O estado de emergência na saúde no Brasil e o pacto republicano
A repercussão, nos meios jurídico e político, da decisão proferida pela 26ª Vara Federal do Rio de Janeiro na Ação Popular 5.019.082-59.2020.4.02.5101, evidencia que a atividade institucional dos Poderes de Estado está dirigida a alcançar soluções concretas, em caráter objetivo, para a promoção do bem de todos, sob o escopo da proteção da vida e defesa da saúde no Brasil.
sexta-feira, 3 de abril de 2020
Atualizado às 09:17
Este texto pretende debater alguns aspectos das posições institucionais dos Poderes de Estado no âmbito da Federação Brasileira neste estado excepcional de emergência, apontando a inadequação da atividade que possa refugir às balizas constitucionais e legais; abordar o tema da proclamada crise político-social que o Nação estaria a passar; o papel da União Federal como coordenadora e pessoa jurídico-política competente para decidir, em última análise, sobre as medidas restritivas e liberatórias a bem da defesa e da proteção da saúde dos brasileiros e residentes em território nacional; bem assim apresentar as evidências positivas de que o processo decisório está atingindo o elevado fim constitucional a que se dirige a atuação estatal, a partir de ações institucionais cooperativas dos três Poderes.
A repercussão, nos meios jurídico e político, da decisão proferida pela 26ª Vara Federal do Rio de Janeiro na Ação Popular 5.019.082-59.2020.4.02.5101, evidencia que a atividade institucional dos Poderes de Estado está dirigida a alcançar soluções concretas, em caráter objetivo, para a promoção do bem de todos, sob o escopo da proteção da vida e defesa da saúde no Brasil.
Não obstante e notadamente em um ambiente excepcional, há que preservar-se a "Lei e a Ordem". De um Estado Constitucional Democrático de Direito isto denota que o arcabouço institucional deve agir nos limites das prerrogativas definidas pela Carta Constitucional, conforme os mecanismos a si atribuídos. A despeito do estado de calamidade pública e descontrole - que se evidencia da perda de domínio sobre as coisas do mundo que o homem julgaria deter; cabe-nos, aos operadores do direito e aos administradores a difícil tarefa da contenção dos espíritos e angústias diante do caos.
Fato é que tal decisão determinou ao Sr. Presidente da República e ao Congresso Nacional "que deliberassem de forma definitiva, no prazo de 96 (noventa e seis) horas, acerca da alocação dos recursos destinados ao Fundo Especial de Financiamento de Campanha - FEFC1 para medidas de combate ao CORONAVÍRUS. Isto, mesmo reconhecendo expressamente que "as demandas relativas à saúde estão nitidamente atreladas às políticas públicas e às possibilidades orçamentárias existentes, sendo necessária a devida iniciativa dos Poderes Legislativo e Executivo". Ainda, motiva-a afirmando que "poder-se-ia concluir que ao proferir decisão sobre o tema, o Juízo de primeiro grau estaria usurpando competências".
Ora, se tal restou consignado antes da justificação da decisão2, o que moveu a magistrada a proferi-la: Histeria ou Ideologia?
Uma análise que parta da perspectiva do interesse público e da legitimidade, ou não, do ato contra o Poder Público, notaria corrente o iminente o risco de grave lesão à ordem, à segurança e à economia públicas - e de forma consequente à coletividade, para concluir que a decisão se revelou lesiva e ilegítima frente à ordem constitucional. Tal, na medida em que interfere na atribuição privativa do Chefe de Estado e do Governo Brasileiros e do Congresso Nacional, usurpando assim competências.
Na mesma medida, justificar o estado excepcional para violar a Ordem Constitucional e decidir, sem base em qualquer parâmetro normativo, localiza a decisão - de caráter arbitrário, na seara eminentemente política, que - pela via indireta, não somente avoca para si a definição acerca da conveniência e oportunidade de aplicação de receita orçamentária, mas, ao violar o Princípio Constitucional da Separação de Poderes, determina a deliberação acerca da desconstituição do FEFC e aplicação para finalidade diversa os recursos destinados à aplicação em campanhas eleitorais.
Desta feita, ao decidir, exortando a magistratura ao equilíbrio, serenidade e prudência - requisitos definidos pelo Código de Ética da Magistratura Nacional (Resolução CNJ n. 60, de 19 de setembro de 2008), o despacho do desembargador presidente do Tribunal Regional Federal da 2ª Região suspendeu os efeitos da decisão na Suspensão da Liminar 5002991-65.2020.4.02.0000/RJ, para evitar a lesão à ordem pública.
