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A LGPD entre Scylla e Charybde

Fernando Santiago

Assim como Ulysses, que sonhava estar rapidamente nos braços de Penélope, a LGPD encontra-se condenada - por vários Poseidons - a errar por período incerto nos oceanos da política brasileira.

sexta-feira, 3 de abril de 2020

Atualizado às 10:03

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Em seu retorno vitorioso da Guerra de Tróia, Ulysses pensava em retornar rapidamente aos braços de Penélope, em Itaque. Mas a ira de Poseidon fez-lhe errar pelos oceanos durante 10 anos, enfrentando perigos cujas características deram origem ao adjetivo qualificativo "homérico", utilizado até os dias de hoje. Para atravessar o Estreito de Messina (que separa a atual Sicília da Calábria, na Itália) Ulysses deveria evitar, de um lado, Scylla, uma ninfa transformada em monstro marinho por Cirse, que habitava o rochedo situado em uma extremidade, e do outro lado, Charybde, condenada por Zeus a engolir três vezes ao dia quantidades imensas de água, incluindo barcos, marinheiros e peixes.

Qualquer semelhança entre a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), e Ulysses, o herói de Odisseia, primeiro clássico da literatura ocidental, é mera coincidência. Após um processo espetacular de aprovação por unanimidade na Câmara e no Senado, um feito "homérico" em nossa jovem República, a viagem da LGPD para sua entrada em vigor é marcada por aventuras inimagináveis por seus companheiros de campanha.

Inicialmente, a MP 869/2018, convertida na lei 13.853/19, postergou a sua entrada em vigor por 6 meses complementares. O texto original da lei previa a sua entrada em vigor em fevereiro de 2020 (sem contar as contribuições dos vetos presidenciais para a aventura). Em seguida, o texto unanimemente festejado foi percebido, por parte do empresariado, como um texto além do seu tempo. A intenção é boa, mas não para agora...há outras preocupações a gerir antes da entrada em vigor dessa lei...

Um movimento discreto surgiu defendendo a postergação (de novo) da entrada em vigor da LGPD por dois anos suplementares (PL 5.762/19 do deputado Carlos Bezerra - MDB/MT). Vários outros surgiram desde então, com focos distintos, mas fundados no mesmo alicerce, a saber: "a LGPD não pode entrar em vigor, tal como se encontra, em Agosto de 2020. Não estamos preparados." 

Dado à intensa atividade legislativa sobre o tema, ainda ontem defendi a ideia da suspensão, por 12 meses, da aplicação das penalidades decorrentes do descumprimento da LGPD, veiculada no PL 1164, de 2020, proposto em 30/03/2020 pelo senador Álvaro Dias (Podemos-PR). Contudo, algumas horas depois me deparei com o PL 1179, também de 30/03/2020, que criava o Regime Jurídico Emergencial e Transitório das Relações Jurídicas de Direito Privado (RJET), de autoria do meu saudoso ex-professor de Direito Administrativo na UFMG, senador Antônio Anastasia (PSD/MG), cuja velocidade e acurácia do seu poderoso cérebro sempre me impressionou. O PL em questão cria um verdadeiro regime jurídico de exceção durante a pandemia do coronavírus e, em seu bojo... propõe a prorrogação da entrada em vigor da LGPD por 12 meses suplementares (36 meses a partir da publicação da LGPD, segundo o art. 25 do PL sub examen).

Assim como Ulysses, que sonhava estar rapidamente nos braços de Penélope, a LGPD encontra-se condenada - por vários Poseidons - a errar por período incerto nos oceanos da política brasileira. Ao atravessar o estreito que a separa da sua entrada em vigor ela deve evitar, por um lado, o legítimo receio do empresariado brasileiro em relação às severas sanções que pode acarretar e, por outro, o reflexo do Congresso - caixa de ressonância da sociedade brasileira - de postergar tout court o seu legado em nome de uma crise - por certo relevante, mas passageira.

Nesse cenário, estimo que melhor vale prorrogar unicamente a aplicação das penalidades inerentes ao descumprimento da LGPD do que a sua entrada em vigor como um todo. Perderíamos um tempo precioso na implementação de uma cultura de proteção de dados pessoais que - sabemos - consome muito mais tempo que a vacatio legis imposta pela letra fria da lei.

Quanto ao destino final reservado a esse tema, confesso que só sei que nada sei. Nunca a literatura clássica ocidental foi tão atual quanto nos tempos presentes.

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*Fernando Santiago é sócio fundador do escritório Chenut Oliveira Santiago Advogados.

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