Covid-19 e contratos: Uma retrospectiva da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça em momentos de crise
Se é certo que atravessamos um momento em que já não parece possível estimar com o usual grau de assertividade tranquilidade o potencial resultado das decisões, é igualmente correto afirmar que não se pode exigir do bom gestor o embasamento de suas posições por elementos que não estejam disponíveis no presente.
sexta-feira, 24 de abril de 2020
Atualizado às 08:43
A pandemia do novo coronavírus, maior desafio da humanidade desde a Segunda Guerra Mundial, deve também ser tratada como uma séria crise social e econômica.1
Nesse contexto, empresários diuturnamente tomam decisões relevantes e urgentes para melhor proteger os seus negócios e as pessoas. Uma rápida e assertiva atuação é o que deles se espera - e, em verdade, o que eles exigem de si.
Dentre as tantas decisões a serem adotadas, assumem especial relevância as relativas aos contratos civis e empresariais. Clientes, fornecedores, investidores, financiadores e tantos outros. O que fazer com esses contratos? Romper ou renegociar? Adimplir ou simplesmente deixar de pagar as obrigações?
Se é certo que atravessamos um momento em que já não parece possível estimar com o usual grau de assertividade tranquilidade o potencial resultado das decisões, é igualmente correto afirmar que não se pode exigir do bom gestor o embasamento de suas posições por elementos que não estejam disponíveis no presente.
E, nessa matéria, o ordenamento jurídico brasileiro, construído ao longo da história e, portanto, de crises diversas, traz sim balizadores que podem servir de referência para a tomada da decisão.
O objetivo desse estudo, assim, é, a partir da análise retrospectiva da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) em cenários de crise, apresentar ao menos alguns direcionadores que possam contribuir para a avaliação dos contratos civis e empresariais2.
À luz dos reflexos da pandemia sobre os contratos, é possível, a título didático, dividi-los em dois grandes grupos: (I) aqueles em que o inadimplemento decorre de uma efetiva impossibilidade de cumprimento da prestação; e (II) aqueles, de prestação continuada ou diferida, cujo cumprimento será difícil ou extremamente oneroso, inexistindo impossibilidade objetiva de cumprimento da prestação. Vejamos.
Ao enfrentar as ações em que a parte devedora alega impossibilidade de cumprimento da prestação por fato superveniente e inevitável que não lhe é imputável, o STJ tem adotado posição uníssona. É possível afastar a responsabilidade da parte pelo inadimplemento contratual quando caracterizado caso fortuito e de força maior, salvo se houver assumido expressamente tal risco contratual ou a tal remédio renunciado.
Conforme preceitua o art. 393, parágrafo único, do Código Civil brasileiro (CC), o caso fortuito ou de força maior3 verifica-se no "fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir".
Para o STJ, assim, é adequada a subsunção do fato a tais excludentes quando presentes "a necessariedade (fato que impossibilita o cumprimento da obrigação) e a inevitabilidade (ausência de meios para evitar ou impedir as consequências do evento)"4. A impossibilidade de cumprimento da obrigação, por sua vez, deverá ser absoluta5.
Esclarece-se, ainda, a imprescindibilidade de comprovação do nexo causal, uma vez que, "ao caráter inevitável e necessário do fato, de sua vez, vincula-se uma terceira característica, que é a de dar causa à impossibilidade de realização da prestação devida."6 Não por outra razão, inclusive, não poderá se valer de tais excludentes a parte que já estiver em mora quando da ocorrência do evento7.
Além disso, o evento superveniente não poderá caracterizar fortuito interno, ou seja, consistir em "riscos esperados da atividade empresarial desenvolvida"8 pela parte. Haverá o devedor, portanto, que demonstrar que os efeitos da pandemia que impossibilitam de forma direta o cumprimento da obrigação contratada não compõem os riscos ordinários de seu negócio.
Nesse sentido, é importante registrar que o STJ já se posicionou no sentido de que "eventual insucesso do empreendimento ou dificuldades financeiras estão, inexoravelmente, abrangidos pelo risco inerente a qualquer atividade empresarial, não podendo ser considerados fortuito externo (força maior)".9
Equivocada, pois, a presunção de que as dificuldades financeiras decorrentes da pandemia de covid-19 ou quaisquer outros de seus efeitos, apesar da sua gravidade, caracterizarão as excludentes de responsabilidade de caso fortuito e de força maior.
Em síntese, será necessário demonstrar que o efeito da pandemia se caracteriza, cumulativamente, como: evento externo; objetivamente inevitável; e causa objetiva da impossibilidade do cumprimento absoluto da obrigação.
Uma vez verificado o caso fortuito ou de força maior, extingue-se a obrigação, sem que qualquer das partes arque com os prejuízos decorrentes do inadimplemento contratual, retornando-se ao status quo ante.
