Acordo de não persecução penal e sua aplicação a processos em curso
Inserindo-se no movimento de despenalização do Direito Penal, tal opção legislativa funda-se em modelo consensual de solução de conflitos e tem como corolário a mitigação do princípio da obrigatoriedade da ação penal pública incondicionada.
segunda-feira, 27 de abril de 2020
Atualizado às 08:28
O acordo de não persecução penal (ANPP) foi introduzido no sistema normativo brasileiro pela resolução CNMP 181/17 e posteriormente inserido no art. 28-A do Código de Processo Penal pela lei 13.964/19. Trata-se de espécie de medida despenalizadora, alinhando-se a institutos como suspensão condicional do processo e transação penal, estas dispostas na lei 9.099/95.
Inserindo-se no movimento de despenalização do Direito Penal, tal opção legislativa funda-se em modelo consensual de solução de conflitos e tem como corolário a mitigação do princípio da obrigatoriedade da ação penal pública incondicionada, o qual impõe a persecução de todo delito que venha a ocorrer.
Profundas são as mudanças operadas no modelo tradicional de persecução penal, centrado na política de encarceramento. No novo modelo, para infrações de pequena e média gravidade, a pena criminal é substituída por medidas alternativas. Com isso, busca-se a solução do conflito social por medidas menos ortodoxas, mais afinadas com a complexidade da sociedade contemporânea, com os fundamentos do Direito Penal e fins da sanção por ele cominada.
O ANPP aplica-se a todas as infrações, independentemente do bem jurídico tutelado, sendo, portanto, cabível nos delitos contra Administração Pública e nos crimes eleitorais.
Pelo art. 28-A do CPP, são requisitos para o entabulamento do acordo o caso não ser de arquivamento do inquérito policial, a existência de confissão formal e circunstancial, o delito não ter sido praticado mediante emprego de violência ou grave ameaça (a pessoa) e ter cominada pena mínima inferior a quatro anos, além de ser a medida necessária e suficiente para reprovação e prevenção do crime.
No tocante à pena mínima requerida, devem ser consideradas as causas de aumento e de diminuição aplicáveis ao caso concreto (CPP, art. 28-A, §1º). Contudo, na hipótese de concurso material de crimes, entendemos que se deve considerar cada uma das penas cominadas aos crimes praticados de forma autônoma, e não a soma delas. Não se afigura cabível a aplicação por analogia da súmula 243 do STJ, que veda a suspensão do processo "às infrações penais cometidas em concurso material, concurso formal ou continuidade delitiva, quando a pena mínima cominada, seja pelo somatório, seja pela incidência da majorante, ultrapassar o limite de um (01) ano" - sob pena de ser imposta situação mais gravosa ao investigado, ainda que inexistente lacuna legislativa.
O art. 28-A do CPP também elenca as condições a serem cumpridas pelo investigado, que podem ser ajustadas cumulativa e alternativamente no acordo.
Em seu segundo parágrafo, o citado dispositivo excepciona as hipóteses de cabimento do acordo, vedando a sua realização: se for cabível transação penal de competência do Juizado Especial Criminal; se o investigado for reincidente ou se houver elementos probatórios que indiquem conduta criminal habitual, reiterada ou profissional, exceto se insignificantes as infrações penais pretéritas; ter sido o agente beneficiado nos cinco anos anteriores ao cometimento da infração, em acordo de não persecução penal, transação penal ou suspensão condicional do processo; e nos crimes praticados no âmbito de violência doméstica ou familiar, ou praticados contra a mulher por razões da condição de sexo feminino, em favor do agressor.
Com a positivação do ANPP, muitas e controvertidas questões têm sido levantadas. Entre elas, destaca-se a atinente ao direito intertemporal. Discute-se se o ANPP é cabível para os processos em curso quando da entrada em vigor da lei 13.964/19, ou se apenas será aplicado a casos futuros. Na primeira hipótese, necessário determinar se haverá condicionante de sua incidência em razão da fase em que o processo se encontra.
Há quem defenda a impossibilidade da aplicação do instituto em exame aos processos criminais em andamento. A despeito da escassez de julgados sobre o tema, houve uma decisão da 8ª Turma do TRF da 4ª Região nesse sentido (apelação criminal 5003596-39.2016.4.04.7002), segundo a qual a regra inscrita no art. 28-A do CPP possui caráter meramente processual, estando intrinsecamente ligada ao procedimento da ação penal e, portanto, deve ser aplicada sob os ditames do tempus regit actum, de modo a produzir efeitos próprios a partir da entrada em vigor do dispositivo em referência.
