A norma tributária nos tempos do "cólera": (Des)Caminhos ao enfretamento do coronavírus (Covid-19)
Essa reflexão limita-se ao campo do direito tributário, especificamente, o papel da norma tributária nos tempos da Covid-19, concomitantemente, os instrumentos jurídico-tributários à disposição da gestão pública
sexta-feira, 3 de abril de 2020
Atualizado às 10:31
O título da presente reflexão foi intencionalmente engendrado - e larapiado - por meio do romance latino-americano do escritor e jornalista Gabriel García Marques, El amor en los tiempos del cólera1. Assim como principia seu livro, "era inevitável": não se beneficiar do seu título. Igualmente, a excepcional situação que vive a humanidade, "era inevitável" não se servir da alma de sua obra. Na vida, tal como a obra, tem-se a incansável busca de atribuir papéis determinados às pessoas. Falta humildade para entender que o ser humano - e seu meio - é complexo. Falta criatividade para não fazer da vida e das escolhas instrumentos de nossas fraquezas, angústias e medos.
Contudo, este artigo não tem por escopo abordar a obra do prêmio Nobel de Literatura2 - ainda que digna. Assim como, não é objetivo deste: (I) falar sobre a capacidade de um animal silvestre contaminado por um vírus paralisar o mundo; (II) a propagação da Covid-19 e as teorias de prevenção; (III) a disputa sobre a melhor estratégia para enfrentar a pandemia e preservar, ao mesmo tempo, a economia de uma crise sem precedentes; (IV) a polarização intencionalmente plantada e o exercício do poder político. Mesmo que imprescindíveis de análise, cada objeto tem seu observador e cada observador tem seu campo de experimentação e diálogo.
Essa reflexão limita-se ao campo do direito tributário, especificamente, o papel da norma tributária nos tempos da Covid-19, concomitantemente, os instrumentos jurídico-tributários à disposição da gestão pública. Qual seria o papel do direito tributário no quadro pandêmico? Qual o papel da norma tributária no enfretamento do colapso sanitário e econômico que se iniciou?
O Estado contemporâneo detém algumas fontes de financiamento para a consecução de seus objetivos. As principais fontes de financiamento são: (a) emissão de moedas; (b) emissão de títulos do governo; (c) atividade econômica desenvolvida pelo próprio Estado; e (d) arrecadação tributária. Dentro dessas principais fontes - e outras de importância ímpar -, a arrecadação tributária se apresenta como fonte predominante e estratégica.
A arrecadação tributária - receitas provenientes de recursos obtidos por meio da cobrança de tributos movida em face das pessoas física e jurídica - é operada e instrumentalizada por meio de comandos normativos (norma tributária) que estabelecem os contornos jurídico-econômicos necessários para a sua ocorrência. É por meio da norma tributária que o Estado contemporâneo exerce sua função arrecadadora e, por via de consequência, se viabiliza para o exercício de outras funções - legiferante, jurisdicional, administrativa, ordenadora, regulatória, fomento, prestacional e controle.
Além dessa função arrecadadora que a norma tributária desempenha, há outra função que se manifesta e tem relevante importância dentro da ordem socioeconômica contemporânea: a função indutora3. Numa perspectiva genérica, entende-se que a função indutora da norma tributária é o estímulo ou desestímulo a realização de determinado comportamento, assegurando a possibilidade de adotar comportamento diverso e não lícito4.
Por meio da função fiscal-tributária, o Estado acaba ainda produzindo efeitos esperados e não esperados na economia5-6. A saber: (a) distributivos: redistribuição da renda por meio da tributação com o objetivo de reduzir as desigualdades sociais; (b) alocativos: reconhecimento de que a tributação não é neutra e tem reflexos na maneira como os recursos se alocam e se dividem, induzindo para tanto, o comportamento dos agentes econômicos; e (c) estabilizadores: a política fiscal como instrumento de alcançar os objetivos da macroeconomia e da microeconomia (crescimento econômico, nível de empregos, nível de preços, balança de pagamentos, etc).
Como bem observou o professor Carlos Otávio Ferreira de Almeida, "não bastaria, pois, avaliar apenas a intenção do legislador, mas a função da norma tributária, que sempre seria arrecadadora, facultando-se-lhe, ainda, desempenhar função distributiva (justiça fiscal), a indutora (alocativa) ou simplificadora (praticabilidade)7.
