estadual de Minas Gerais que não concorda com esse pleito. Qual o interesse que deve vigorar? Dos afetados ou do Ministério Público? Quem é o maior interessado?

7 Tese defendida em meu livro "Avanços e Contradições do Licenciamento Ambiental de Hidrelétricas" publicado pela Editora Fórum.

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*Leonardo Pereira Rezende é advogado, sócio diretor do escritório Leonardo Rezende Advogados Associados, assessor jurídico do NACAB (Núcleo de Assessoria às Comunidades Atingidas por Barragens) e consultor do Centro Alternativo de Formação Popular Rosa Fortini.

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