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A política de desjudicialização no Município de São Paulo (lei 17.324/20): um importante avanço

A lei municipal em questão poderá servir como relevante ferramenta de racionalização da prestação jurisdicional, desafogando a advocacia pública do Município de São Paulo e garantindo o tratamento adequado das controvérsias entre entes da Administração Pública ou entre esses e os particulares.

sexta-feira, 3 de abril de 2020

Atualizado às 10:13

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Enquanto as atenções do país permanecem voltadas ao enfrentamento da pandemia do novo coronavírus, o Município de São Paulo editou uma nova lei que traz importantes avanços quanto à resolução extrajudicial de controvérsias, visando garantir que os conflitos que envolvem o Poder Público Municipal sejam dirimidos de maneira mais adequada e eficiente. Trata-se da lei municipal 17.324/20, que "institui a Política de Desjudicialização no âmbito da Administração Pública Municipal Direta e Indireta".

Em seu art. 1º, a lei declara como seus objetivos: (i) "reduzir a litigiosidade"; (ii) "estimular a solução adequada de controvérsias"; (iii) "promover, sempre que possível, a solução consensual dos conflitos"; e (iv) "aprimorar o gerenciamento do volume de demandas administrativas e judiciais".

Firme nesses propósitos, há disposições que abarcam variados métodos de resolução de conflitos e seguem a diretriz geral estabelecida pelo art. 3º do CPC/15, segundo o qual "a conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial".

Apesar de já existirem atos normativos pretéritos que regulam, de forma geral, a adoção de tais métodos pela Administração Pública (como as leis Federais 9.307/96 e 13.140/15, que tratam, respectivamente, da arbitragem e da mediação), o diploma municipal vem em boa hora. Garante, de fato, a adesão do Poder Público Municipal ao modelo denominado "multiportas",1 pelo qual se propõe colocar à disposição da sociedade diversos meios para dirimir os seus conflitos, cada um deles com características mais apropriadas a cada tipo de disputa.

Prestigia-se, portanto, a adoção dos métodos adequados de resolução de litígios,2 que englobam todas as modalidades de solução de controvérsias não vinculadas de forma direta ao julgamento heterocompositivo3 pelo Poder Judiciário.

Realmente, a lei bem se insere na realidade de larga quantidade de demandas judiciais concentrada pelos Procuradores do Município e busca, nesse contexto, manter no Judiciário apenas aqueles conflitos que tratam de direitos indisponíveis que não admitem autocomposição, ou cuja resolução se dê de maneira preferencial pelo processo judicial (e não por outros métodos que pudessem ser menos custosos, mais céleres e mais efetivos).4

Nessa linha, deve-se registrar que a escolha do método apropriado deve passar - e não apenas no caso da Administração Pública - por inúmeros fatores relacionados ao caso concreto,5 como: (i) a capacidade das partes de suportarem despesas maiores ou menores; (ii) a necessidade de um procedimento mais célere; (iii) a confidencialidade ou, ao contrário, a publicidade da via eleita; (iv) a tentativa de manutenção de uma relação contratual prévia; (v) a flexibilidade do procedimento; (vi) a efetividade da solução encontrada;6 (vii) a disponibilidade do direito envolvido; (viii) a exigência de uma análise potencialmente mais técnica da matéria; e (ix) a preferência pelo julgamento de acordo com uma lei específica ou, até mesmo, pela equidade.

Exatamente por isso, de acordo com a nova lei, a coordenação da política de desjudicialização ficará a cargo da Procuradoria Geral do Município, que será responsável por ações como: (i) "avaliar a admissibilidade de pedidos de resolução de conflitos, por meio de composição, no caso de controvérsia entre particular e a Administração Pública Municipal Direta e Indireta"; (ii) "promover, no âmbito de sua competência e quando couber, a celebração de termo de ajustamento de conduta nos casos submetidos a meios autocompositivos"; (iii) "fomentar a solução adequada de conflitos, no âmbito de seus órgãos de execução; (iv) disseminar a prática da negociação"; (v) "identificar e fomentar práticas que auxiliem na prevenção da litigiosidade"; e (vi) "identificar matérias elegíveis à solução consensual de controvérsias" (art. 2º).