Utilizando-se da semiótica, o professor Tércio Sampaio Ferraz Júnior leciona que o estudo da norma pode se dar por critérios sintáticos (relevância, subordinação e estrutura), semânticos (destinatários, matéria, espaço e tempo) e pragmáticos (força de incidência, finalidade e funtor)8. Nessa distinção analítica, centraliza-se nesse artigo os critérios pragmáticos da norma tributária - sem perder de vista os critérios sintático-semânticos - para interagir com o seu destinatário.
Hoje, a comunidade global está diante de um problema comum. A pandemia global - causada pela Covid-19 - causará consequências gravíssimas à sociedade e, especificamente, à economia. Não há como negar o seu impacto. É impossível desviar de seus reflexos.
É indiscutível que a prioridade neste momento é salvar vidas e prevenir a propagação da enfermidade. Não há como refutar a tese de que a saúde público-privada, neste momento, deva receber a concentração financeira e jurídica. Nada obstante, a norma tributária apresenta-se como uma eficaz arma subsidiária ao enfrentamento da pandemia e, por decorrência, da recessão econômica. Por meio da norma tributária, os impactos econômicos poderão ser amenizados e quem sabe alguns evitados.
O Estado, por intermédio de seus agentes, deverá se desprender das amarras dos prontuários pré-estabelecidos de política tributária. É preciso reinventar o Estado - com criatividade, colaboração e flexibilidade9 - com olhos para o presente e com a consciência do papel da norma tributária.
O primeiro caminho oferecido pela norma tributária é a possibilidade de uma moratória. A moratória tributária (artigos 152 a 155-A do Código Tributário Nacional) significa a dilação/prorrogação do prazo para pagamento do tributo. À luz dos dispositivos elencados, vislumbra-se que a moratória poderá ser concedida em caráter geral e com ampla operacionalidade. Abaixo, redação dos dispositivos:
Art. 152. A moratória somente pode ser concedida:
I - em caráter geral:
a) pela pessoa jurídica de direito público competente para instituir o tributo a que se refira;
b) pela União, quanto a tributos de competência dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios, quando simultaneamente concedida quanto aos tributos de competência federal e às obrigações de direito privado;
(...)
Art. 153. A lei que conceda moratória em caráter geral ou autorize sua concessão em caráter individual especificará, sem prejuízo de outros requisitos:
I - o prazo de duração do favor;
II - as condições da concessão do favor em caráter individual;
III - sendo caso:
a) os tributos a que se aplica;
b) o número de prestações e seus vencimentos, dentro do prazo a que se refere o inciso I, podendo atribuir a fixação de uns e de outros à autoridade administrativa, para cada caso de concessão em caráter individual;
c) as garantias que devem ser fornecidas pelo beneficiado no caso de concessão em caráter individual.
A moratória é um incontestável instrumento de política tributária para situações excepcionais.
O segundo caminho oferecido pela norma tributária é a possibilidade de suspender os atos procedimentais e processuais, visando à proteção jurídica do contribuinte (pessoa física ou jurídica) e a continuidade de suas interações socioeconômicas em tempos de crise. A suspensão/prorrogação deve e pode abrigar: cobranças, prazos processuais, julgamentos, lançamentos de ofício, exigência de obrigações acessórias e perdimentos.
Esses dois caminhos apresentados, independe de seu ato normativo para operacionalização, ajudariam substancialmente na preservação da produção de muitos bens e serviços essenciais à continuidade da atividade econômica nacional e, ainda, à sobrevivência e retomada gradativa de outras atividades.
O Governo Federal, principal ator agente nesse contexto, anunciou timidamente as seguintes medidas nos últimos dias: (I) prorrogação do prazo para pagamento dos tributos federais no âmbito do Simples Nacional; (II) zeragem da alíquota do Imposto de Importação e do IPI para produtos médicos, hospitalares e outros necessários ao combate à pandemia causada pelo Covid-19; (III) simplificação e agilidade do despacho aduaneiro de mercadorias importadas destinadas ao combate da Covid-19; e (IV) mudanças no atendimento perante a Receita Federal; (V) suspensão dos atos processuais no âmbito da Receita Federal e do CARF; (VI) ampliação de prazo de validade da certidão de débitos (negativa ou positiva com efeito de negativa) por 90 (noventa) dias; (VII) suspensão de procedimentos administrativos de cobrança e exclusão de parcelamento; (VIII) possibilidade de transação extraordinária; e (IX) redução de contribuições direcionadas ao Sistema "S".10
No âmbito estadual, os Governos Estaduais vêm tomando decisões individualizadas e desarmônicas, desde a suspensão dos atos procedimentais/processuais até a prorrogação do cumprimento das obrigações tributárias (principais e acessórias).
