Estado de emergência: uma análise sob a ótica de compliance
Declarado em casos de desastres naturais, crises financeiras ou econômicas, situações de guerra ou epidemias, como é o caso do Covid-19, o estado de emergência, tem como objetivo permitir ações mais céleres por parte dos entes públicos
sexta-feira, 3 de abril de 2020
Atualizado em 9 de abril de 2020 13:48
Amplamente noticiado nos últimos dias, o estado de emergência, declarado por alguns governos estaduais e municipais, aplica-se a situações extraordinárias, frente à atual e iminente ameaça que pode causar instabilidade no país.
Declarado em casos de desastres naturais, crises financeiras ou econômicas, situações de guerra ou epidemias, como é o caso do Covid-19, o estado de emergência, tem como objetivo permitir ações mais céleres por parte dos entes públicos, tanto em relação aos atingidos pelo que deu causa à declaração de emergência (coronavírus), quanto àqueles que pretendam prestar auxílio na superação das dificuldades decorrentes da pandemia.
Referida flexibilização, no entanto, não pode ser confundida com ampla licenciosidade, nem ter seu fim desvirtuado para proveito do próprio agente público ou terceiro a ele relacionado. A atenuação do rigorosíssimo formal inerente às contratações públicas, durante o período de vigência de situações de emergência, deve ser observada de perto, a fim de mitigar os riscos de desvios e abusos.
Nesse sentido, alguns cuidados devem ser observados pelos agentes públicos e criteriosamente fiscalizados pela população:
1. A dispensa de licitação para Compras e Contratação de Serviços necessários para atender a situação de emergência (artigo 24, inciso IV, da lei 8.666/93), traz consigo o risco de (I) contratações não relacionadas à solução do problema que deu causa à declaração do estado de emergência; (II) em quantidade e/ou condições distintas do fim da contratação e da real necessidade da população; (III) direcionadas e, por conseguinte, conflituosas (apesar da obrigação de apresentação das razões de escolha do fornecedor ou executante dos serviços, conforme dispõe o art. 26 da Lei de Licitações); (IV) não observância do rito próprio da dispensa de licitação; (V) preços superfaturados (mesmo diante da obrigação de justificativa do preço) e (VI) corrupção.
2. A contratação temporária de pessoal, poderá se dar quando o Estado ou Município já tiver editado lei que preveja a contratação como situação excepcional de interesse público (artigo 37, IX, da CF). A lei deverá estabelecer os prazos máximos de contratação, salários, direitos e deveres, proibição ou possibilidade de prorrogação de contrato e a nova contratação da mesma pessoa, ainda que para outra função, enquanto o ente público contratante deverá dar ampla transparência às contratações. Os riscos envolvidos nessa prerrogativa vão desde a contratação de mão de obra desqualificada à contratação de parentes (nepotismo e nepotismo cruzado) ou contratação de funcionários fantasmas.
3. O aumento de gastos com pessoal, no período de final de mandato (2020 é ano eleições municipais), apesar de factível, conforme prejulgado 1252 do Tribunal de Contas do Estado de Santa Catarina, desde que o ato vise exclusivamente a solução da situação de emergência, pode simular a compra de votos, "legitimar" o aliciamento de eleitores (voto de cabresto).
4. O uso de bens privados e custeio da sua manutenção durante do estado de emergência, embora permitido, desde que devidamente formalizado, inclusive para legitimar eventual despesa pela Administração Pública, pode ser um ato simulado e contrário aos princípios da Administração Pública.
Nesse sentido, pode ocorrer (I) o uso de bem particular do agente público ou de terceiro a ele relacionado; (II) o uso fictício, quando o bem não é útil à solução do que deu causa ao estado de emergência, além de; (III) despesas desproporcionais e incompatíveis com os preços de mercado ou período de uso do bem privado.
5. As doações de um município para o outro, independentemente se em atendimento à requisição da Defesa Civil ou diretamente à Comissão Municipal de Defesa Civil, por outro lado, podem sofrer extravios, serem usadas para fins distintos da solução da situação emergencial. Nesse sentido, importante a (I) contabilização, pelos Municípios, dos materiais e bens a serem doados à Defesa Civil; (II) prova efetiva da entrega, por meio de comprovante do recebimento pela comissão; bem como (III) o controle da sua distribuição.
6. O custeio de despesas com transporte e alimentação de voluntários poderá ocorrer, desde que o ente público proceda à prévia contratação dos voluntários e faça prova, para legitimar a despesa de que os mesmos estão a serviço do ente público, exclusivamente para o atendimento da situação emergencial.
Não diferente da contratação de pessoal, há o risco de cadastramento de parentes e amigos, do custeio de despesas sem a devida prestação do serviço voluntário e mesmo de superfaturamento das referidas despesas.
O estado de alerta da população diante da velocidade de transmissão do coronavírus não pode justificar negligência na fiscalização do ente público, assim como o agente público não pode se olvidar das suas obrigações, de atuar com eficiência e probidade, nos limites das suas atribuições, da lei e em respeito aos princípios da Administração Pública.
Na luta contra o coronavírus não há espaço para uma atuação "onde os meios justifiquem os fins", é preciso que a batalha contra o vírus seja travada de forma ética e transparente, que a população se una também nos esforços de combate à corrupção, que faz sangrar os cofres públicos, reduzindo a capacidade do Estado de, dentre outras coisas, prestar serviços de saúde eficientes e combater epidemias como a que estamos a enfrentar.
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*Gabriela Alves Guimarães é advogada, diretora do Instituto Não Aceito Corrupção, sócia da FourEthics, Head de Compliance e Business Intelligence. É coordenadora e professora de cursos de compliance na IBS/ FGV, LEC, Católica SC, FIA, Instituto Butantan e Universidade Cândido Mendes.