O curioso caso de Ronaldo de Assis Moreira
É importante analisar o conceito e limites da prisão domiciliar no Paraguai e, dentro do possível, estabelecer linhas de semelhança e diferença com o regime brasileiro.
sexta-feira, 17 de abril de 2020
Atualizado às 11:34
Chamou a atenção em 16.4.2020, a notícia de que Ronaldo de Assis Moreira, o Ronaldinho Gaúcho, teria participado de "live", na noite do dia 15.4.2020, do grupo de pagode Revelação1.
O fato teria chamado a atenção, pois, Ronaldinho Gaúcho, teria feito a referida aparição uma semana após deixar a Agrupación Especializada, cadeia onde ficou por um mês, estando, desde, então, em prisão domiciliar Hotel Palmaroga, localizado na cidade de Assunção, no Paraguai.
Nota-se, diante da repercussão do episódio envolvendo o ex-jogador de futebol, que é importante analisar o conceito e limites da prisão domiciliar no Paraguai e, dentro do possível, estabelecer linhas de semelhança e diferença com o regime brasileiro.
No Brasil, a prisão domiciliar está prevista, em síntese, no Código de Processo Penal2 e na Lei de Execuções Penais. O art. 317 dispõe que a "prisão domiciliar consiste no recolhimento do indiciado ou acusado em sua residência, só podendo dela ausentar-se com autorização judicial."
Já o art. 318 do mesmo diploma destaca que poderá o juiz, diante de prova prova idônea dos requisitos estabelecidos neste artigo, substituir a prisão preventiva pela domiciliar quando o agente for:
I - maior de 80 (oitenta) anos;
II - extremamente debilitado por motivo de doença grave;
III - imprescindível aos cuidados especiais de pessoa menor de 6 (seis) anos de idade ou com deficiência;
IV - gestante;
V - mulher com filho de até 12 (doze) anos de idade incompletos;
VI - homem, caso seja o único responsável pelos cuidados do filho de até 12 (doze) anos de idade incompletos;
Dando continuidade, o art. 318-A do mesmo diploma legal, incluído pela lei 13.769, de 2018, dispõe que a "prisão preventiva imposta à mulher gestante ou que for mãe ou responsável por crianças ou pessoas com deficiência será substituída por prisão domiciliar, desde que":
I - não tenha cometido crime com violência ou grave ameaça a pessoa;
II - não tenha cometido o crime contra seu filho ou dependente.
O art. 318-B, também incluído pela lei 13.769, de 2018, destaca que a substituição de que tratam os arts. 318 e 318-A poderá ser efetuada "sem prejuízo da aplicação concomitante das medidas alternativas previstas no art. 319 deste Código".
A Lei de Execuções Penais - LEP3, em apertada síntese, dispõe sobre prisão domiciliar nos arts. 146-B, IV e 146-C, VI.
Passando para a análise da legislação paraguaia, no livro 4, título I, do Código de Processo Penal Paraguaio4, que trata das medidas cautelares, o art. 238 estabelece que a detenção preventiva de pessoas com mais de setenta anos, de mulheres nos últimos meses de gravidez, de mães durante a lactação de seus filhos ou de pessoas afetadas por doenças graves e terminais devidamente comprovadas não deve ser decretada, devendo o juiz, nesses casos, decretar prisão domiciliar.
Já o art. 245, do mesmo diploma normativo, estabelece que sempre que o perigo de vazamento ou obstrução puder ser evitado pela aplicação de outra medida menos onerosa para o acusado, o juiz, de ofício, poderá impor, ao invés da prisão preventiva, uma série de medidas, dentre as quais, a prisão domiciliar, em sua própria casa ou na casa de outra pessoa, sob ou sem vigilância a depender do caso.
Na sequência, o art. 259 do Código de Processo Penal Paraguaio, disciplina que a garantia prestada pelo acusado será cancelada e devolvidos os bens afetados, sempre que não tenham sido executados, dentre outras ocasiões, quando o acusado seja posto em prisão preventiva ou domiciliar.
O art. 28, da seção II, responsável por tutelar as normas relativas a atuação policial, destaca que se o acusado se encontrar preso e o agente fiscal considerar que deve continuar privado de liberdade, formulará uma ata de imputação dentro de quarenta e oito horas contadas a partir do início do procedimento.
Referido dispositivo legal, sobre o tema, disciplina que poderá ser solicitada a prisão preventiva ou a domiciliar apenas nos casos indispensáveis, conforme previsão legal existente na Constituição Nacional do Paraguai.
