Responsabilidade dos sócios e a desconsideração da personalidade jurídica
legislativa, a adoção da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, há muito já introduzida em nosso ordenamento por meio da aplicação jurisprudencial e da elaboração doutrinária.
quarta-feira, 10 de dezembro de 2003
Atualizado em 9 de dezembro de 2003 14:55
Responsabilidade dos sócios e a desconsideração da personalidade jurídica
O novo Código Civil veio consolidar, definitivamente, em nosso País, na seara legislativa, a adoção da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, há muito já introduzida em nosso ordenamento por meio da aplicação jurisprudencial e da elaboração doutrinária.
Tal teoria tem, em uma das suas vertentes, estreita relação com a imputação de responsabilidade aos sócios e administradores sobre as obrigações assumidas pelas empresas.
Por isso, antes de adentrarmos na análise da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, nos termos em que foi inserida no diploma civil, importa verificarmos de que forma se estrutura a regra geral acerca da responsabilidade dos sócios e administradores em relação às obrigações sociais. Só a partir daí estaremos aptos a identificar as hipóteses específicas em que se admitem a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica - afastando-se, desde já, a errônea impressão de que toda e qualquer responsabilidade atribuída aos sócios ou administradores de uma sociedade pelas obrigações sociais significa a aplicação da teoria aqui sob análise.
Assim, temos que com o surgimento da pessoa jurídica, esta adquire existência, patrimônio e personalidade própria, podendo exercer direitos e obrigações no plano da realidade concreta. Ganha, por assim dizer, vida própria, com vontade própria, que não se confunde com a dos seus sócios.
Há, em algumas formas societárias que agasalham a pessoa jurídica, inclusive, uma limitação ao patrimônio social da responsabilidade sobre os atos praticados pelas sociedades. Esta limitação da responsabilidade dos sócios nas eventuais perdas decorrentes dos insucessos da empresa ao montante investido se justifica como estímulo para a exploração da atividade econômica. Quer dizer, sabendo-se o montante até o qual se está disposto a despender em determinado empreendimento, um empreendedor estará muito mais determinado a investir em um negócio do que se pudesse perder todo o patrimônio pessoal caso o negócio não prosperasse. Neste sentido, se pode dizer que a limitação das perdas é fator essencial para a disciplina da atividade econômica capitalista.
Essa regra, da limitação da responsabilidade, nas formas societárias que a acatam, não é, e nem poderia ser, contudo, absoluta. Nosso ordenamento estabelece algumas situações de extensão da responsabilidade pelas obrigações da sociedade aos seus sócios e/ou administradores.
Dessa forma, a Lei das Sociedades Anônimas estatui, por exemplo, que os administradores de sociedades anônimas respondem, civilmente, "pelos prejuízos que causar, quando proceder: i) dentro de suas atribuições ou poderes, com culpa ou dolo; ii) com violação da lei ou do estatuto".
Neste mesmo sentido, o novo Código Civil, no capítulo dedicado às sociedades simples: "os administradores respondem solidariamente perante a sociedade e os terceiros prejudicados, por culpa no desempenho de suas funções".
Além dessas estipulações genéricas de responsabilidade de administradores, que podem ser sócios ou não da sociedade, existem previsões específicas, para determinados ramos do direito, de responsabilidade de sócios e administradores pelas obrigações sociais.
A legislação trabalhista, através da Consolidação das Leis do Trabalho, dispõe que "sempre que uma ou mais empresas, tendo, embora, cada uma delas, personalidade jurídica própria, estiverem sob a direção, controle ou administração de outra, constituindo grupo industrial, comercial ou de qualquer outra atividade econômica, serão, para os efeitos da relação de emprego, solidariamente responsáveis a empresa principal e cada uma das subordinadas".
Também a legislação fiscal, no Código Tributário Nacional, estabelece que "são pessoalmente responsáveis pelos créditos correspondentes a obrigações tributárias resultantes de atos praticados com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos: (...); iii) os diretores, gerentes ou representantes de pessoas jurídicas de direito privado".
São estas algumas das hipóteses em que a lei prevê expressamente a atribuição de responsabilidade a sócios e administradores sobre as obrigações sociais. Não prescindem, para serem adotadas, da aplicação da desconsideração da personalidade jurídica prevista no art. 50 do novo Código Civil - a qual, doravante, será analisada.
É este o texto mencionado constante do nosso Codex:
"Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica."
Observa-se, com facilidade, que o legislador quis estabelecer, excepcionalmente, e sob o prudente crivo do Judiciário, a responsabilidade de sócios e administradores, sob a égide da disregard doctrine, apenas quando se verificar o abuso da personalidade, isto é, o uso da pessoa jurídica com interesse diverso daquele para o qual o direito o previu, normalmente com a intenção de fraudar interesse legítimo de credores.
Nesse sentido, tratou o nosso legislador de prever as hipóteses em que se comprova o abuso da personalidade jurídica, quais sejam, quando houver desvio de finalidade ou confusão patrimonial.
No primeiro caso, há um verdadeiro desvio dos fins estabelecidos no ato constitutivo de uma sociedade, vale dizer, no contrato social ou no estatuto social, com a finalidade de servir como mecanismo para prática de atos ilícitos.
Já a confusão patrimonial se verifica quando, por inobservância das regras societárias, ou mesmo por qualquer decorrência objetiva, não fique clara, na prática, a separação entre o patrimônio social e o do sócio ou os dos sócios.
Por derradeiro, cabe mencionar ainda que a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica não envolve a anulação da personalidade jurídica em toda a sua extensão, mas apenas a declaração de sua ineficácia para determinado efeito em caso concreto.
Eram, então, essas as considerações, ainda que perfunctórias, que se pretendiam fazer sobre a desconsideração da personalidade jurídica, principalmente enquadrando-a e distinguindo-a das demais formas de responsabilização da pessoa dos sócios e administradores de pessoas jurídicas.
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* Advogado do escritório Rayes, Fagundes & Oliveira Ramos Advogados Associados
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