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Direito de arrependimento do consumidor e Covid-19: um recorte analítico do projeto de lei 1.179, de 2020

Nesse cenário de incertezas econômicas, há, contudo, uma única certeza: a de que absolutamente todos, fornecedor e consumidor, tornaram-se vulneráveis, isolados em suas casas e impossibilitados de produzirem e consumirem como antes.

sexta-feira, 3 de abril de 2020

Atualizado às 10:59

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A história das relações contratuais no ocidente, especialmente com o advento do Código Civil Francês de 1804, lastreou-se no conceito de autonomia da vontade, segundo o qual os contratantes, enquanto cidadãos livres, iguais e fraternos, gozariam de suposta paridade nas relações obrigacionais.

A passagem da modernidade para a contemporaneidade, juntamente com as radicais transformações dos meios de produção, fez com que os negócios jurídicos de consumo perdessem o caráter de bilateralidade, típico do Direito Civil clássico, em que as partes convencionavam as obrigações de cada uma delas na avença. Com a produção em larga escala, estabelece-se um modelo negocial em que passa a ser do fornecedor o papel exclusivo de ditar todas as cláusulas contratuais, ao passo que a vontade do consumidor se adstringiu a assinar, ou não, um "formulário" previamente elaborado (contrato de adesão).

Se, de um lado, esse modelo negocial trouxe dinamismo às relações consumeristas, de outro, deflagrou a fragilidade jurídica daquele que deixou de ser partícipe ativo na elaboração das cláusulas contratuais.

Nesse cenário de relação contratual assimétrica, a Constituição Federal, em seu artigo 48, determinou que o Congresso Nacional, dentro de um prazo de 120 (cento e vinte) dias, elaborasse o Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90). A entrada em vigor do aludido microssistema jurídico, em 1991, trouxe à baila o reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo.

Essa nova hermenêutica contratual, pautada na vulnerabilidade do consumidor e, como corolário lógico, no afrouxamento do modelo clássico do pacta sunt servanda, trouxe ao ordenamento o direito de arrependimento imotivado, consoante estampado no art. 49, do CDC, in verbis:

Art. 49. O consumidor pode desistir do contrato, no prazo de 7 dias a contar de sua assinatura ou do ato de recebimento do produto ou serviço, sempre que a contratação de fornecimento de produtos e serviços ocorrer fora do estabelecimento comercial, especialmente por telefone ou a domicílio.

Além da vulnerabilidade, tem-se que os principais fundamentos permissivos desse prazo de 07 (sete) dias para o consumidor desistir do contrato, sem qualquer penalidade ou encargo, consistem em conferir um tempo adicional de reflexão para que compras por impulso possam ser desfeitas; para que o consumidor possa testar pessoalmente o produto ou serviço; ainda, comparar com outros modelos e marcas;  esclarecer dúvidas pessoalmente; e trocar experiências com outros consumidores.

Com o crescimento exponencial dos contratos eletrônicos, aqueles realizados por meio da internet, o direito ao arrependimento firmou-se, de vez, como mecanismo de proteção do consumidor compungido.

Nos próximos meses, no entanto, a vigência do art. 49, do CDC, poderá ser incubada por razões de força maior. Isso porque, a pandemia mundial da Covid-19, problema de saúde global que assolou, ainda de forma incalculável, a economia de diversos países de todo o globo1, reclama a ministração de remédios jurídicos hábeis à regulação das relações obrigacionais afetadas, especialmente, pelo isolamento social.

Nesse cenário de incertezas econômicas, há, contudo, uma única certeza: a de que absolutamente todos, fornecedor e consumidor, tornaram-se vulneráveis, isolados em suas casas e impossibilitados de produzirem e consumirem como antes. É em razão dessa situação sem precedentes que o Senador Antonio Anastasia (PSD/MG) apresentou, no último dia 30 de março de 2020, Projeto de Lei 1179, dispondo sobre "o Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado (RJET) no período da pandemia do Coronavírus (Covid-19)".

O objeto do projeto de lei consiste em estabelecer medidas legislativas transitórias que, em alguns casos, suspendam temporariamente a aplicação de dispositivos de códigos e leis extravagantes, no âmbito das matérias preponderantemente privadas, a exemplo da suspensão da prescrição, da proteção especial do locatário, da postergação da entrada em vigor da Lei geral de Proteção de Dados, da prisão do devedor de alimentos sob a modalidade domiciliar etc.

