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O fluxo do torvelinho e a redução salarial

Não se desconhecem as vicissitudes que defluem da emergência, os fatos consumados, os milhões de acordos individuais já realizados, a boa fé que as partes envolvidas possam ter dedicado na formação de tais pactos. Pactos sobrevivem, muitas vezes, à própria ilicitude.

sábado, 18 de abril de 2020

Atualizado em 19 de abril de 2020 15:16

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Do julgamento realizado ontem pelo Supremo Tribunal Federal, quando da submissão a referendo da medida liminar concedida pelo Ministro Relator, Ricardo Lewandowski, nos autos da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6363, mais que a decisão em si, sobressai o encadeamento de fatos que bem revela as disfuncionalidades de nossa República das quais deriva a circunstância de que seja ela, nos tempos atuais, regida mais pela força do que pela racionalidade democrática.

Por isso, não quero focar o olhar apenas em um único recorte nem destratar o Supremo Tribunal Federal que, sem prejuízo de inúmeras responsabilidades - cuja accountability jurídica, social e democrática, há de ser estabelecida historicamente, pelo conjunto da obra - foi, mais uma vez, gizado pela indeclinabilidade da jurisdição e consequente necessidade de dar uma resposta antecipada à sociedade.

Contudo, considerado o resultado alcançado, este só era possível mediante invocação de teses e promovendo interpretações que se poderiam qualificar de excepcionais, para não dizer esdrúxulas.

Iniciemos pela crise pela qual passamos. É inequívoca e exige respostas. O governo se mobiliza. O empresariado pede ajuda e eleva as suas reivindicações. É ouvido. Exclusivamente.

Declara-se, para efeitos fiscais, calamidade pública no Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020. O aludido Decreto foi obtido em menos de 48 horas desde a Mensagem nº 93, de 18 de março, encaminhada pelo Presidente da República ao Congresso Nacional.

Note-se que não se trata de recusa do Congresso em contribuir para a emergência. Ao contrário. As Casas têm trabalhado incessantemente, tendo, inclusive, tramitado brevissimamente textos normativos emergenciais e discutido até mesmo reformas constitucionais em tempo recorde.

Dois dias depois da calamidade declarada sobreveio a Medida Provisória número 927, redigida com resquícios e requintes de sadismo, a prever a manutenção de contratos de trabalho suspensos (sem salário, portanto) por até quatro meses, precisamente no momento em que a subsistência econômica das brasileiras e dos brasileiros deveria ser assegurada, a fim de satisfazer as necessidades básicas decorrentes do enfrentamento da pandemia.

A sociedade, em vez de pacificada por essa Medida Provisória, levanta-se. Virtualmente. Aos digitalmente inseridos e com ânimo de participação, a escolha pela desproteção de cidadãs e cidadãos que deveriam ser protegidos, foi aspecto que até mesmo às classes digitalmente representadas não parecia razoável. A medida era tão exagerada que o próprio Presidente da República determinou fosse revogada, usando o Twitter como instrumento de sua ordem.

E então tivemos outra excentricidade: A Medida Provisória nº 928 veio para derrogar o artigo 18 da Medida Provisória nº 927.

A disposição durou menos de 24 horas!

Menos que "provisória", a medida foi uma efeméride a ser lembrada na história do Direito brasileiro. O que era "urgente" e "relevante" no dia 22 de março revelou-se despiciendo e seu descarte do mundo jurídico é que passou a ser urgente e relevante no dia 23.

O Executivo, assim, expôs o seu absoluto despreparo para a correta condução da circunstância.

Demorou oito dias para que se pensasse em novo texto para tratar da matéria.

E então o sistema jurídico recebeu o upload da Medida Provisória nº 936, a qual, não obstante inegavelmente revestida dos requisitos constitucionais de urgência e relevância da matéria veiculada, sem dúvida, incursionou em tema de índole e de texto constitucional.

