Nós podemos mais
Nunca antes a construção de um mundo sustentável se tornou tão evidente para todos e essa desafiadora experiência recente vem demonstrando que nós podemos mais do que estamos fazendo atualmente.
sexta-feira, 3 de abril de 2020
Atualizado às 10:20
Em meio ao sofrimento causado pela pandemia do coronavírus e aos impactos que vem trazendo à dinâmica social e econômica em escala global, chama a atenção a situação dramática do povo italiano, no qual, como oriundi, compartilho de um profundo sentimento de pesar com aquela nação, especialmente com todas as famílias que não puderam prestar suas últimas homenagens e propiciar um sepultamento digno aos seus entes queridos. Ficará na memória de todos nós as imagens que foram propagadas nas mídias nas últimas semanas dos caminhões militares em cortejo fúnebre na cidade de Bérgamo, no norte da Itália, encarregados de realizar o transporte de inúmeros caixões para outras localidades em virtude do colapso dos serviços funerários, e também da necessidade de se manter o isolamento e garantir a proteção das pessoas. Com raízes fincadas também no interior paulista e com educação cristã, os rituais ainda são bastante valorizados por mim e por minha família, e as despedidas sempre se revestem de um momento oportuno para simbolizarmos as nossas perdas e darmos novos sentidos à vida.
As imagens marcam nossas memórias e muitas delas atravessam séculos, são verdadeiros ícones, servindo-nos como importantes testemunhos, sobretudo para lembrar à coletividade um fato histórico que foi determinante em um dado momento, ou mesmo para destacar feitos do passado que possam servir como exemplos positivos ou negativos a serem levados em conta no contexto atual. Os mais velhos, como eu, devem se lembrar das imagens transmitidas pela televisão em 1969 da chegada do homem à Lua, refletindo uma grande conquista da ciência, ou uma fotografia da menina vietnamita nua correndo de sua aldeia após um ataque de napalm, em 1972, que chocou o mundo ao mostrar o efeito devastador do poderio bélico do Ocidente sobre a vida humana, ou mais recentemente, em 2015, para a lembrança dos mais novos, a imagem do menino sírio morto estendido numa praia da Turquia, que se tornou um símbolo emblemático da crise migratória dos últimos tempos. Sim, as imagens resistem ao tempo e tampouco gostamos de retomá-las, e rogo para que a imagem dos caminhões militares italianos em cortejo não ocupe o topo do nosso imaginário recente.
Assim, profundamente sensibilizado, não poderia deixar de iniciar este breve texto de reflexão sobre a atual emergência sanitária, por mais pesadas que minhas referências iniciais possam parecer na visão de alguns, sem antes prestar também minha solidariedade a todos aqueles que sofrem nesse momento tão difícil de perdas e incertezas em todas as partes do mundo e no Brasil.
Além do comprometimento com o meu trabalho, que tem demandado não apenas de mim, mas de todas as nossas equipes, enorme grau de inventividade e criatividade para se adaptarem às mudanças impostas com a quarentena, e para que todos os nossos serviços possam ser prestados com a mesma eficiência de sempre, tenho me recolhido diariamente em minhas preces para que a Divina Providência conforte a todos, dando-nos coragem e sabedoria para que não percamos a nossa capacidade de exercitar a generosidade e a humanidade com o próximo, e que o senso de responsabilidade social prevaleça entre aqueles que têm o poder de decisão, para que o momento atual possa ser menos penoso para todos, sem exceção.
No Brasil, a par das dificuldades enfrentadas pelos governos de todas as esferas e autoridades públicas em encontrar um caminho de consenso na condução das medidas necessárias para a contenção da propagação do vírus, sem comprometer vidas e evitando danos irreversíveis à economia, em face das recomendações de distanciamento social apontadas pela OMS e da experiência "bem-sucedida" nessa direção sendo evidenciada em diversos países, não podemos esquecer, mesmo em meio a esse turbilhão de tensos acontecimentos, as referências que a ciência vem nos apontando há bastante tempo sobre as reais ameaças para a saúde do Planeta Terra.
