A nobreza obriga
A parcela de gente que aspira transcender em tudo o que faz, baila com as circunstâncias, o que é bem diferente do que se deixar levar, arrastar. Esta mesma parcela repudia a vulgaridade e dilata em seu peito os espaços da Verdade e da solidariedade.
quarta-feira, 8 de abril de 2020
Atualizado às 11:05
Em um tempo em que o mundo se deixa dominar pela vulgaridade e faz da mediocridade a medida de quase todas as coisas, muito aproveita lembrar as interessantes palavras de José Ortega y Gasset em A Rebelião das Massas:
A diferença entre o homem seleto e o vulgar
Inversamente, o homem seleto ou excelente está constituído por uma nobre necessidade íntima de apelar de si mesmo a uma norma que está além dele, que é superior a ele, a cujo servir se põe livremente. Recordem que no começo distinguíamos o homem excelente do homem vulgar, dizendo que aquele é o que exige muito de si mesmo, e que este não se exige nada, não se contenta com o que está encantado consigo. Contra o que se costuma crer, é a criatura de seleção, e não a massa, quem vive em servidão essencial. Sua vida não terá sentido se não consistir no serviço de algo transcendente. Por isso não sente a necessidade de servir como uma opressão. Quando ela, por azar, lhe falta, sente desassossego e inventa novas normas difíceis, mais exigente, que lhe oprimam. Isso é a vida como disciplina - a vida nobre. (p. 135)
Noblesse obligue
A nobreza se define pela exigência, pelas obrigações, não pelos direitos. Noblesse oblige. "Viver à vontade é de plebeu: o nobre aspira à ordenação e à lei" (Goethe). Os privilégios da nobreza não são originariamente concessões ou favores, mas pelo contrário, são conquistas. E, em princípio, sua manutenção supõe que o privilegiado seja capaz de reconquistá-las a todo instante, se fosse necessário e alguém as contestasse. Os direitos privados ou privilégios não são, pois, posse passiva e simples desfrutar, mas representam o perfil de até onde se chega o esforço da pessoa. (...) É irritante a degeneração sofrida, no vocabulário usual, por uma palavra tão inspiradora como "nobreza". (...) Nobre significa o "conhecido": entenda-se o conhecido de todo o mundo, o famoso, que se fez conhecer se sobressaindo da massa anônima. Implica um esforço insólito que motivou a fama. Nobre equivale, logo, a esforçado ou excelente. (p. 136)
Sim, a nobreza obriga.
O homem que busca a excelência é o que se guia pela nobreza. Pleonástica ou não, a afirmação é verdadeira e há de se fazer presente como selo indelével no coração de todo o mundo.
Infelizmente, sob risco de contradição, um "todo o mundo" que, no fundo, não é "todo o mundo", mas um pequeno mundo dentro do grande mundo.
Por todo o mundo, entenda-se: aquela parcela de gente que insiste em não abraçar a vulgaridade, não se apequenar pelo egoísmo, não se deixar levar pelas circunstâncias como um pedaço de papel se deixa pelo vento.
A parcela de gente que aspira transcender em tudo o que faz, baila com as circunstâncias, o que é bem diferente do que se deixar levar, arrastar. Esta mesma parcela repudia a vulgaridade e dilata em seu peito os espaços da Verdade e da solidariedade.
Há no homem virtuoso, nobre, algo maior que o altruísmo: o espírito de sacrifício.
Não o sacrifício dos temerários, mas os de que têm joelhos no chão e corações ao alto. Com "ojos clavados in tierra", o homem nobre brada ao Céu: Duc in Altum! Este espírito de sacrifício chamo de "consciência do Gólgota".
E o que é essa consciência? Aquela que crê firmemente que todo sacrifício ordenado - isto é, orientado pela fé, pela esperança e pelo amor -, conduz ao pleno sentido da vida, à vitória sobre todas as coisas.
Quem aspira sinceramente à grandiosidade, não aquela comum aos tolos, mas a transcendente, não se contenta com algo menor que a busca incessante da excelência, compromete-se com os grandes ideais e sente alegria mesmo diante das adversidades.
Na Grécia antiga, a mitologia dizia que o homem excelente era o que se fazia pleno do espírito de Kaidós.
O espírito de Kaidós, quando presente, fazia o combatente crer que a vitória já havia sido conquistada antes mesmo de a batalha ser iniciada.
Kaidós não era aquela soberba própria dos incautos e presunçosos, mas a chama abrasadora da confiança além da própria confiança, o que se pode chamar de fé inabalável e em exercício.
Pagando os devidos tributo ao grande Santo Agostinho, que muito bem incorporou a filosofia grega ao corpo doutrinário cristão e ao genial Camões, que em Os Lusíadas, entremeou mitologia grega e cristandade, gosto de pensar que o homem nobre comentado por Ortega y Gasset é o que tem o Kaidós como estampa e a consciência do Gólgota, como bússola.