Ademais, a lei 17.324/20, em seu capítulo II, elenca como "instrumentos para a solução adequada de controvérsias": os acordos (seção I); a mediação e a arbitragem (seção II); e a transação tributária (seção III), que poderá ser feita por proposta individual ou por adesão (seção IV).

Quanto aos acordos, previu-se, em primeiro lugar, que a solução consensual dependerá de uma análise prévia de sua vantajosidade e viabilidade jurídica em processo administrativo, devendo-se observar os seguintes critérios: (i) "o conflito deve versar sobre direitos disponíveis ou sobre direitos indisponíveis que admitam transação"; (ii) "antiguidade do débito"; (iii) "garantia da isonomia para qualquer interessado em situação similar que pretenda solucionar o conflito consensualmente"; (iv) "edição de ato regulamentar das condições e parâmetros objetivos para celebração de acordos a respeito de determinada controvérsia quando for o caso"; (v) "capacidade contributiva"; e (vi) "qualidade da garantia" (art. 3º).

Acertou o legislador ao estabelecer diretrizes para a celebração de transações, uma vez que, sem parâmetros objetivos, há o risco de violação da isonomia no trato com os particulares, favorecendo-se a uns ou a outros. Ademais, diante da insegurança jurídica que muitas vezes permeia a função desempenhada por servidores públicos, a eleição de standards institucionais serve de fundamental estímulo para que as soluções consensuais sejam adotadas em maior escala, evitando-se o receio de futura responsabilidade pessoal de cada servidor.

De todo modo, muito embora os acordos de que trata a lei possam versar tanto sobre dívidas tributárias, como não tributárias, que devem ser quitadas em parcelas mensais e sucessivas, foi estipulada uma relevante restrição de valor: as composições apenas podem abarcar débitos limitados a R$ 510.000,00 (quinhentos e dez mil reais). No ponto, decidiu-se que quantias superiores a esse patamar não admitirão negociação, em função, provavelmente, do maior impacto para as finanças públicas.

De resto, como forma de evitar distorções em relação a vantagens já conferidas ao particular, o legislador declarou expressamente que a nova lei não se aplica aos acordos firmados em Programas de Parcelamento Incentivado anteriores à sua publicação, regidos por normativa própria.

A seguir, estabelece-se também que a transação tributária no âmbito do Município de São Paulo poderá se dar por meio das modalidades: (i) "proposta individual ou por adesão na cobrança da dívida ativa"; (ii) "adesão nos demais casos de contencioso judicial ou administrativo tributário"; e (iii) "adesão no contencioso administrativo tributário de baixo valor". A lei também prevê requisitos que devem ser cumpridos para que a transação seja possível, bem como fatores que podem levar à sua rescisão.

Tem-se, nesse aspecto, salutar regulamentação do art. 171 do Código Tributário Nacional,7 que já previa, em caráter geral, a viabilidade da transação em matéria tributária, mas exigia concessões mútuas e, em especial, prévia edição de normas regulamentares. A lei preenche, assim, importante lacuna no ordenamento em relação à Municipalidade de São Paulo.

De outro giro, seguindo o norte da desjudicialização, a lei 17.324/2020 também prevê as possibilidades de a Administração Pública Municipal programar mutirões de conciliação, para reduzir o acúmulo de processos administrativos e judiciais, e de "ser autorizado o não ajuizamento de ações, o reconhecimento da procedência do pedido, a não interposição de recursos, o requerimento de extinção das ações em curso e a desistência dos recursos judiciais pendentes de julgamento".

Já quanto à mediação (método autocompositivo) e à arbitragem (método heterocompositivo), o diploma municipal assinala que a Administração Pública Municipal Direta e Indireta "poderá prever cláusula de mediação nos contratos administrativos, convênios, parcerias, contratos de gestão e instrumentos congêneres"; e "poderá utilizar-se da arbitragem para dirimir conflitos relativos a direitos patrimoniais disponíveis, nos termos da lei Federal 9.307, de 23 de setembro de 1996".

