Por um novo equilíbrio entre o público e o privado no novo marco legal do saneamento básico
A pandemia de covid-19 colocará o saneamento básico como tema prioritário na agenda nacional e exigirá a emergência de novas possibilidades de atuação para as empresas estatais e para os agentes privados no setor, de forma coordenada e cooperativa.
segunda-feira, 20 de abril de 2020
Atualizado às 08:48
No dia 11 de março de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou a pandemia de covid-19, doença causada pelo novo coronavírus (Sars-Cov-2), quando havia 118 mil casos em 114 países. No dia 2 de abril, o mundo atingiu a marca de 1 (um) milhão de casos, com quase 8 mil confirmados apenas no Brasil naquela altura. Entre as principais medidas de proteção indicadas pela OMS, está o simples ato de lavar as mãos com água e sabão.
Essa simples ação, no entanto, é um enorme desafio para mais de 35 milhões de brasileiros que não têm acesso ao abastecimento de água tratada. Para tornar esse cenário ainda mais catastrófico e degradante, a mídia tem noticiado pesquisas acadêmicas que identificam que o novo coronavírus pode estar nas redes de esgotos, a cujo serviço de coleta e tratamento mais de 100 milhões de brasileiros não têm acesso1.
O enorme impacto que a pandemia tem causado no Brasil e no mundo colocou em evidência a imprescindibilidade da maior atuação estatal - com notáveis mudanças na expectativa acerca das formas de intervenção do Estado2 - e nas prioridades nacionais em debate.
Como medida de dignidade da pessoa humana e a fim de que a tragédia brasileira no tema do saneamento básico jamais se repita e exponha tantos cidadãos a essas condições degradantes, é inevitável que o tema do saneamento básico ganhe destaque imediatamente na agenda nacional.
Em especial, ganha ainda mais relevância o debate em torno do novo marco legal do saneamento básico, atualmente discutido no PL 4.162/2019, mas que no último ano e meio recebeu outras três tentativas de implementação. No último dia 7 de abril, o Senador Alessandro Vieira, um dos relatores projeto, apresentou parecer favorável ao projeto, permitindo o avanço da proposição no Senado Federal.
O projeto dispõe sobre novas diretrizes para o setor. Entre os aspectos mais comentados, está a ampliação da participação da iniciativa privada nesse mercado mediante a extinção dos contratos de programa e a obrigatoriedade de licitação para a contratação de serviços de saneamento. Para os críticos, tais medidas podem gerar o sucateamento das empresas estatais, gerar o aumento das tarifas e ainda ir na contramão da tendência de reestatização dos serviços de saneamento básico nos países que já há algum tempo privatizaram os seus serviços, como apontam os dados do Transnational Institute.
De fato, há questões sobre o projeto que merecem aperfeiçoamentos. Em especial, o peso conferido à suposta capacidade de solução pela iniciativa privada dos problemas de investimento no setor, sustentado em concepções dicotômicas de enfrentamento do problema que opõem empresas estatais versus empresas privadas e estatização versus privatização.
Tal visão dicotômica é bastante característica do direito administrativo das décadas de 1980 e 1990, que ignorava a crescente complexidade da vida em sociedade e impunha à organização administrativa o desafio de solucionar novos desafios com base em antigas estruturas.
Porém, ao estabelecer essas bases dicotômicas e privatísticas - principalmente diminuindo o papel das empresas estatais e do próprio poder público - o projeto, tal qual a missão evangelizadora de Miguel Brum no conto "A função da Arte", de Eduardo Galeano, está a coçar onde não coça3, descompassado do direito administrativo atual.
A pandemia do novo coronavírus, a nosso ver, reforçará essa defasagem do PL 4.162/2019, diante da recessão econômica mundial que se avizinha. O Fundo Monetário Internacional aponta que o impacto global em debate será o maior desde a Grande Depressão do século passado.
No cenário da retomada da atividade econômica pós-pandemia, a participação estatal será fundamental e determinante em um cenário no qual, em abandono à perspectiva dualista ora criticada, para além da necessidade de financiamento e segurança jurídica com suporte do Poder Público, tenha-se como pressuposto uma Administração Pública em cujos quadros teóricos se contemple o pluralismo na coordenação e na cooperação entre as entidades que desempenham serviços públicos.
Em concretização ao que ressaltou Sabino Cassese, é o momento de se estabelecer um novo equilíbrio entre o público e o privado distinto da compreensão mantida no século XX4.
