A Covid-19 e a previdência complementar
Ninguém esperava por uma pandemia em 2020. Aliás, para dizer a verdade, mesmo que simplória, as pandemias, como a do Covid-19, pareciam pertencer muito mais ao mundo da ficção cinematográfica do que ao mundo real. Não havia ninguém suficientemente precavido para uma pandemia, que como indica a origem grega da palavra alcança "todo provo" (pan + demos)
sexta-feira, 3 de abril de 2020
Atualizado às 10:36
Nos últimos anos, o setor de previdência privada vem enfrentando alguns desafios diante do cenário de estagnação econômica, da escassez de investimentos com resultados estáveis e da falta dos portfólios diversificados ofertados pelo mercado financeiro. No Brasil, especialmente os fundos de pensão, ainda tentam ultrapassar o abalo que tiveram na credibilidade de sua gestão, especialmente depois das operações de investigação deflagadas pela Polícia Federal e das denúncias no âmbito do Ministério Público Federal, todas envolvendo a realização de investimentos possivelmente ruinosos, que geraram déficits com valores astronômicos nos planos de benefícios, que hoje estão sendo equacionados mediante elevadas contribuições extraordinárias dos participantes e dos assistidos, além da parcela suportadas pelas empresas patrocinadoras.
Ao mesmo tempo que enfrenta tais desafios, o setor de previdência complementar ganhou destaque na reforma da previdência social brasileira. A partir de emenda constitucional 103, de 2018, a previdência privada passa a ser obrigatória para os servidores públicos dos entes federativos, o que fará crescer expressivamente o número de clientes que serão atendidos pelas entidades fechadas e abertas que passarão a concorrer entre si nesse nicho, que antes era domínio exclusivo das entidades fechadas.
Todos estes fatores já são suficientes para uma revolução no setor. Mas, como lembra Nassin Taleb, em a "Lógica do Cisne Negro", a vida é muito estranha e nos faz encontrar o extraordinário, fatos sobre os quais o ser humano não se concentra, porque simplesmente fogem do comum. A pandemia de Covid-19 é evento extraordinário e entrou na vida de todos nós de supetão, sem nenhuma notificação prévia ou aviso. Em um primeiro momento esse evento extraordinário gera imediatamente efeitos negativos para a previdência complementar, mas também poderá gerar efeitos positivos, fundado na redescoberta do que, de fato, é previdência.
Ninguém esperava por uma pandemia em 2020. Aliás, para dizer a verdade, mesmo que simplória, as pandemias, como a da Covid-19, pareciam pertencer muito mais ao mundo da ficção cinematográfica do que ao mundo real. Não havia ninguém suficientemente precavido para uma pandemia, que como indica a origem grega da palavra alcança "todo provo" (pan + demos).
Os efeitos negativos do grave surto de Covid-19 nos planos de previdência complementar são facilmente reconhecíveis, pois estão inexoravelmente ligados aos deletérios efeitos econômicos. O primeiro deles é o abalo nos mercados financeiros, cujos resultados poderão permanecer instáveis por um longo período, basta ver as seguidas quedas vertiginosas das bolsas de valores em todo o mundo.
O segundo efeito decorre da situação que os participantes dos planos de benefícios estão enfrentando, o ativos que podem se ver diante de uma efetivo decréscimo de renda, ou até mesmo da perda de seus empregos os assistidos, já aposentados, que pela idade integram o primeiro grupo de pessoas mais vulneráveis a Covid-19.
Tanto os participantes ativos quanto os assistidos poderão se ver obrigados a parar de contribuir para os planos de benefícios, ou compelidos, diante da falta de qualquer outra alternativa financeira, a resgatar os saldos de suas contas individuais. Da mesma forma, os planos de benefícios patrocinados também poderão se deparar com situação de suspensão temporária das contribuições das empresas, ou até mesmo com pedidos de retirada de patrocínio.
Aliás, as entidades de previdência privada já deveriam estar pensando em alternativas para essas situações, inclusive oferendo meios para que as pessoas permaneçam nos planos de benefícios, como por exemplo a suspensão temporária de contribuições, o oferecimento de empréstimo pessoal com juros mais baixos ou ainda resgates parciais, quando possíveis dentro da sistemática do plano.
O resultado final desses efeitos negativos é a diminuição das reservas dos planos de benefícios e de sua rentabilidade, o que nos planos de contribuição definida poderá ter efeitos no valor dos próprios benefícios futuros. Não se deve esquecer, entretanto, que na previdência complementar, pela natureza do contrato, os investimentos devem ser de longo prazo, fazendo com que as perdas possam ser recuperadas.
Em um cenário difícil, é de grande importância a confiança dos participantes (aqui incluídos dos assistidos) e, também, dos patrocinadores e dos instituidores na gestão dos planos de benefícios. Os dirigentes das entidades de previdência privada que já carregam consigo a responsabilidade de administrar o dinheiro de terceiros, em momentos de crise devem estar aptos a tomar decisões adequadas e ágeis, sempre visando o pagamento dos benefícios contratados.
Se é verdade, porém, que toda a situação de crise, quando superada, gera crescimento (ainda que infelizmente pela dor), também desta pandemia poderá nascer uma nova preocupação com a proteção social, cujo principal pilar é a seguridade social, compreendendo a previdência social pública e privada.
Na faz muito tempo, participei como palestrante de um seminário sobre o futuro da previdência privada, no qual tive a oportunidade de debater com um seleto grupo de estudiosos do setor, os motivos pelos quais deixou este importante meio de proteção social de ser um efetivo instrumento de política de recursos humanos nas empresas. Segundo pesquisas, as pessoas se preocupam mais em ter o estacionamento pago pela empresa empregadora do que em participar de um plano de previdência complementar.
Desse debate surgiram muitas justificativas, mas todas elas acabam por ter um único fundamento, que é a descrença na previdência. O ser humano quando jovem acha que não será velho, que sempre, de alguma forma ou de outra, conseguirá se sustentar, situação que se agrava com o desmantelamento das relações formais de emprego e com a Revolução Industrial 3.0.
A pandemia da Covid-19, com todo o seu poder de destruição, tem grande chance de fazer com que todos os povos voltem a pensar seriamente em proteção social e em previdência privada como um valioso instrumento dessa proteção. Afinal a seguridade social como a conhecemos hoje é fruto da crise econômica e social que surgiu de maneira voraz da Segunda Guerra Mundial. O setor deve estar preparado para enfrentar a crise, mas também para colher os frutos que poderão dela advir.
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*Ana Paula Oriola de Raeffray é doutora e mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP. Advogada no escritório Raeffray Brugioni Sociedade de Advogados.