Vale notar que, apesar de já haver, no ordenamento jurídico pátrio, previsão de que a Administração Pública poderia se valer da mediação e da arbitragem para dirimir conflitos relativos a direitos patrimoniais disponíveis (v., respectivamente, art. 32 e ss. da lei Federal 13.140/15 e art. 1º, § 1º, da lei Federal 9.307/96), a nova previsão reforça, no âmbito do Município de São Paulo, a importância dos referidos métodos.

Por fim, ressalta-se que, buscando estabelecer contornos ainda mais concretos para a implementação da política de desjudicialização, a lei ainda autoriza o Poder Executivo a criar, por decreto, "a Câmara de Prevenção e Resolução Administrativa de Conflitos no Município de São Paulo, vinculada à Procuradoria Geral do Município", em pleno alinhamento com o que já dispunha, em âmbito nacional, o art. 32 da lei Federal 13.140/15.

Diante de todo esse apanhado geral, naturalmente resumido para o espaço deste breve artigo, o que se pode observar é que a lei municipal em questão poderá servir como relevante ferramenta de racionalização da prestação jurisdicional, desafogando a advocacia pública do Município de São Paulo e garantindo o tratamento adequado das controvérsias entre entes da Administração Pública ou entre esses e os particulares. É medida essencial para alçar o princípio constitucional do acesso à justiça a um nível mais elevado, redimensionando-o à luz do princípio da eficiência,8 que constitui, com efeito, um dos princípios que regem a administração pública, de acordo com o art. 37, caput, da CRFB.9

Espera-se, com isso, que a lei venha a consolidar esse importante movimento no âmbito da Administração Pública Municipal de São Paulo, de modo a se concretizar como um verdadeiro exemplo a ser seguido por outros entes federativos.  

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1 A expressão ganhou notoriedade após discurso de Frank Sander na Pound Conference, realizada ainda em 1976, cf. MOFFITT, Michael L. Before the Big Bang: the making of an ADR pioneer. Harvard Negotiation Journal, v. 22, issue 4, out./2006, p. 437-438. Em interessante relato, Frank Sander menciona, contudo, que o termo, em si, não havia sido cunhado originalmente por ele: "Após aquela palestra na Pound Conference, no verão de 1976, uma das revistas da ABA [American Bar Association - Ordem dos Advogados dos Estados Unidos] publicou um artigo sobre essa conversa. Na capa da revista, uma grande quantidade de portas, representando o que chamaram de Tribunal Multiportas. Eu tinha dado um nome bem mais acadêmico: 'centro abrangente de justiça', mas muitas vezes o rótulo que se dá a uma ideia depende mais da divulgação e da popularidade dessa ideia. Assim, devo à ABA esse nome de fácil assimilação: Tribunal Multiportas" (CRESPO, Mariana Hernandez. Diálogo entre os professores Frank Sander e Mariana Hernandez Crespo: explorando a evolução do Tribunal Multiportas. In: ALMEIDA, Rafael Alves; ALMEIDA, Tania; CRESPO, Mariana Hernandez (Org.). Tribunal Multiportas: investindo no capital social para maximizar o sistema de solução de conflitos no Brasil. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2012, p. 32).

2 Apesar de bastante difundida, "a expressão métodos alternativos tem cedido espaço para o termo métodos adequados (ou 'adequate/appropriate dispute resolution') a partir da constatação de que os conflitos são diferentes entre si, tanto em complexidade, quanto em peculiaridade - e, assim, requerem ferramentas distintas para serem solucionados. Ademais, os ADRs não são simples alternativas ao Judiciário, e tampouco esta deveria ser a única e ou a principal via de solução dos conflitos, como acontece em nosso país e na maior parte dos países de tradição civilista. Os ADRs são mecanismos baseados na especialização e adequação de cada método a certo tipo de disputa" (COELHO, Eleonora. Desenvolvimento da cultura dos métodos adequados de solução de conflitos: uma urgência para o Brasil. In: ROCHA, Caio Cesar Vieira; SALOMÃO, Luís Felipe. Arbitragem e mediação: a reforma da legislação brasileira. São Paulo: Atlas, 2017, p. 98).