Este homem não é imune aos erros, muito menos deixa de pecar por tibieza. Não! É um homem como qualquer outro, que vive entre quedas e soerguimentos. Porém, é um homem forte e que busca o virtuosismo contínuo, como a sentinela pela aurora, o sedento por água. Nestas coisas é que deixa de ser como qualquer outro e põe os dois pés no pico íngreme da nobreza.
O homem nobre busca a profundidade em tudo o que faz e vê o mundo com perspectivas que a massa nem ousa imaginar. Busca e faz não com a pretensão intelectual que se lhe seria contratestemunho, mas porque sabe que nada é mais pesaroso do que viver superficialmente.
Também é de Ortega y Gasset a afirmação: "nobreza é sinônimo de vida esforçada". Não poderia concordar mais. Quem, diante de um problema, se contenta com qualquer resposta, sem um prévio e sincero esforço intelectual, afasta-se das virtudes e da nobreza como o pântano dista da terra fecunda.
E aí, na afirmação em comento, reclamo de Santo Inácio de Loyola o apoio para pretenso conceito. O famoso santo espanhol dizia, mais ou menos com tais palavras, que o esforço sincero em ser santo agradava a Deus, ainda que a santidade não fosse alcançada (sendo isso, doce consolação). O esforço, portanto, é bastante para que alguém possa vestir o manto da nobreza. Mesmo que os resultados não se apresentem e ainda que o esforçado não obtenha notoriedade em nada, a nobreza lhe acarinhará a face, pois seduzida irremediavelmente.
Nenhum esforço contra a vulgaridade é ignorado pela nobreza.
A nobreza obriga e impinge um caráter sulcado em quem a toma por leal companheira. A nobreza transforma, alimenta, impulsiona, difere o homem egrégio do vulgar e o faz gigante, por mais pequeno que seja.
Nem todo o mundo pode tudo e as pessoas não são iguais. Entretanto, a nobreza que se impõe pelo esforço e pelo amor ao que é profundo, substancial, está ao alcance de quem se recusa a fazer parte da pasta-humana que pensa por slogans e fala por clichês.
Até no lazer ou no beijo em sua amada, o homem nobre se obriga a ser diferente. E assim se obriga pela consciência do Gólgota, por ser um eterno agonizante, um combatente, ainda que suas armas não sejam espadas, adagas, pistolas ou fuzis, mas rosários, canetas, papéis, enxadas, pás, estetoscópios ou tesouras.
A nobreza que obriga é, talvez, a mais democrática das condições, porque suas portas estão sempre escancaradas aos transeuntes. Paradoxalmente, porém, é a mais aristocrática. E assim o é não por sua ontologia ou vontade. É por causa da teimosia dos homens em recusar seus convites em encantos, obstinados que são na atávica paixão pela mediocridade.
A maior parte dos homens é viciada em mediocridade, seduzida pelos cantos de sereias do mundo, sendo que quase nenhum põe cera em seus ouvidos ou se faz amarrar em um mastro como Ulisses. Por isso, seguem em direção ao canto, mesmo sabendo do iminente naufrágio.
Há algo de confessional na nobreza. Explico: assim como a fé, o chamado da nobreza é universal, mas poucos são os que verdadeiramente o aceitam e tentam, superando as próprias misérias, viver segundo seus preceitos.
Noblesse obrige! Eis aí mais um abençoado paradoxo e um novo alinhamento ao fidei repertório.
Embora a nobreza obrigue, sua adesão é voluntária. Quem a ela se subordina, subordina-se livremente. A nobreza, porque moldada na mesma forja de todas as coisas pias, boas e justas, segue a ordem celestial e respeita o livre-arbítrio, presente de Deus aos homens.
Quem escolhe a nobreza como noiva o faz por livre vontade e em nome da honra. Assume a servidão como estado de vida e passa a render culto à sabedoria. Desse momento em diante, sem ignorar inescapáveis tropeços, viverá virtuosamente ou, ao menos, distante da superficialidade, amante ignóbil da futilidade, prima da vulgaridade e amiga íntima da mediocridade.
O homem nobre não teme a morte, a peste, a álea ruim, nem qualquer adversidade. Teme, apenas, a vulgaridade. Se há vaidade nisto, lança seu olhar penitente ao Alto e pede perdão a cada suspiro, pois sabe que jamais se livrará do orgulho de, mesmo sendo comum, jamais ser vulgar, medíocre.
Noblesse obligue.
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*Paulo Henrique Cremoneze é advogado do escritório Machado, Cremoneze, Lima e Gotas - Advogados Associados.