Ademais, em interpretação literal, agita-se o argumento de que a disposição legal sobre o ANPP trata o agente do delito como "investigado", o que afastaria sua aplicação a processos curso. Outro argumento literal é o fato de que a homologação do acordo, nos termos do art. 3º-B, XVII do CPP, caberia ao juiz de garantias, o qual possui estrita competência pré-processual (lembre-se que a disposição do juiz de garantias teve sua eficácia suspensa por decisão liminar do STF nas ADIn 6298, 6299, 6300 e 6305).
Em reforço a essa interpretação, invoca-se ainda um argumento histórico consistente em que o projeto de lei 882/19 contemplava dois institutos: o ANPP e o acordo de não continuidade da persecução penal (art. 395-A que seria inserido no CPP). Todavia, tal PL foi arquivado por restar prejudicado em face da aprovação em Plenário do substitutivo (PL 10.372/18), tendo sido determinado o apensamento de ambos. A partir da nova tramitação, não houve a aprovação do acordo de não continuidade da persecução penal, ou seja, após o oferecimento da denúncia, tendo restado tão somente o acordo de não persecução. Destarte, a diferenciação no projeto de lei originário demonstraria a intenção do legislador em distinguir os institutos e reservar o acordo de não persecução penal às situações em que não há ação penal em curso.
Ocorre que esses argumentos apenas deixam claro que o ANPP é instituto típico da fase pré-processual - e disso não se discorda.
Em verdade, a relevante discussão que se apresenta não é sobre a normal aplicação do instituto em testilha, mas sim sobre o seu cabimento quando se exige a análise do direito intertemporal. A questão surge nos casos em que caberia o acordo se a lei (mais benéfica) já estivesse em vigor no momento da formação da opinio delicti e formalização da denúncia.
Bem sopesados os fundamentos acima expendidos, força é concluir que não cumprem o objetivo de afastar a retroatividade da lei penal material mais benéfica.
É inegável que o novel dispositivo possui caráter híbrido (processual e material). Isso pois, a norma possui natureza despenalizadora e reforça os direitos penais subjetivos do investigado, ou seja, está diretamente relacionada ao ius puniendi estatal. A norma aborda diretamente a aplicação de pena e extinção de punibilidade, além da reincidência, o que evidencia sua dimensão material. Mas cuida-se, também, de negócio jurídico pré-processual a ser entabulado entre o Ministério Público e o investigado com seu defensor.
Ostentando a norma dimensão penal mais benéfica ao réu, deve ter aplicação alargada em razão da consagração no art. 5º, XL, da Constituição do direito fundamental atinente à novatio legis in mellius, segundo o qual "a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu". Em igual sentido dispõe o § único, art. 2º, do Código Penal: "a lei posterior, que de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado".
Entendimento diverso também implicaria afronta vitanda ao princípio da isonomia. Veja-se: duas pessoas que cometeram delitos na mesma data, a depender do andamento do inquérito policial e do processo penal, poderiam estar ou não acobertadas pela possibilidade do acordo. Ou seja, se para um dos agentes o procedimento ocorreu de forma célere e houve oferecimento de denúncia antes da vigência da lei 13.964/19, para ele o acordo restaria prejudicado. A afronta à isonomia seria ainda mais evidente - e grave - na hipótese de concurso de pessoas, em que houvesse aditamento da denúncia para incluir coautor ou partícipe, pois, nesse caso, o corréu por primeiro denunciado não faria jus ao benefício que teria de ser oferecido ao seu parceiro na empreitada criminosa.
Outrossim, sob a ótica do princípio da obrigatoriedade, trata-se de poder-dever de agir do Estado, porquanto, desde que presentes os requisitos legais, há mister abrir-se ao réu a oportunidade de ter sua punibilidade extinta mediante a proposição de acordo pelo Ministério Público e consequente cumprimento das condições convencionadas.
Já sob o prisma do investigado/réu tem-se verdadeiro direito subjetivo, pois o Estado (que age pelo Ministério Público) não pode se negar a oferecer a proposta quando os requisitos legais se apresentarem.
Note-se que o inciso III, § 2º, art. 28-A, do CPP faz a correlação entre as normas despenalizadoras ao vedar a possibilidade do ANPP para quem já tiver se beneficiado "em acordo de não persecução penal, transação penal ou suspensão condicional do processo" nos cinco anos anteriores ao cometimento do crime. É reforçada, pois, a íntima vinculação entre os três institutos.