3 Os métodos heterocompositivos de solução de controvérsias são aqueles nos quais se delega a um terceiro a resolução da lide de forma impositiva e vinculante ou cuja resolução deva se dar preferencialmente pelo processo judicial (GUILHERME, Luis Fernando do Vale de Almeida. Arbitragem. São Paulo: Quartier Latin, 2003. p. 35).

4 Mariana Hernandez Crespo defende que "[o] Tribunal Multiportas é eficiente porque permite que as partes cheguem a uma solução relativamente barata e rápida. Essa solução é efetiva porque direciona as partes para o fórum mais apropriado para a resolução de seus conflitos, ampliando, de maneira geral, o nível de satisfação com o resultado e aumentando a probabilidade de implementação. E é funcional porque tem o potencial para liberar o Judiciário das ações que são mais apropriadas aos métodos alternativos de resolução de conflitos, mantendo no Judiciário apenas as ações que exigem processo público" (CRESPO, Mariana Hernandez. Perspectiva sistêmica dos métodos alternativos de resolução de conflitos na América Latina: aprimorando a sombra da lei através da participação do cidadão. In: ALMEIDA, Rafael Alves; ALMEIDA, Tania; CRESPO, Mariana Hernandez (Org.). Tribunal Multiportas: investindo no capital social para maximizar o sistema de solução de conflitos no Brasil. Op. cit., p. 81).

5 "[N]ão sem alguns cuidados, é possível colocar sob exame a adequação de um meio de solução de litígios em relação a uma situação concretamente considerada. Esse juízo de adequação, como apontado, por falta de critérios de comparação definidos e assentes, não é exclusivamente técnico, implicando, em grande parte, uma escolha, fundada em valores reputados importantes para o contexto no qual a controvérsia está inserida" (SALLES, Carlos Alberto de. Mecanismos alternativos de solução de controvérsias e acesso à justiça: a inafastabilidade da tutela jurisdicional recolocada. In: FUX, Luiz; NERY JR., Nelson; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (Coord.). Processo e Constituição: estudos em homenagem ao professor José Carlos Barbosa Moreira. Op. cit., p. 785).

6 Os primeiros seis aspectos são elencados por André Gomma de Azevedo, que ainda menciona os custos emocionais na composição da disputa, o adimplemento espontâneo do resultado e a recorribilidade (AZEVEDO, André Gomma de. Desafios de acesso à justiça ante o fortalecimento da autocomposição como política pública nacional. In: RICHA, Morgana de Almeida; PELUSO, Antonio Cezar (Coord.). Conciliação e mediação: estruturação da política judiciária nacional. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 15).

7 Art. 171. A lei pode facultar, nas condições que estabeleça, aos sujeitos ativo e passivo da obrigação tributária celebrar transação que, mediante concessões mútuas, importe em determinação de litígio e consequente extinção do crédito tributário.

8 PINHO, Humberto Dalla Bernardina de; STACANDI, Maria M. Martins Silva. A ressignificação do princípio do acesso à justiça à luz do art. 3.º do CPC/2015. Revista de Processo, v. 254, abr. 2016, São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 4.

9 Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (...)

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*Sérgio Ferrari é advogado e sócio fundador do escritório de advocacia Terra Tavares Ferrari Elias Rosa Advogados. Professor Adjunto de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da UERJ. Doutor e mestre em Direito Público pela UERJ.

*Yuri Maciel Araujo é advogado e sócio do escritório de advocacia Terra Tavares Ferrari Elias Rosa Advogados. Mestre em Direito Processual Civil pela UERJ.

*Bernardo Salgado é advogado e sócio do escritório de advocacia Terra Tavares Ferrari Elias Rosa Advogados. Mestrando em Direito Civil pela UERJ.

*Antonio Vignoli é advogado e sócio do escritório de advocacia Terra Tavares Ferrari Elias Rosa Advogados.

 

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