A primeira sensação de empresários foi de alívio. Aos seus olhos, finalmente, uma medida com alguma racionalidade para o momento! Faltava-lhe, no entanto, juridicidade. Ao despreparo, somou-se a ousadia e dessa adição só pode resultar insegurança.

É que o artigo 7º, inciso VI, da Constituição Federal traz uma garantia de literalidade inequívoca (irredutibilidade do salário, salvo o disposto em convenção ou acordo coletivo), cuja aplicação precisaria ser afastada ou sua vigência suspensa para que se compatibilizasse o parágrafo 4º do artigo 11 da Medida Provisória 936 e a previsão de redução salarial mediante acordo individual.

As discussões e deliberações deveriam naturalmente seguir-se no processo legislativo, já que Medidas Provisórias têm força de lei (art. 62 da CF), mas natureza precária e dependem de aprovação posterior pelo Congresso Nacional.

Nesse ponto, cabe sublinhar a razão que assiste a uma objeção feita pelo Ministro Marco Aurélio Mello ao momento em que judicializada a questão. O ajuizamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade pelo partido político Rede Sustentabilidade constituiu enorme equívoco institucional, um açodamento político, em busca de um protagonismo de atuação absolutamente despropositado. Ao fim, propiciou a ruptura da processualidade democrática constitucionalmente prevista no parágrafo 5º do artigo 62, que reserva a primeira discussão sobre a constitucionalidade de uma Medida Provisória às Casas do Congresso Nacional.

Mas não... O partido, que tem assento no Parlamento e seria partícipe desse processo, resolve "mitar" e atropelar o caminho normal da discussão, terceirizá-la, e submete ao Judiciário a questão própria às discussões parlamentares e suas opções políticas e propõe Ação Direta de Inconstitucionalidade, com pedido de concessão de medida liminar para impedir a redução salarial da classe trabalhadora, a não ser que houvesse acordo ou convenção coletiva.

Trasladou-se, assim, mais uma vez, questão de cunho parlamentar ao Supremo Tribunal Federal. Eis a política judicializada!

Não se deu conta o partido político autor da ação que, judicializada a política, era previsível que a Suprema Corte precisasse politizar a jurisdição, e, como resultado, desconstitucionalizasse o comando da imprescindibilidade do diálogo social.

No tempo em que a supressão do diálogo caracteriza a nossa sociedade, a relação entre os poderes, os vínculos humanos, a programação dos sistemas, os próprios negócios comerciais, o autoritarismo nos permeia. Está naturalizado entre nós.

Não apreciamos o debate respeitoso, as processualidades democráticas, o devido processo. Vamos logo à solução instantânea e violenta como um tiro. E há os que se regozijam de seus benefícios e os que se queixam dos resultados, sem se deter à necessidade de que ampliemos os nossos mecanismos de diálogo social.

Nossa sociedade tem revelado apreço pelas medidas provisórias imediatas, pelos juízos céleres ou instantâneos, lacradores das discussões, dos trânsitos em julgado antes que os julgados transitem por todos os âmbitos pelos quais têm de passar.

E tudo isso se faz em nome da segurança jurídica. Uma segurança obtida a fórceps, alcançada à força, força esta que se extrai não do texto constitucional em si, mas de suas interpretações tortuosas, pela invocação de princípios apenas mediatamente conexos com o texto para afastar a sua literalidade. Violência interpretativa, que, ao fim, implica exclusão. Exclusão de diálogo. Exclusão de vozes. Silêncio: uma negação de princípios democráticos. Exclusão de instituições pelas quais se manifesta expressa ojeriza, a despeito do quadro constitucional.

Atento a esses paradoxos e premido pela realidade, o Ministro Relator buscou uma solução intermédia, tão criativa quanto equivocada, concedendo em parte a medida liminar, a fim de que não se excluíssem os sindicatos do processo negocial, mas os contemplassem a posteriori, para permitir não a negociação coletiva própria, mas uma atuação fiscalizadora, mediante algo que mais se assemelha ao instituto da ratificação do ato jurídico do que o estabelecimento de uma condição resolutiva do pacto.

