Quarentena
O tal coronavírus veio aterrorizar o mundo.
quarta-feira, 8 de abril de 2020
Atualizado às 10:49
Vamos para mais uma semana internados em nossas próprias casas. Um pouco cansada das más notícias, tentei resumir o que se passa tão-somente comigo, nesta fase sombria de quarentena.
Eu moro longe do centro, longe de tudo aliás, na periferia de um subúrbio da grande São Paulo. Muita gente já me criticou por morar "nesse fim de mundo, tanto trânsito, paga pedágio". Hoje essas mesmas pessoas me dizem "você tem sorte, mora numa casa, pode ficar confinada no espaçoso quintal". O ser humano nunca está contente.
O tal coronavírus veio aterrorizar o mundo. Parece que vamos todos morrer. Fico curiosa, porque antes mesmo do vírus eu achava que já íamos todos morrer. Eu devia estar enganada. Éramos imortais e eu nem sabia.
Diante de tamanha desgraça anunciada e, como se essa decisão me coubesse, pus-me a pensar se eu já posso partir deste mundo, chegando a conclusão imparcial de que posso, claro. Qualquer um pode, a qualquer tempo. O destino é certo e devemos, tão-somente, portanto, cuidar do caminho.
Tenho a "sorte" de morar numa casa com espaço para confortável isolamento. Trabalhei mais de trinta anos por isso. Trilhei um árduo caminho e aproveitei cada dia dele. Cada pedra me deu uma lição, que usei para observar cada flor. Não me lembro de, depois dos sete anos de idade, ter acordado depois da 5h30 em nenhum dia útil.
Planejamento financeiro foi das primeiras coisas que aprendi, ainda que informalmente, contando as moedas que eu teria para comprar figurinhas. Completei meu primeiro álbum com 17 anos e o tenho guardado até hoje. Único. Comecei a trabalhar tão cedo que tudo o que eu queria com meu primeiro salário era uma caixa de lápis de cor.
Lidando com as pedras e as flores, fui aprendendo como ser eu mesma, o que se revelou uma longa e difícil tarefa. De todas as escolas que me foram mostradas, seja por circunstância ou marketing, as que mais me atraíram, além das de idiomas e da faculdade de Direito, foram a vida real e o mundo. Levei alguns anos para descobrir que isso podia se chamar empirismo.
Em todo e qualquer período de férias (sempre trabalhando, sempre estudando, desde cedo) saía pelo Brasil e pelo mundo, observando, conhecendo pessoas e coisas, aprendendo palavras e olhares, vivenciando alegrias, paixões, aflições e conflitos. Aprendi que desejos não são direitos e que, se você não emprestar a farinha, ninguém vai lhe emprestar o açúcar. Que ninguém cuida de mim melhor do que eu mesma, que solidão não é tristeza e que, mesmo se não precisar, é bom aprender a viver sozinho. Solidariedade é bom, mas até ela tem limites e todo animal tem sua fronteira.
Aprendi que minha melhor casa é meu próprio corpo e ele tem raízes invisíveis que merecem água e cuidados, as bases da vida. Assim como minha alma, meus sentimentos, minhas experiências, minhas hereditariedades e minhas conquistas. Tudo é sensível ao toque e sensível não significa frágil. E aprendi que o vazio do Homem é a falta da natureza, por isso devemos cuidar dela, se quisermos nossa plenitude.
Também aprendi que, antes de ser um bom profissional em qualquer área, é recomendável ser uma boa pessoa (em todas as áreas). Ser uma boa pessoa significa, entre muitas outras coisas, tratar bem o garçom e o motorista de ônibus e, se possível ainda, agradecer o lixeiro que passa correndo, por tudo o que ele faz por você. E sendo boa pessoa e bom profissional, temos que buscar a felicidade, que é algo que não nos cai no colo.
E devemos ser felizes para sermos capazes de ensinar a felicidade e perceber quando há falta dela, podendo buscá-la para os outros, além de para si mesmo. Muito disso se chama justiça.
Na minha fase de isolamento social, imposto pelo vírus recém-chegado, tenho tentado melhorar minha pessoa, no ilimitado ambiente que é minha cabeça no aconchego da minha própria casa, paga com meus esforços durante todo o caminho.
Venho fazendo coisas que não fazia antes. Todas muito simples, como suco de laranja natural, com a fruta espremida na hora, com as minhas mãos (doloridas, pelo tempo). Limpei as estantes dos livros e tirei muitos deles para ler pela segunda vez, ou terceira, porque me transformo amiúde e o mesmo deve passar com eles.
Estou costurando, consertando e reformando velhas roupas, há muito esquecidas ou abandonadas em razão da inadequação. Tantas coisas, mesmo pessoas, são abandonadas porque inadequadas ao momento. Até que os tempos mudam.
Passeio pelo jardim, olho minhas plantas, dou de comer aos passarinhos, espanto as taturanas, no seu ritmo, de dentro de casa. Nunca as mato, pois elas não me fazem mal algum. Só me afligem aquelas mil perninhas sob o corpo peludo que, ainda, dizem, queimam. Tomo banhos de sol, porque pouco dele aproveitei em tempos de intermináveis reuniões de trabalho onde meu conhecimento jurídico era útil. E lembro com alegria das ocasiões que notei minha inutilidade e fugi, traquina. Para tomar sol ou para voltar para casa e abraçar minha filha.
E hoje que estou em casa, não me permito reclamar, porque tenho tudo. E tudo é finito. A comida vai acabar, o dinheiro vai acabar, a saúde vai acabar e a estrada vai acabar.
Minha herança é a história sobre o caminho repleto de pedras e flores, que me ensinaram coisas, que me trouxeram a dose de felicidade da qual não tenho porque me envergonhar.
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*Luciana Gualda é advogada do escritório Felsberg Advogados.