Nesse aspecto, caso a autoridade não formule a ata de imputação dentro do referido prazo, o juiz compreenderá que o Ministério Público não tem interesse na continuação da prisão, devendo o juiz ordenar a liberdade do acusado.
Referida medida proferida pelo magistrado, importante consignar, não impede com que o Ministério Público, em momento posterior e diante, por exemplo, de fatos novos, requeira a prisão preventiva do acusado ou outra medida substitutiva.
Ante a menção feita pelo art. 28, II, do Código de Processo Penal Paraguaio, oportuno analisar o que diz sobre o tema a Constituição Nacional5 daquele país.
O art. 12, ao tratar da detenção e prevenção, dispõe que ninguém deve ser detido ou preso sem uma ordem escrita da autoridade competente, exceto no caso de ser pego em um situação de flagrante que merecia punição corporal.
Além disso, dispõe referido artigo que toda a pessoa detida o direito de:
1. ser informado, no momento do fato, da causa que o motiva, de seu direito de permanecer calado e de ser assistido por um defensor de sua confiança. Além disso, no ato de prisão, a autoridade é obrigada a exibir a ordem por escrito.
2. que a prisão seja imediatamente comunicada a seus familiares ou pessoas que o detido indicar;
3. manter-se em livre comunicação, a menos que, excepcionalmente, seja estabelecida a sua incomunicabilidade por ordem judicial competente, valendo o destaque de que referida incomunicabilidade não prevalecerá, ainda que diante de ordem judicial, em relação ao seu defensor e, em nenhum caso, poderá exceder o prazo prescrito por lei;
4. ter um intérprete, se necessário, e
5. Que seja disponibilizado, dentro de um período não superior a vinte e quatro horas, ao magistrado competente, para que ele tenha tudo o que corresponde aos seus direitos.
O art. 13, da Carta Magna Paraguaia, disciplina que a privação de liberdade devido a dívida não é admitida, exceto por mandato de uma autoridade judicial competente por não cumprimento de direitos alimentares ou como substituto de multas ou títulos judiciais.
Analisando o vídeo da audiência responsável por conceder à Ronaldinho Gaúcho e a seu irmão a prisão domiciliar6 (sim, uma videoconferência foi utilizada para tal ato em virtude da pandemia do covid-19), é possível visualizar que não houve a imposição de qualquer restrição quanto ao uso da internet pelos referidos acusados.
Nessa perspectiva, o item 3, do art. 12, da Constituição Paraguaia não deixa dúvidas de que, ainda que esteja em cárcere, a livre comunicação deve ser garantida como regra.
Nota-se que, na decisão judicial até então existente, ou seja, aquela que o submeteu a prisão domiciliar, não houve qualquer restrição a possibilitar a exceção prevista no mesmo dispositivo constitucional, ou seja, a possibilitar a conclusão pela incomunicabilidade.
Ou seja, a mesma tecnologia que liberta em tempos de pandemia não pode servir como subterfúgio para, eventualmente, restringir a prisão domiciliar de quem quer que seja, premissa igualmente aplicável no caso ora analisado ou, ainda ( e o que seria pior!), fazer com que os acusados retornem para o presídio no Paraguai.
Portanto, a aparição virtual de Ronaldinho Gaúcho na live do Grupo Revelação ocorrida essa semana não violou os limites estabelecidos no caso concreto, pois, participou através da internet e dentro do Hotel no qual cumpre regularmente a prisão domiciliar.
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1 Exemplificativamente, vide a seguinte notícia do jornal O Globo. Acesso em: 16.abril.2020.
2 BRASIL. Código de Processo Penal. Acesso em: 16.abril.2020.
3 BRASIL. Lei 7.210. Acesso em: 16.abril.2020.
4 PARAGUAI. Código de Processo Penal. Acesso em:16.abril.2020.
5 PARAGUAI. Acesso em: 16.abril.2020.
6 Fato público e divulgado em vários meios de mídia, senão vejamos: Audiência de Ronaldinho e Assis foi feita por chamada de vídeo. Acesso em: 16.abril.2020.
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*Victor Minervino Quintiere é doutorando e mestre em Direito pelo Instituto Brasiliense de Direito Público - IDP. Professor universitário no Centro Universitário de Brasília - UniCEUB. Advogado criminalista. Vice-presidente da Comissão de Acompanhamento das Reformas Criminais na OAB-DF. Membro efetivo do Instituto dos Advogados do Distrito Federal - IADF. Conselheiro da Associação dos Advogados Criminais do Distrito Federal - ANACRIM-DF. Sócio do escritório Bruno Espineira Lemos & Quintiere Advogados.