A engenhosa solução desafiava a literalidade da norma constitucional e seria mais própria ao ambiente parlamentar que ao Judiciário. E ali o Parlamento se fez. Assistimos à invocação de um "estado de exceção financeira", quase confitente da vocação revelada pela Medida Provisória de constituir-se em uma espécie de disposição constitucional transitória, com o propósito de suspender a aplicação do inciso VI do artigo 7º.

Um ato do Executivo diametralmente contrário ao texto literal, ao qual fazemos vistas grossas pelo fino argumento da excepcionalidade não só dos fatos ou da pandemia, mas do próprio Estado...

No julgamento de ontem, ficou evidente a disfuncionalidade de nossa sociedade, o papel secundário que o Direito assume, o encadeamento sucessivo das deficiências do sistema político jurídico e da incompreensão dos próprios atores sociais acerca do exercício regular dos seus papeis na sociedade dentro do esquadro fixado pela Lei Maior.

Temos um Poder Executivo despreparado tanto para as emergências quanto para o conflito trabalhista. Optou pelo excesso, depois pelo refluxo das ideias postas como imprescindíveis, relevantes e urgentes, pela relevância e urgência de voltar atrás, e, ao fim, pela supressão das instâncias de diálogo entre o capital e o trabalho. Extinção do Ministério do Trabalho, o sufocamento financeiro do movimento sindical, que não obstante as suas vicissitudes, é constitutivo da democracia e não pode ser desprezado, muito menos receber o tratamento da confessada repulsa e preconceitos explícitos. Resultado? Não há interlocutores.

Temos um Poder Legislativo que, não obstante empenhado na crise, é composto por uma significativa parcela de integrantes sôfregos por agir destacadamente, como artistas em busca de luzes, que o negam como instituição e trasladam as questões políticas ao Judiciário. Faltam-nos ainda as normas concretizadoras de tantos dispositivos constitucionais cujos comandos foram esquecidos, como os exemplos do inciso I do artigo 7º, o imposto sobre as grandes fortunas, entre outros, todos relegados às calendas gregas, pelo inadimplemento das obrigações legislativas e inapetência para a conclusão da obra constitucional.

E temos um Judiciário que se vê forçosamente politizado e acaba sendo obrigado a exercer opções políticas em julgamentos que não se gizam pelo cumprimento estrito da norma regente do país, mas por juízos de conveniência e oportunidade, bem próprios às decisões políticas, mediante loopings interpretativos que se impõem não por racionalidade jurídica, mas pela consumação de violências.

É por isso que ontem, como razões de decidir, sobrevieram fundamentos como invocação de improbidade de entes sindicais, de impossibilidade de localização de sindicatos existentes de direito, mas não apuráveis de fato, para justificar a tese de que princípios constitucionais, interpretados à tortura, poderiam suspender do texto um segmento de clareza tal que cessat interpretatio. Foram argumentos parlamentares e não judiciários que prevaleceram.

Rui Barbosa dizia com razão que a "Constituição é criatura do povo, no exercício do poder constituinte. A lei, criatura do legislador como órgão da Constituição".  Ensinava que "transpondo a Constituição, o legislador exorbita de seu mandato, destroe a origem de seu poder, falseia a delegação de sua autoridade"1. E concluía que, "entre um acto nullo da legislatura e o acto supremo da soberania nacional, o juiz, para executar o segundo, nega execução ao primeiro"2.

Ontem optamos pelo inverso. Prevaleceu a exorbitância do mandato. Aquilo que Barbosa, o Ruy, chamou de "acto de arbítrio culposo", praticado pelo Presidente da República, na Medida Provisória, mas que bem poderia - e bem pode - houvesse Poder Legislativo atento e diligente, ser recuperado no processo legislativo.

