Equilíbrio como virtude
O equilíbrio e a conjugação de interesses diversos e conflitantes é o que deve nortear o legislador.
quinta-feira, 23 de abril de 2020
Atualizado às 12:01
O impacto global da pandemia (covid-19) se estende para além das questões sanitárias e de saúde pública, tão debatidas nas últimas semanas, exigindo ações inéditas das autoridades governamentais para proteger seus cidadãos.
O Fundo Monetário Internacional (FMI) avalia que a pandemia provocará uma nova recessão global cujos efeitos serão mais devastadores do que os provocados pela crise financeira de 2008. O Diretor-Geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Ghebreyesus, afirmou que "sabemos que essa é muito mais que uma crise de saúde, estamos cientes das profundas consequências da pandemia", acrescentando que este é um momento "sem precedentes, que demanda uma resposta sem precedentes".
Dentre os problemas que demandam respostas por parte dos governos estão os impasses que surgiram nas relações econômicas entre particulares. Embora haja normas regulando situações excepcionais no direito brasileiro e de outros países, a pandemia traz preocupação quanto aos descumprimentos contratuais, em especial naqueles contratos de relação contínua. Deixar as relações privadas a mercê do arcabouço legislativo de tempos normais, significa tornar mais agudo fracasso econômico, acentuando-se o risco de um efeito dominó que solape a economia.
Todos os governos, portanto, têm buscado um delicado equilíbrio: conjugar a efetiva e necessária proteção àqueles que venham a ser atingidos pela crise com a preservação da renda e economias nacionais, o que inclui a manutenção de contratos, obrigações e operações comerciais anteriormente celebradas.
Nesse sentido, o parlamento alemão (Bundestag) aprovou algumas medidas para minimizar os efeitos da crise no campo das relações contratuais, como o direito de adiar o cumprimento de obrigação contratual (restrito aos consumidores e as empresas que possuem até 10 funcionários ou um faturamento anual de até 2 milhões de euros) se o devedor, em razão da pandemia, não puder executar a prestação sem pôr em risco a sua subsistência e/ou de seus familiares. A Assembleia da República Portuguesa também adotou medidas excepcionais. A lei 1-A/2020 suspendeu a execução de hipotecas sobre imóvel que constitua habitação própria e o trâmite das ações de despejo, por exemplo.
No Brasil, tem sido proposto e debatido alternativas práticas para encontrar o ponto ideal entre a proteção aos vulneráveis e a preservação da renda nacional. Nesse sentido, foi aprovado o substitutivo do PL 1179/2020 pelo Senado Federal que, dentre outras medidas, suspendeu a concessão de liminar para despejo de inquilino até 30 de outubro de 2020 ao mesmo tempo em que se suprimiu do texto original do referido projeto a previsão de moratória geral.
Há um contraponto que merece consideração. A despeito de tutelar os interesses daqueles que seriam os mais afetados pela crise, algumas medidas interferem nas relações privadas e na ordem econômica de forma sensível. É o caso, por exemplo, do PL 2052/2020 apresentado na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro que tem como finalidade impor que as instituições de ensino fundamental e médio da rede privada a redução da cobrança de mensalidades durante o período que durar o plano de contingência provocado pelo covid-19 em, no mínimo, 30% .
O referido projeto não estabelece condições e restrições ao benefício que pretende conceder e adota a presunção injustificada de que todas as escolas terão os seus custos reduzidos na proporção de 30%. Essa medida, ainda que extraordinária e temporária, constitui interferência na livre iniciativa e gera efeitos colaterais que devem ser evitados, por exemplo, a proteção a um determinado grupo de pessoas da sociedade em detrimento de outro segmento. Na hipótese, as instituições de ensino privadas permanecem obrigadas a pagar os salários de seus funcionários e fornecedores.
O que a experiência internacional tem nos indicado é que o Estado não só pode como deve intervir nas relações privadas para proteger seus cidadãos nesse momento excepcional, mas só o deve fazer após avaliar o impacto que tal intervenção infringirá a outros envolvidos e a atividade econômica em geral. Tomemos novamente o caso alemão como paradigma: se o parlamento germânico proibiu aos locadores de imóveis residenciais ou comerciais cancelarem os contratos e despejarem os inquilinos por falta de pagamento do aluguel, impôs-se aos locatários e arrendatários o ônus de demonstrar que suas atividades foram vedadas ou consideravelmente restringidas em razão da pandemia.
É evidente que as medidas extraordinárias são necessárias. O equilíbrio e a conjugação de interesses diversos e conflitantes é o que deve nortear o legislador, retomando-se a antiga lição de São Tomás de Aquino: a virtude está no meio. Se cabe ao Estado adotar respostas extraordinárias para tempos extraordinários, as soluções demasiadamente desequilibradas devem ser evitadas.
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*Eduardo Matoso é advogado associado do escritório Domingues Cintra Napoleão Lins e Silva Advogados.