Além desse mundo de incertezas e inseguranças (financeiras e jurídicas), parcela do Poder Judiciário brasileiro vem reconhecendo o direito do contribuinte à suspensão/prorrogação do cumprimento das obrigações tributárias. Os fundamentos (ativistas e aventureiros) à desobediência tributária e à prática da moratória judicial à brasileira são ricamente diversificados: (I) estado de calamidade pública (caso fortuito ou força maior) e a inviabilização da atividade econômica empresarial; (II) função socioeconômica da empresa; (III) a suspensão/prorrogação do cumprimento das obrigações tributárias visando à satisfação das obrigações trabalhistas e comerciais; (IV) proporcionalidade e razoabilidade; e (V) portaria 12 de 20 de janeiro de 2012, do Ministério da Fazenda - atual Ministério da Economia.11
Até o presente momento, infelizmente, não há formalizações claras sobre a política tributária brasileira para o enfrentamento da covid-19. Essas questões poderiam lá atrás, e não diante da crise pandêmica, serem debatidas, planejadas e ofertadas. Resta evidente a ausência de uma gestão tempestiva, técnica e republicana.
Concomitantemente, para inflamar, a população brasileira foi intencionalmente levada à separação em face de um falso dilema: conter a covid-19 ou preservar o trabalho e a renda. Egoísmo e oportunismo lutam diariamente contra o bem comum do povo brasileiro.
A norma tributária brasileira não precisa ser heroica como Juvenal Urbino (personagem médico que acabou com a epidemia na obra de Gabriel Garcia Márquez), tampouco pode esperar tanto tempo como Florentino Ariza (personagem que esperou cinquenta anos para reencontrar sua amada na mesma obra) esperou. A norma tributária brasileira precisa ser Gabriel Garcia Márquez - realista, criativa e solidária.
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1 MÁRQUEZ, Gabriel Garcia. O amor nos tempos do cólera. Editora Record.
2 Gabriel García Márquez foi vencedor do prêmio Nobel de Literatura em 1982
3 Sobre normas tributárias indutoras: SHOUERI, Luís Eduardo. Normas tributárias indutoras e intervenção econômica. Rio de Janeiro: Forense, 2005.
4 ELALI, André. Tributação e Regulação Econômica. Um exame da tributação como instrumento de regulação econômica na busca da redução das desigualdades regionais. São Paulo: MP Editora, 2007, pág. 103. GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. São Paulo: Malheiros, 9ª ed., 2004, pág. 85.
5 Ver: MUSGRAVE, Richard Abel; MUSGRAVE, Peggy B. Finanças públicas: teoria e prática. Rio de Janeiro: Campus; São Paulo, Edusp, 1980, p.11.
6 Ver: STIGLITZ, Joseph E. Economics of the public sector. 3. ed. New York; London: WW. Norton, 1999, p. 94
7 ALMEIDA, Carlos Otávio Ferreira de. Tributação Internacional da Renda: A competividade Brasileira à Luz das Ordens Tributárias e Econômica - Série Doutrina Tributária v. XII. São Paulo: Quartier Latin, 2014, p. 171.
8 Conforme Tércio Sampaio Ferraz Júnior em Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação, 2' edição, São Paulo, AIIM, 1994, pp. 124 a 133
9 MACIEL, Everardo. A política tributária deve amparar-se no conceito de moratória ampla. Acesso em 24 de março de 2020.
10 Resolução CGSN 152/20; resolução 17/20; decreto 10.285/20; portaria 8.112/20 do CARF; portaria 543/20 da RFB; portaria 7.820/20 da PGFN; medida provisória 932/20
11 Processos: Justiça Estadual - TJSP: 1016209-67.2020.8.26.0053 - TJSP; Justiça Federal - TRF 3º Região: 5000689-48.2020.4.03.6107 5001503-46.2020.4.03.6144 5004087-09.2020.4.03.6105 5002358-30.2020.4.03.6110 5002343-85.2020.4.03.6102
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*Raphael Pires do Amaral é especialista em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas e advogado em Advocacia Fávero e Vaughn.