Resta a impressão de incapacidade de solução de nossos problemas pela perspectiva da busca dos consensos, pela promoção do diálogo, que claramente deriva do comando constitucional. No campo do diálogo social, extraio do próprio Supremo Tribunal Federal passagem em julgamento (RE 590415/SC, com repercussão geral declarada), que merece citação do texto do item três de sua ementa: "No âmbito do direito coletivo do trabalho não se verifica a mesma situação de assimetria de poder presente nas relações individuais de trabalho. Como consequência, a autonomia coletiva da vontade não se encontra sujeita aos mesmos limites que a autonomia individual".

Foram esses limites que acabaram levantados no julgamento de ontem.  E no item quatro da ementa do mesmo julgado assenta-se:

"A Constituição de 1988, em seu artigo 7º, XXVI, prestigiou a autonomia coletiva da vontade e a autocomposição dos conflitos trabalhistas, acompanhando a tendência mundial ao crescente reconhecimento dos mecanismos de negociação coletiva, retratada na Convenção nº 98/1949 e na Convenção nº 154/1981 da Organização Internacional do Trabalho. O reconhecimento dos acordos e convenções coletivas permite que os trabalhadores contribuam para a formulação das normas que regerão a sua própria vida".

Houve uma guinada copernicana desse entendimento. Eis a suma: esqueçamos a negociação coletiva! Superemos a tendência mundial! Olvidemos o reconhecimento constitucional dos mecanismos de negociação e formação de normas coletivas. O imprevisto atribuiu poderes excepcionais ao Presidente da República.

Não se desconhecem as vicissitudes que defluem da emergência, os fatos consumados, os milhões de acordos individuais já realizados, a boa fé que as partes envolvidas possam ter dedicado na formação de tais pactos. Pactos sobrevivem, muitas vezes, à própria ilicitude. Os braços do Direito têm alcance limitado. O problema maior está no impacto que as disfuncionalidades institucionais e esse encadeamento de sucessivos equívocos em todos os Poderes da República, de diversos atores, possam nos reservar para o futuro. É do futuro que tratamos.

Está decidido! Façam-se os acordos, pois! Socorramos os necessitados! Acudamos os enfermos! Retomemos, no entanto, o diálogo! Ao cabo da pandemia, haverá edifícios a construir e a reconstruir. E teremos um ambiente propício a novas propostas, que devem derivar de um olhar respeitoso, mas profundamente crítico do funcionamento das nossas estruturas sociais perigosamente violentas, preconceituosas, discriminatórias, supressoras do diálogo e regressivas não apenas quanto aos direitos sociais como também em relação à própria organização social, já que supressivas de corpos intermediários legítimos.

Sinto-me na contingência de citar o professor de Ciência Política do City College of New York e do Graduate Center da City University of New York, o filósofo estadunidense Marshall Berman:

"Ser moderno (...) é experimentar a existência pessoal e social como um torvelinho, ver o mundo e a si próprio em perpétua desintegração e renovação, agitação e angústia, ambiguidade e contradição: é ser parte de um universo em que tudo o que é sólido se desmancha no ar. Ser um modernista é sentir-se de alguma forma em casa em meio ao redemoinho, fazer seu o ritmo dele, movimentar-se entre suas correntes em busca de novas formas de realidade, beleza, liberdade, justiça, permitidas pelo seu fluxo ardoroso e arriscado"3.

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1 BARBOSA, Ruy, Comentários à Constituição Federal Brasileira, I vol., 1932, Saraiva & Cia: São Paulo, p. 20.

2 idem

3 BERMAN, Marshall, Tudo o que é sólido desmancha no ar. Trad. Carlos Felipe Moisés e Ana Maria L. Ioriatti e Marcelo Macca. São Paulo: Companhia das Letras, 1986, p.328.

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*Luís Carlos Moro é advogado trabalhista. Secretário Geral da Associação Americana de Juristas. Vice-Presidente da Associação Luso-Brasileira de Juristas do Trabalho - JUTRA e Presidente da Delegação Brasileira dessa Associação. Escrito em 18 de abril de 2020.

 

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