Para evitar enriquecimento sem causa, "o devedor deverá restituir ao credor o que porventura recebeu anteriormente, e, havendo recusa da parte deste, poderá recobrar o indevido."10
Já em relação ao segundo grupo mencionado, o dos contratos de execução continuada ou diferida, cujo cumprimento das obrigações se torne excessivamente oneroso em razão dos efeitos da pandemia, vislumbra-se a análise de duas possibilidades: (I) a revisão contratual; (II) ou a sua resolução.
Se a pandemia e seus reflexos - na qualidade de motivos imprevisíveis - causarem uma desproporção manifesta entre a prestação originariamente contratada e a representação econômica dessa prestação no momento de seu cumprimento, a parte prejudicada poderá pleitear a revisão para assegurar o seu valor real, conforme expressamente previsto no artigo 317 do CC.11
Contudo, se a parte prejudicada não desejar manter o vínculo contratual, é possível que requerer até a resolução do pacto, desde que preenchidos os requisitos do artigo 478 do CC12, com base na teoria da onerosidade excessiva.
Nesse caso, não se pode ignorar que, apesar da existência de posicionamentos doutrinários e jurisprudenciais contrários, prevalece a tese de que a caracterização da onerosidade excessiva pressupõe, além da desvantagem desproporcional para uma parte contratante em razão o acontecimento extraordinário e imprevisível, "a existência de vantagem extrema da outra parte."13
Sobre o ponto, é válido registrar que a resolução contratual por onerosidade excessiva aparenta ter uma aplicação ainda mais restrita neste momento, já que se verifica uma crise generalizada, que não afeta apenas um setor da economia. Será comum que ambos os polos contratantes experimentem prejuízos em razão do negócio entre eles firmado e raro apenas um deles auferir vantagem excessiva, não sendo possível a utilização da teoria.14
Quer se pretenda aplicar o art. 317, quer o 478 do CC, o STJ entende que, em se tratando de contratos paritários, a intervenção do Poder Judiciário na avença:
"(....) exige a demonstração de mudanças supervenientes nas circunstâncias iniciais vigentes à época da realização do negócio, oriundas de evento imprevisível (teoria da imprevisão) ou de evento imprevisível e extraordinário (teoria da onerosidade excessiva) (...)"15
Assim, é imprescindível demonstrar a ocorrência de fato superveniente que seja extraordinário e/ou imprevisível e afete diretamente as bases iniciais do contrato.
Desse modo, um primeiro desafio será avaliar, à luz do enunciado 175 da III Jornada de Direito Civil16, se a pandemia de covid-19 e seus efeitos econômicos e sociais serão considerados como fatos imprevisíveis e, consequentemente, se serão autorizadores da aplicação dos dispositivos do CC supramencionados.
Nessa perspectiva, um novo corte a ser feito é em relação aos contratos firmados ou aditados durante a crise pandêmica. Por certo, para essas partes, os efeitos da covid-19 não mais serão considerados imprevisíveis ou extraordinários.17
No que tange aos pactos já celebrados, tomando-se por base a mais recente crise financeira mundial, ocorrida em 2008, o posicionamento adotado pelo STJ foi mais conservador, entendendo pela manutenção do "pacta sunt servanda". Destaca-se argumento do min. Paulo de Tarso Sanseverino de que:
"(...) a crise econômica mundial, que ultimamente tem-se tornado situação reiterada e corriqueira para qualquer investidor, não pode prestar a justificar a onerosidade de uma obrigação (...)" (AgInt no AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL 646.945/SP (2014/0328733-2)
Por sua vez, mesmo sem analisar a questão sob a ótica dos contratos paritários, a Quarta Turma do STJ ratificou o entendimento de que não se configura como fato imprevisível ou extraordinário eventual desemprego ou redução da renda do contratante.18
Seguindo a linha menos intervencionista, a Terceira Turma concluiu que, em contratos indexados com base na variação de moeda estrangeira, "as flutuações cambiais, porque naturais nesse tipo de indexação, não poderiam sustentar, em uma relação paritária, a adoção da teoria da imprevisão, mesmo quando extraordinária a flutuação."19
E a Segunda Turma que "não se mostra razoável o entendimento de que a inflação possa ser tomada, no Brasil, como álea extraordinária, de modo a possibilitar algum desequilíbrio na equação econômica do contrato, como há muito afirma a jurisprudência do STJ."20
Ou seja, para o STJ, os "riscos ordinários do negócio" não podem servir de fundamento para se recorrer a tais teorias.21
Assim, os efeitos econômicos da pandemia de covid-19, apesar de extremamente penosos, não serão facilmente considerados como fatos extraordinários ou imprevisíveis capazes de permitir a revisão ou a resolução judicial dos contratos firmados anteriormente.
