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Do covid-19 ao poço: Observações sobre a cultura da individualidade e a morte do outro

Esse pensar individual fechou os olhos do mundo para o massacre de animais selvagens na China, para os seus mercados vivos, algo que não pode ser simplesmente deixado do lado com a desculpa de que é questão cultural.

segunda-feira, 13 de abril de 2020

Atualizado às 10:16

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Evidente que o assunto mais falado no planeta nos últimos meses é a pandemia ocasionada pela covid-19, situação que, em verdade, o Brasil demorou a ser atingido, pois outras nações já experimentavam, desde o começo do ano, a difícil experiência de reinvenção social, a partir de um vírus com letalidade considerável, em razão, senão do percentual de infectados que falecem, da sua rápida e fácil contaminação, o que eleva o número de óbitos  a um quadro assustador .

Afinal, independentemente de qualquer viés político, não parece razoável a qualquer pessoa dentro da lógica do bom senso mínimo, ignorar ou considerar desprezível, por exemplo, ocorrências como na Itália, Espanha e Estados Unidos, da morte diária de aproximadamente mil pessoas, por uma doença que há alguns meses sequer existia.

Países se fecharam, sociedades se distanciaram, experiências simples como ir no supermercado converteram-se em atos de ousadia extrema, em que as pessoas se entreolham com desconfiança e as máscaras no rosto, fazem tudo parecer a realidade descrita em 2014 por Josh Malerman no livro Bird Box, que transformado em filme se converteu em enorme sucesso.

O filósofo italiano Giorgio Agambem vem sustentando que a pandemia deixou evidente que a sociedade contemporânea não acredita em mais nada além da "vida nua", o que, dentro de sua conceituação clássica, significa a total desproteção das pessoas pelo Estado, submetidas a viver em estado de exceção, o que, em última análise, converte todos em ilegais

Disso é possível refletir que as mensagens de solidariedade e os esforços para a edificação de sociedades mais justas, com pautas inclusivas, bem como o restabelecimento da relação do homem com a natureza, tudo é facilmente ignorado, a única coisa com poder real de convencimento é o estado de exceção, é clamar a emergência para confinar pessoas, para transformar o maior número em ilegais e sobre eles ter o maior poder interventivo possível, mantendo a figura estatal distante de qualquer ação construtiva do bem estar social.

Em outro viés, Slavoj Zizek tem questionado se o nosso novo rumo não é barbárie com rosto humano, e, em referência à canadense Naomi Klei refere a mais uma triste página do capitalismo desastre.

Talvez haja um somatório de  tudo isso, e o Brasil dos tempos atuais bem serve a exemplificar as sociedades estruturadas em um modelo de capitalismo de tal forma voraz, que até mesmo alguns dias de reclusão, à pretexto de salvar milhares de vidas, convertem-se em explosiva polêmica, contrapondo a vida ao sistema econômico.

Nesse sentido, o Primeiro Ministro italiano Giuseppe Conte trouxe ao mundo a lembrança de que "nós estamos escrevendo uma página da história da humanidade, e não um manual de economia", justamente, a partir da necessidade por ele sentida, de fazer autoridades lembrarem qual o centro de toda a questão estatal, pois o domínio que o poderio econômico estabeleceu, ao longo dos anos de hegemonia do atual modelo, gerou a insensibilidade com o coletivo, com a real função do Estado em promover o bem estar social, fechando as pessoas em um conceito de individualismo extremo em que o desprezo para com o outro se normalizou.

Realmente é chocante observar, em um momento de pandemia, com mortes acontecendo diariamente em todos os continentes, em quase todos os países do mundo, economistas debatendo as ações de governo como se estivessem em uma aula de contabilidade e não diante de situação assemelhada ao conflito bélico, em que todas as preocupações devem se centrar em salvar vidas e garantir o mínimo de condições de existência aos que se encontram em quadro de vulnerabilidade.

Propostas estapafúrdias como fazer caixa para o poder público a partir de reduções de salários de servidores públicos, na fantasia de que se estes não são também trabalhadores, também não tem famílias, vidas que deles dependem, salários de terceiros a pagar, enfim não vivem o sabido comprometimento da renda do brasileiro médio, são recebidas com aplausos de parte da população, ainda, em meio a tragédia da pandemia que não faz despertar qualquer sentimento de empatia, mantendo inalterado o desprezo para com o outro e o equívoco de imaginar que o Estado não pode gastar para o bem estar de seus cidadãos vulneráveis.