E se assim é, vale lembrar que a lei 9.099/95 trouxe em seu art. 90 uma tentativa de obstar a aplicação da transação penal e do sursis processual aos processos penais cuja instrução já estivesse iniciada. Porém, na ADIn 1.719-9, o Pleno do STF conferiu àquele dispositivo interpretação conforme à Constituição para excluir de sua abrangência as normas mais favoráveis ao réu que também possuíssem caráter penal, como as despenalizadoras. Assentou o Excelso Pretório: "[...] Contudo, as normas de direito penal que tenham conteúdo mais benéfico aos réus devem retroagir para beneficiá-los, à luz do que determina o art. 5º, XL da Constituição Federal. Interpretação conforme ao art. 90 da Lei 9.099/95 para excluir de sua abrangência as normas de direito penal mais favoráveis ao réus contidas nessa lei." (STF, ADIn, rel. min. Joaquim Barbosa, Tribunal Pleno, j. em 18.06.07). Assim, quando o Legislativo procurou restringir a retroatividade de institutos similares ao ANPP, o Supremo Tribunal interviu para garantir a plena eficácia das normas constitucionais.
Note-se que a Suprema Corte não delimitou até qual fase do trâmite processual as leis penais de caráter mais benéfico podem retroagir. Nem poderia fazê-lo, dado que qualquer limitação ofenderia a letra e o espírito do art. 5º, XL, da Constituição, que apresenta textura ampla. Não foi firmado, portanto, o entendimento de que a sentença seria o marco final para o cabimento dos institutos despenalizadores, até porque não era esse o objeto do debate da referida ADIn 1.719-9.
A despeito de divergência jurisprudencial (ex.: STJ - HC 150.229/DF, rel. min. Laurita Vaz, 5ª T., DJe 24.5.10; STJ - AgRg nos EDcl no REsp 1.611.709/SC, rel. min. Felix Fischer, j. em 4.10.16), a verdade é que inexiste preceito normativo apto a reduzir o âmbito de incidência da retroatividade da lei penal mais benéfica, fixada pela Lex Mater, vértice do sistema jurídico brasileiro. Deveras, não há na Constituição norma que limite a aplicação do direito fundamental em função da fase de tramitação em que o processo se encontre.
É também o que indica a razoabilidade e a proporcionalidade. Nesse sentido, tem-se argumento prático inconteste: o ANPP, ainda que, no caso de sentença prolatada, não possa mais afastar a penúria passada pelo acusado em razão do trâmite processual (streptus judicii), o traria a benesse de, após extinta a punibilidade, não ostentar maus antecedentes nem induzir reincidência penal.
O fato de o acusado não ter confessado o delito no curso do inquérito policial ou do processo penal não deve obstar a firmação de eventual acordo. Deve ser-lhe oportunizada a chance de confessar o delito, após notificação específica emanada do Ministério Público, ponderando as vantagens que obteria com o ato negocial. Não é razoável que a negativa do agente em momentos anteriores, quando o instituto em testilha sequer existia, obstaculize a negociação e sua efetivação. Ainda porque, diversas eram as regras do jogo.
No que tange à atribuição para propor e à competência para homologar o acordo, ainda que o processo esteja em grau superior de jurisdição, parece indubitável a competência dos órgãos de primeiro grau (MP e juiz) para ultimar as medidas pertinentes, uma vez que da não homologação do acordo pelo juiz é previsto o cabimento de recurso em sentido estrito (CPP, art. 581, inciso XXV), via adequada para impugnar apenas decisões prolatadas na primeira instância. Com efeito, no caso concreto, não é impossível que surja conflito a respeito das cláusulas do negócio e mesmo acerca de sua homologação. Nesse caso, há mister que a parte tenha instrumento processual apto a viabilizar o debate acerca da controvérsia e, pois, a efetiva revisão do ato. Por óbvio, caso a homologação ocorresse diretamente no segundo grau de jurisdição, não seria possível a interposição de recurso excepcional (recurso especial e extraordinário), pois neste é vedado o revolvimento de matéria fática. Afrontados, nesse caso, estariam os princípios do duplo grau de jurisdição, do contraditório e da ampla defesa.