No ato de suspensão concluiu sobre o risco que a decisão combatida impunha, pois "teria o condão de acarretar grave lesão à ordem pública diante do risco de a crise político-social que a Nação atravessa".
E aqui cabe um questionamento sobre a proclamada crise "político-social": a quem caberia a definição sobre medidas restritivas e/ou liberatórias para o enfrentamento deste estado excepcional3, à União, aos Estados, Municípios ou agências reguladoras independentes?
Há que se relembrar que desde o preâmbulo, a Constituição impõe ao Estado a finalidade de assegurar o bem-estar da sociedade.
Daí que a partir do modelo federativo adotado, a União Federal exerce o papel de pessoa jurídico-política coordenadora do processo de proteção social na seara do estado de emergência.
Tal, sob a perspectiva e sob as balizas das regras e princípios emanados do Estado Constitucional Democrático de Direito Brasileiro instituído pela Ordem de 1988.
Isto se denota a partir da leitura conjugada dos artigos 21 a 24, 142 e 144 da Constituição, que outorgam à União Federal a competência para assegurar a defesa nacional - no âmbito do estado de sítio, defesa ou da intervenção federal, bem assim para, privativamente, realizar requisições civis, militares; realizar a defesa territorial, a defesa civil e a mobilização nacional; definindo as diretrizes, tanto da política nacional de transportes, de trânsito, dos regimes dos portos e aéreo; e as normas gerais de efetivos, convocação das forças armadas e as suas forças auxiliares e de reserva.
Portanto, em um cenário em que não seja possível a construção de soluções conjuntas entre os entes federativos de uma forma coordenada, para a efetivação de ações convergentes no âmbito de uma cooperação federativa e daí decorram conflitos:
A União deterá a prerrogativa da edição de normas gerais, que suspenderão a eficácia de normas estaduais e locais, e até mesmo poderá lançar mão das intervenções previstas nos artigos 34 a 36, da Constituição Federal, para: a) manter a integridade nacional; b) pôr termo à grave comprometimento da ordem pública; c) promover a execução de lei federal e/ou, d) assegurar a observância de princípios constitucionais.
Mas o cenário demonstra-se positivo no que se refere à tomada de decisões republicanas pelos três poderes da União Federal, no âmbito do Pacto Federativo, senão note-se os seguintes atos: i) da aprovação da lei 13.979/20 e da edição do Decreto Legislativo 6, pelo Congresso Nacional; ii) da edição dos decretos 10.282, 10.288 e da MP 926/20 pela presidência da República; além, iii) das decisões nas ADIns 6.341, 6.343 e 6.357/DF, pelo Supremo Tribunal Federal.
Por fim, note-se que todas as decisões foram tomadas com alto grau de discricionariedade, mediante a realização de verdadeiros juízos de conveniência política para a sua edição e que, em um contexto republicano, mantiveram-se adstritas ao plexo da competência da cada Poder, transmutando-se em exemplo de ação institucional cooperativa para o atingimento do elevado fim constitucional a que se dirigem.
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1 Definido pelo artigo 16-C, da Lei Federal n. 9.504/97.
2 Seguiu-se sob o argumento de que "o Brasil encontra-se inserido em um cenário de calamidade", definido como "situação atípica que requereria, por conseguinte, medidas urgentes". Entenda-se a situação atípica como estado excepcional.
3 AGAMBEN, Giorgio; tradução de Iraci D. Poleti. O Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004 (Estado de Sítio); AGAMBEN, Giorgio; tradução de Henrique Burigo. Homo Sacer, O Poder Soberano e a Vida Nua. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004; SCHMITT, Carl. Politische Theologie, 1922, p.34; e Voto-Vista, Min. Eros Grau, Ag. Reg. Rcl. n. 3.034-2/PB.
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*Gustavo Swain Kfouri é advogado, Mestre em Direito Constitucional pela UNIBRASIL, Doutor em Direito do Estado pela Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC, Pós-Doutorando pela UNICURITIBA, Professor Visitante da Universidade Nacional Autônoma do México - UNAM, e membro fundador da ABDCONST - Academia Brasileira de Direito Constitucional.