As imagens de pessoas centradas em seu universo pessoal, pouco preocupadas com a possibilidade do outro tenha sequer ter o que comer, amplamente divulgadas nas recentes corridas aos supermercados e tentativa por alguns de levar para casa todo o estoque de alimento das prateleiras, deixa patente que realmente ainda não ocorreu a percepção de qualquer outra coisa que autoproteção, já que todos estão desprotegidos (vida nua) e sim, o rosto humano é do barbárie

A parir disso é curioso que neste momento o maior sucesso de audiência dos dias de quarentena seja a produção espanhola recém-lançada pela Netflix, o Poço,  em que pessoas são confinadas num poço de 333 níveis, cada um com duas pessoas, e a comida chega em uma única plataforma e vai descendo, de forma que os de baixo comem o que sobra dos de cima e aos últimos nada sobra, passam então a matar-se para consumir a carne do ex companheiro.

Chama a atenção como os que estão acima pisam no alimento, nele cospem, demonstrando o seu desprezo pelos que comerão depois e como não há qualquer possibilidade de convencimento da partilha para que todos comam, mesmo sabendo que um dia se poder estar no piso de baixo e ser morto para servir de alimento.

Há vários elementos que indicariam o fracasso desse filme, pois é recheado de violência barata e cenas mórbidas, o tempo inteiro se desenvolve em um único ambiente, tem poucos diálogos e é a maior parte monocromático,  mas, talvez seu sucesso seja explicável porque as pessoas se vejam nele, na preocupação individual em consumir o máximo que puderem ignorando que existem outras vidas, mesmo sabendo que podem ser a vida a precisar de ajuda no futuro, no desprezo para com os que estão abaixo e se pudessem, quem sabe, também cuspissem na comida que para eles será destinada.

Esse pensar individual fechou os olhos do mundo para o massacre de animais selvagens na China, para os seus mercados vivos, algo que não pode ser simplesmente deixado do lado com a desculpa de que é questão cultural, pois se fala de algo que pode estar exterminando a vida de milhões de pessoas em todo o planeta, pois é destes mercados que aparentemente o covid-19, como outras anteriores doenças vem, não da vida destes animais, mas da brutalidade contra eles praticada que faz vírus surgirem e se aprimorarem a ponto de atingir os humanos.

Há que se estabelecer com clareza não ser aceitável qualquer sentimento de preconceito ou estigmatização do povo chinês, de história milenar e formado por pessoas, regra geral, trabalhadoras, alegres e com desejo de edificar espaços melhores.

Inclusive há de se considerar que o consumo de animais selvagens surgiu, em seu tempo, da necessidade de aplacar a fome que atingia a China, com sérias dificuldades em prover alimento para sua gigantesca população.

A discussão é outra, diz respeito à omissão das cadeias produtivas mundiais e das autoridades políticas em debater de forma séria, sem estigmas, nos tempos atuais, como o fazem em relação a outros países do mundo, revisões em ações que representem clara crueldade contra animais.

Nesse sentido, não há como explicar o mundo que avança para redesenhar o papel do homem frente a natureza, em que ações contrárias à vida animal e o meio ambiente consigam comover as principais lideranças mundiais, simplesmente ignorar a realidade de massacres aos seres vivos não humanos ocorridas na China, senão se retornar ao fator econômico, ao papel que esta importante nação representa na equação financeira global.

Assim, a morte é aceitável, a crueldade é aceitável, o ataque ao planeta é aceitável, dependendo do papel que se exerça em termos contábeis e, ao contrário da fala de Giuseppe Conte destacada anteriormente, não estamos em momento algum construindo uma página na história da humanidade, na história do planeta, estamos o tempo inteiro escrevendo um manual de economia.

A pandemia atual mostra que a escrita desse manual pode chegar a sua exaustão e há necessidade de que outras racionalidades, que não a do estado de exceção, sensibilizem, há que sensibilizar o sofrimento do outro, a voz da fome, mas também a dor de animais massacrados de forma desnecessária, simplesmente porque se convencionou dizer que é cultural, para não atrapalhar o funcionamento dos diferentes níveis do poço.

Muito difícil prever se alguma lição duradora virá da pandemia, difícil visualizar qual será o mundo após ela, mas seguro dizer que aos que sobreviverão, pelo futuro da própria existência na terra, o sentido de coletividade e de compaixão precisam ser resgatados e os discursos que habilitam a violência contra seres vivos humanos e não humanos não mais podem ter espaço, pois deles surgiu a real chance de extinção da espécie.

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*Adel El Tasse é advogado em Curitiba/PR. Procurador Federal. Professor de Direito Penal em diversos cursos de graduação e pós-graduação. Professor na Escola da Magistratura do Estado do Paraná. Professor no Curso CERS. Mestre em Direito Penal. Coordenador no Paraná da Associação Brasileira dos Professores de Ciências Penais. Coordenador do Núcleo de Estudos Avançados em Ciências Criminais.

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