Ademais, imperioso demonstrar que o fato efetivamente impactou a capacidade de cumprimento da obrigação, ou seja, demonstrar o já mencionado nexo causal.22 Aqui também não poderá a parte estar em mora ao tentar pleitear a revisão ou extinção do contrato em razão do desequilíbrio.23
Diante de todo o exposto, a parte que pretende pleitear o provimento jurisdicional com base na teoria da imprevisão ou da onerosidade excessiva não pode se esquivar de comprovar: a extraordinariedade e/ou a imprevisibilidade do evento superveniente ou de seus efeitos, não constituindo risco ordinário do negócio; o real impacto de tal evento sobre a capacidade de cumprimento de sua prestação; e, a depender da hipótese: a desproporção clara entre o valor da prestação devida ao momento da contratação e ao de sua execução (art. 317 do CC); ou extrema vantagem para uma das partes e excessiva onerosidade para a outra em razão do mesmo evento (art. 478 do CC).
Isso porque a intervenção do Poder Judiciário nas relações contratuais privadas deve ser mínima e absolutamente excepcional, conforme inclusive reforçado pela Lei da Liberdade Econômica (lei 13.874/19) nas novas versões conferidas aos artigos 421, parágrafo único, e 421-A, III, do CC.
Feitos esses apontamentos, espera-se haver contribuído com subsídios para a atuação dos empresários em relação a seus contratos civis e empresariais. Não se pretende incentivar a judicialização. Muito pelo contrário. Busca-se conferir ferramentas para uma negociação de boa-fé, fundada no entendimento jurisprudencial existente e que compôs, ainda que indiretamente, as bases das relações contratuais firmadas, juntamente com toda a legislação aplicável.
Ninguém melhor do que as partes, juntas, para, considerando o real alcance dos danos por cada uma sofridos, explorar novas oportunidades, construir soluções ganha-ganha personalizadas e efetivas, e, portanto, reforçar sua rede de aliados, ao longo dessa caminhada.
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1 Pandemia é o maior desafio desde a Segunda Guerra, alerta ONU. O Estado de São Paulo, São Paulo, 01 de abril de 2020. Disponível em: Clique aqui . Acesso em: 17 de abril de 2020.
2 O exame é limitado aos contratos paritários, isto é, celebrados entre partes em posição de igualdade, não contemplando, por exemplo, as relações de consumo, nem os contratos administrativos típicos.
3 Há diversas correntes doutrinárias que buscam diferenciar os conceitos de caso fortuito e de força maior. No entanto, para fins da presente análise, tal discussão é inócua, uma vez que, à luz do Código Civil vigente, produzem efeitos jurídicos idênticos.
4 STJ. REsp 1.564.705/PE, relator: ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, Data de Publicação: DJe 05.09.16.
5 STJ. AREsp 1.347.713/SP, relator: ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, Data de Publicação: DJ 19.09.18.
6 MIRAGEM, Bruno. Direito Civil: direito das obrigações. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 528
7 CC. Art. 399. O devedor em mora responde pela impossibilidade da prestação, embora essa impossibilidade resulte de caso fortuito ou de força maior, se estes ocorrerem durante o atraso; salvo se provar isenção de culpa, ou que o dano sobreviria ainda quando a obrigação fosse oportunamente desempenhada.
10 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro, 2- volume: teoria geral obrigações - 22. ed. rev. e atual- São Paulo: Saraiva, 2007.
11 Art. 317. Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação.
12 Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato.
13 STJ. AgInt no REsp 1.514.093/CE, rel. ministro MARCO BUZZI, DJe de 07.11.16.
14 STJ. REsp 1.632.842/RS, relator: ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, Data de Publicação: DJ 31.03.17.
15 STJ. AgInt no REsp 1.316.595/SP, relator: ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, Data de Publicação: DJe 20.03.17.
16 175 - A menção à imprevisibilidade e à extraordinariedade, insertas no art. 478 do CC, deve ser interpretada não somente em relação ao fato que gere o desequilíbrio, mas também em relação às consequências que ele produz.
17 STJ. AgInt no REsp 1.316.595/SP, relator: ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, Data de Publicação: DJe 20.03.17; e AREsp:1.129.936/CE, relator: ministra MARIA ISABEL GALLOTTI, Data de Publicação: DJ 20.11.17.
18 STJ. AgInt no REsp 1.514.093/CE, rel. ministro MARCO BUZZI, DJe de 07.11.16.
19 STJ. AgRg no REsp 1518605/MT , relator: ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, Data de Publicação: DJe 12.04.16.
20 STJ. REsp 744.446/DF, relator: ministro HUMBERTO MARTINS, Data de Publicação: DJ 05.05.08.
21 STJ. REsp 945.166/GO, relator o ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, Quarta Turma, DJe de 12.03.12.
22 STJ. AgInt no AREsp 1.200.354/SC, rel. ministro Paulo De Tarso Sanseverino, DJe 17.10.18.
23 STJ. REsp 1.581.075 PA, relator: ministro MOURA RIBEIRO, Data de Publicação: DJe 22.03.19.
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*Camila Oliveira é sócia-titular e especialista em Direito Empresarial do escritório Queiroz Cavalcanti Advocacia.
*Cecília Gondim é estudante de Direito e estagiária do escritório Queiroz Cavalcanti Advocacia.