Sobremais, no âmbito recursal, em numerosos casos haverá impossibilidade de o acordo ser negociado e efetivado pelo simples motivo da longínqua localização das sedes do Ministério Público e dos tribunais. É deveras desarrazoado pretender que o réu e seu defensor se desloquem para tão longe a fim de buscarem firmar eventual acordo. Não se pode olvidar que o benefício se trata de direito subjetivo do investigado/réu, observado a partir do poder-dever de agir do Estado, desde que presentes os requisitos para tanto. Não poderia, portanto, ser obstaculizado dessa forma.
No que concerne à sentença condenatória, sendo o acordo de não persecução penal proposto pelo órgão do MP, aceito pelo réu e sua defesa, homologado pelo juiz e devidamente cumprido, tal certamente afetará aquele ato decisório, que terá subtraída sua eficácia. Não se trata de anular a sentença, pois esta não é inválida, mas apenas de paralisar a sua eficácia. Por outro lado, a retirada de eficácia não é efeito que decorre do acordo em si, mas, antes, da regra inscrita no art. 5º, XL, da Constituição, que, insista-se, determina a retroatividade da lei penal mais favorável. No caso, a imperativa retroatividade da lex mitior tem o condão de subtrair a eficácia da sentença.
Deveras, antes do devido cumprimento das condições estabelecidas no ANPP haverá suspensão da eficácia dos atos processuais, a qual se restabelecerá com eventual desfazimento do acordo, caso restem descumpridas suas cláusulas. Não há espaço para se falar em invalidade dos atos processuais praticados, ante a ausência de qualquer vício, sob pena de violação ao ato jurídico perfeito.
A sentença penal absolutória, por outro lado, não deve obstar, por si só, a possibilidade do acordo. Isso porque, apesar de ter sido absolvido em primeiro grau, encontrando-se o processo em sede recursal, a condenação ainda é uma possibilidade real ao acusado. A discricionariedade de aceitar eventual acordo não pode ser cerceada em nenhuma instância judicial, porquanto, no Estado Democrático de Direito, o réu, como pessoa, é senhor de seus atos, e somente a ele é dado avaliar a conveniência de praticá-los.
Note-se que a negociação para firmamento do ANPP deve ser suscitada pelo próprio MP, não sendo questão restrita à defesa, notadamente pela atuação daquela instituição como custos iuris. Há verdadeiro dever de diligência, extraído do devido processo legal e das funções institucionais do Parquet em assegurar os direitos fundamentais, sendo incompatível a postura de "cegueira deliberada" perante direito subjetivo do investigado/réu. É isso, aliás, o que indica a letra da lei ao dispor que "o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal", ou seja, a iniciativa negocial fica a cargo do órgão ministerial.
Se não bastasse a necessidade de atuação imparcial e fiscalizatória do MP, impõe-se sua atuação sob a ótica da utilidade processual. Caso não seja feita a análise de cabimento do ANPP, há grande possibilidade de que após ser consolidado entendimento pelos tribunais superiores no sentido de ser a norma aplicável aos processos em trâmite - como ocorreu na ocasião da lei 9.099/95 na ADIn 1.719-9 - todos os atos processuais praticados, após a vigência da lei 13.964/19, estejam eivados de nulidade. Além do evidente prejuízo quanto ao retrocesso dos procedimentos, diversas ações penais seriam extintas em razão da configuração da prescrição, ante a desconsideração de seus marcos interruptivos.
Em conclusão, tem-se que, como toda inovação, o ANPP vem gerando debates sobre seu procedimento e concreta aplicação. Não há negar que esse instituto constitui um marco significativo para o desafogamento do sistema Judiciário e, por conseguinte, para a efetividade da jurisdição penal. A realidade evidencia que o sistema processual brasileiro é disfuncional; a tramitação de processos demora em demasia e há baixa efetividade, havendo grande número de processos que se encerram com o reconhecimento da prescrição da pretensão punitiva estatal. Se é certo que se deve concentrar as energias dos órgãos jurisdicionais na persecução de crimes de maior gravidade, a fim de que sejam finalmente punidos com a efetividade reclamada pela sociedade, tal, deve ocorrer sem menoscabo dos direitos fundamentais.
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*José Jairo Gomes é doutor em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais, Procurador Regional da República e Procurador Regional Eleitoral. Autor do Grupo Gen - Editoras Forense, Método e Atlas
*Danielle Torres Teixeira é graduada em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais, Pós Graduada em Ciências Criminais pela Fundação Escola Superior do Ministério Público de Minas Gerais.