A origem dessa emergência sanitária, certamente a maior crise do século XXI, nós conhecemos desde muito. Reside no modo como tratamos a Nossa Casa Comum, tema que remonta aos primeiros movimentos com repercussão global iniciados em 1972, em Estocolmo, na Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente Humano, quando centenas de países trouxeram à tona as discussões sobre a universalidade dos problemas ambientais, a necessidade de se rever as formas de utilização dos recursos naturais e a urgência da adoção de um modelo de produção que compatibilizasse desenvolvimento econômico e preservação ambiental.
Atualmente, embora estejamos cercados de múltiplas visões a respeito da participação antrópica nos efeitos nocivos ao meio ambiente, com manifestações que incluem pensamentos que negam a relevância das ações humanas na realidade do aquecimento global e das mudanças climáticas, fazendo contraponto com a perspectiva científica e todo o conhecimento acumulado da climatologia, não podemos perder de vista nesse momento as ações emergenciais necessárias, pautadas no sobrepujamento das pesquisas científicas em curso, mesmo inconclusivas, deixando para depois o caloroso debate em torno dessas questões em face das incertezas que ainda cercam o combate ao coronavírus e da ausência de uma vacina que ponha fim a esse mal.
Certamente, outras experiências recentes, como mostra o relatório Fronteiras 2016 do PNUMA, já apontavam algumas zoonoses como grandes ameaças ao desenvolvimento econômico e à saúde da população e a todo o comprometimento da cadeia ecossistêmica, a exemplo do que ocorrera com o ebola, a gripe viária e o zika vírus, mas, como esses surtos foram controlados e não se transformaram em pandemias, os riscos das doenças zoonóticas foram subdimensionados. Assim, o coronavírus reacende a necessidade de uma vigilância maior a qualquer indício no mundo das doenças zoonóticas, o que equivale a reforçar a urgência na proteção da vida selvagem, incluindo a redução e a fragmentação de habitats naturais, o combate ao comércio ilegal de animais e à poluição e cada vez mais os riscos oriundos das mudanças climáticas.
Por ora, cabe-nos celebrar as boas iniciativas que têm surgido em todo o mundo e no Brasil, e que vêm demonstrando solidariedade, cooperação, humanismo e resiliência, e, mais do que isso, vêm aproximando nações que historicamente se encontram em lados opostos.
No Brasil, como um esforço de guerra, empresas estão transformando suas produções para garantir o abastecimento de insumos, máscaras, respiradores, álcool em gel e de diversos produtos indispensáveis para a luta contra o coronavírus, denotando um comprometimento ético e uma postura cidadã de grande parte do nosso empresariado nacional e de empresas multinacionais que aqui mantêm atividades econômicas, sem contar o heroico papel que vêm sendo exercido pelos nossos profissionais da saúde e de outros serviços essenciais que não medem esforços para garantir que as nossas vidas não estejam completamente afetadas.
Depois que passar a tormenta, e vai passar, fatalmente os debates em torno dos grandes temas ambientais globais se intensificarão e os movimentos a que assistimos em 2019, que levaram milhares de manifestantes às ruas contra as mudanças climáticas, terão razões suficientes para repetirem novas ações, bem como se amplificarão as pressões aos países que ainda relutam em adotar medidas de redução das emissões de gases de efeito estufa, entre outras reivindicações que estarão presentes nos encontros internacionais previstos para este ano, com destaque para a Convenção para a Biodiversidade, previsto para outubro, na China.
O receituário do que devemos fazer para termos um mundo mais saudável nós já sabemos, mas o mais importante nesse momento crucial pelo qual passa a humanidade é manter o compromisso ético com a preservação das vidas humanas, dosando também medidas que possam minimizar os efeitos que virão sobre a economia.
Nunca antes a construção de um mundo sustentável se tornou tão evidente para todos e essa desafiadora experiência recente vem demonstrando que nós podemos mais do que estamos fazendo atualmente.
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*Édis Milaré é fundador do escritório Milaré Advogados.