Dentre os mais de vinte artigos propostos, chama-nos especial atenção o art. 8º, in verbis:

Art. 8º Até 30 de outubro de 2020, fica suspensa a aplicação do art. 49 do Código de Defesa do Consumidor na hipótese de produto ou serviço adquirido por entrega domiciliar (delivery)

Serviço adquirido por entrega domiciliar possui, como é de se esperar, amplitude interpretativa substancial. Dicionários brasileiros, por exemplo, conceituam o termo delivery, original de língua inglesa, como o estabelecimento que adota o sistema de entrega em domicílio2. A definição é consonante com o que se extrai do próprio dicionário de Cambridge: o ato de levar bens, cartas, pacotes etc. para as casas das pessoas ou seus ambientes de trabalho3.

Outrossim, em que pese o termo delivery ser usualmente utilizado, ao menos no Brasil, de forma mais restritiva, referindo-se à entrega de comidas e outros serviços de entrega rápida, pode-se dizer, com segurança, que o projeto de lei em questão abarca todos os tipos de serviços de compra e venda remota com entrega domiciliar, tais como os varejos online.

Essa conclusão é ainda ratificada pela expressa referência ao art. 49 do código consumerista, cuja interpretação jurisprudencial tem constantemente seguido a linha ampliativa, abarcando, sem grandes distinções, o conceito de compras remotas4.

Sob esse prisma, parece claro que o projeto ora comentado se propõe a suspender o direito ao arrependimento do consumidor em relação a todos os serviços de entrega domiciliar, aí abarcando serviços de entrega express - como os fornecidos por aplicativos de entrega rápida - bem como o amplo leque de lojas de varejo online.

Vale destacar, a título informativo, que esta determinação não se aplica a compras feitas diretamente no estabelecimento comercial, de forma pessoal, pois nestes casos a devolução do dinheiro se dará apenas na hipótese de vício e/ou defeito no produto. Tem-se como exemplos clássicos as "vendas de porta em porta"; os contratos de time-sharing e ofertas publicitárias que reduzem o tempo de reflexão quanto ao ato de consumo, tais como "os primeiros que ligarem terão determinado desconto"5.

As consequências dessa providência, apesar de ainda incertas, têm um objetivo claro: mitigar o resguardo absoluto das expectativas e necessidades do consumidor, por meio da relativização de sua hipossuficiência, em prol da preservação da autossuficiência dessa espécie de fornecedor online. Em tempos de crise, não restam dúvidas de que providências como essa podem significar a diferença entre a subsistência e a bancarrota, especialmente de pequenas e médias empresas.

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1 Trecho da justificação do Projeto de Lei nº 1179, de 30 de março de 2020.

2 Clique aqui. Acesso em 31/03/2020 às 09:35

3 https://dictionary.cambridge.org/pt/dicionario/ingles/delivery Acesso em 31/03/2020 às 09:37

4 TJ/SP - AC: 10551716020168260002 SP 1055171-60.2016.8.26.0002, Relator: L. G. Costa Wagner, Data de Julgamento: 15/01/2013, 34ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 28/06/2019

5 Nem toda compra pela internet está sujeita ao direito de arrependimento.

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*Ana Carolina Sarmento Vidal Meneses é graduada em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco (2014); Pós-graduada em Processo Civil Contemporâneo pela Universidade Federal de Pernambuco (2017); Advogada; Sócia do escritório Queiroz Cavalcanti Advocacia. 

*Sílvio Latache de Andrade Lima é graduado em Direito pela Faculdade Marista do Recife (2011); Pós-graduado em Direito Civil e Empresarial pela Universidade Federal de Pernambuco - UFPE (2015); Mestre em Indústrias Criativas pela Universidade Católica de Pernambuco - UNICAP, com desenvolvimento de pesquisa na área de propriedade intelectual (2019); Curso de iniciação em liderança pelo INSPER;  Advogado; Sócio do Escritório Queiroz Cavalcanti Advocacia; Professor de Direito Civil da Pós-graduação da Faculdade Escritor Osman da Costa Lins - FACOL; Professor de Direito e Processo Constitucional da graduação da Faculdade Nova Roma/FGV; Professor Honorário da Escola Superior de Advocacia de Pernambuco - ESA/PE (Pós-graduação).

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