Notadamente na década de 1990, viveu-se um período marcado por graves crises financeiras e por grande descontentamento com o poder público, no qual alimentou-se no seio dos Estados nacionais uma reform euphoria que, ao final dessa década e começo dos anos 2000, culminou com a decepção quanto ao resultado das reformas e quanto à expectativa da redução do tamanho do Estado. Mesmo abdicando da gestão de muitos serviços, o Estado continuou ganhando novos e amplos papéis.
O forte movimento de desqualificação do Estado como realizador de direitos fundamentais na década de 1990 tem sido gradualmente superado pela visão de que, no contexto atual, a sua atuação também compreende o papel de agente incentivador e também de parceiro de entidades privadas que se dedicam ao desempenho de serviços de interesse da população.
O importante nesse cenário é reconhecer a incapacidade tanto do setor público quanto do setor privado - empresarial ou não - de resolverem isoladamente as questões básicas relacionadas à concretização dos direitos fundamentais, como o do acesso ao saneamento básico.
Espera-se que o movimento de reforma desse marco legal ganhe velocidade e a busca pela melhoria contínua e sistemática ao longo de sua aplicação passe a ser vista como obrigação.
O Estado deve ser considerado um agente indutor das mudanças, dentro de um movimento no qual, mantida a relevância dos mecanismos de regulação, a atuação das empresas estatais possa abrir-se também à coordenação e à governança tanto por meio de uma lógica de parceria e colaboração com agentes privados quanto no balizamento da ação privada.
Nesse sentido, a empresa estatal, relativamente adormecida no Estado regulador, deve ser reinserida na sua função pública e assumir o papel de instrumento de uma nova perspectiva de intervenção do Estado na economia.
O momento atual é propício para que as empresas estatais sejam fortalecidas no seu papel de instrumentos de políticas públicas e no desenvolvimento e aprofundamento das intersecções com os agentes privados e o direito privado5.
Nesse sentido, essas diferentes perspectivas podem resultar em diversas novas fronteiras para as empresas estatais, seja no compartilhamento do seu controle com agentes privados, seja na realização de sociedades de propósitos específicos para empreendimentos individualizados, seja no recurso a parcerias público-privadas, entre outras. Vale o destaque de que a Lei das Estatais, de 2016, foi um grande avanço no regime jurídico dessas empresas e na sua aproximação aos desafios da contemporaneidade.
Portanto, na linha das breves considerações realizadas, que oportunamente serão aprofundadas, o saneamento básico é tema que deve se tornar prioridade na agenda nacional.
Na ordem do dia dessa nova agenda, deve haver a evolução do novo marco legal do saneamento básico para que seja viabilizado um regime jurídico que abandone concepções estanques e anacrônicas em relação aos desafios atuais, como aquelas que defendem a privatização como a panaceia para os problemas do setor e também as que acabam por defender um modelo que estimula a falta de competitividade e de organização das empresas estatais, a serem substituídas por uma visão pragmática e conectada com os desafios que se apresentam.
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1 Sobre a declaração da pandemia pela OMS, cfr. No dia 10/4/2020, o Brasil já contabilizava 19.368 casos. Sobre a veiculação das pesquisas pela mídia, cfr. Sobre os números citados, conferir dados do SNIS - Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento.
2 É de citar, em especial, a aprovação de uma renda básica emergencial, o papel dos órgãos reguladores na manutenção da ordem dos respectivos setores e o de empresas estatais não só prestadoras de serviços públicos, mas também aquelas do setor financeiro, em medidas para a minoração do impacto na população.
3 Referência ao conto de Eduardo Galeano "A função da arte": "O pastor Miguel Brum me contou que há alguns anos esteve com os índios do Charco paraguaio. Ele formava parte de uma missão evangelizadora. Os missionários visitaram um cacique, um gordo quieto e calado, escutou sem pestanejar a propaganda religiosa que leram para ele na língua dos índios. Quando a leitura terminou, os missionários ficaram esperando. O cacique levou um tempo. Depois, opinou: - Você coça. E coça bastante, e coça muito bem. E sentenciou: - Mas, onde você coça não coça". (GALEANO, Eduardo. O livro dos abraços. Porto Alegre: L&PM, 2006, p. 28.)
4 CASSESE, Sabino. Derecho Administrativo: Historia y futuro. Sevilla (España): Global Law Press; Instituto Nacional de Administración Pública, 2014b, p. 374.
5 SCHIRATO, Vitor Rhein. As empresas estatais no direito administrativo econômico atual. São Paulo: Saraiva, 2016, pp.?191-205.
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*Artur de Sousa Carrijo é sócio do escritório Torreão Braz Advogados. Metre em Direito Administrativo pela Universidade de Lisboa. Especialista em Direito Administrativo pelo IDP. Bacharel em Direito pela Universidade de Brasília. Presidente da Comissão de Precatórios da OAB/DF.