O equilíbrio contratual em tempos de Covid-19
Em tempos de pandemia global causada pelo alastramento do Covid-19 e dos efeitos econômicos negativos dali resultantes, o rompimento do equilíbrio econômico contratual é matéria relevante a sociedade fundada nos "valores sociais do trabalho e da livre iniciativa"
quarta-feira, 1 de abril de 2020
Atualizado às 10:34
Em se tratando da matéria de contratos privados1 a regra geral é a de imutabilidade do quanto pactuado entres as partes contratantes (pacta sunt servanda). Dito de outra forma: cumpra-se nos exatos termos em que acordado!
Tal regra, ancorada no princípio da autonomia da vontade, já era observada quando da vigência do Código Civil de 1916 e seguiu com o Codex de 2002 (CC/02), só que nesta última ocasião de maneira mais branda ante a inclusão - do que a doutrina civilista denominou - dos princípios sociais2 dos contratos, quais sejam: o da função social, o da boa-fé [objetiva] e o do equilíbrio econômico.
Em tempos de pandemia global [emergência de saúde pública de importância internacional]3 causada pelo alastramento do Covid-19 e dos efeitos econômicos negativos dali resultantes, o rompimento do equilíbrio econômico contratual é matéria relevante a sociedade fundada nos "valores sociais do trabalho e da livre iniciativa"4.
É que o desequilíbrio entre a prestação e contraprestação ocorrido ou passível de ser experimentado no curso da execução contratual5 tem o condão de gerar um ônus excessivo superveniente a ser suportado por uma das partes [credor ou devedor], o que arreda a ideia inicial do "ganha-ganha" quando da pactuação do ajuste, até porque ninguém contrata almejando um prejuízo futuro.
Para tais casos o CC/02 resguarda a possibilidade [vide arts. 478 a 480 de sua Seção IV - Da Resolução por Onerosidade Excessiva], pela via judicial, da resolução do contrato ou a sua modificação/correção de forma equitativa para fins de viabilizar o adimplemento esperado quando da pactuação do ajuste.
Nessa mesma senda está o art. 317 do CC/02, o qual faculta a intervenção judicial na negociata quando "sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução".
Ocorre que para tanto, é dizer, para a revisão/relativização judicial6 do contrato visando a mantença do equilíbrio entre as partes, a lei exige a presença de alguns requisitos ínsitos à espécie, dentre os quais pinçamos a existência de "acontecimentos extraordinários e imprevisíveis" [arts. 317 e 478 do CC/02].
Sobre a conceituação desse requisito em específico leciona Lúcia Ancona Lopes de Magalhães Dias que - verbis:
Extraordinário é o fato externo ao contrato e não imputável à conduta da parte que invoca a onerosidade excessiva. É o fato anormal que produz um sobressalto no curso habitual das coisas. Por seu turno, define-se como imprevisível todo aquele acontecimento incogitável pelas partes no momento da celebração do negócio, uma vez que, se dele tivessem condições de prever, não teriam celebrado o negócio ou o teriam celebrado de forma diversa7.
Forte nessa definição, quer nos parecer, a priori, que a situação pandêmica atual se amolda a alguma das hipóteses acima descritas, quiçá em ambas.
Entretanto, há respeitável posicionamento dissonante fundado na ocorrência, em um passado recente, de outras crises sanitárias de alcance global [e.g. H1N1, Sars, Mers, Gripe Suína, Ebola, etc.] que, inclusive, contaram com taxas de mortalidade bem maiores que a presente.
Assim sendo, os defensores dessa vertente afirmam, em suma, que a crise atualmente vivenciada era [ou deveria ser] previsível e que, portanto, estava [ou deveria estar] embutida no risco8 que cada parte assumiu quando da pactuação do contrato, razão pela qual os efeitos [negativos] supervenientes dali exsurgidos devem ser suportados pelos contratantes, excluindo-se, inclusive, o reconhecimento de caso fortuito ou de força maior9 na espécie.
Não muito longe dessa maneira de pensar está o corrente posicionamento do Superior Tribunal de Justiça (STJ) no tocante aos contratos agrícolas que dispõe que "o risco é inerente ao negócio, de forma que eventos como seca, pragas, ou estiagem, dentre outros, não são considerados fatores imprevisíveis ou extraordinários que autorizem a adoção da teoria da imprevisão"10.
Outro exemplo jurisprudencial de presunção do risco contratual que refoge ao senso comum são os roubos ocorridos no interior das agências bancárias que, na visão do STJ, "são eventos previsíveis, não caracterizando hipótese de força maior"11.
Ainda que as hipóteses exemplificativas acima demonstradas possam não guardar similitude estrita com as inúmeras situações econômicas derivadas do alastramento do Covid-19 que, por certo, abarrotarão o Poder Judiciário, elas nos chamam a atenção para o fato de que a alegação de ocorrência de circunstância excepcional, para fins de revisão/relativização do contrato, deve ser analisada no caso concreto, mediante as peculiaridades envoltas a cada caso a ser apreciado pela jurisdição.
Resumo da ópera: em tempos de anormalidade não há uma fórmula exata a ser aplicada aos possíveis pleitos revisionais de contratos fundados no primado do equilíbrio contratual. Para muitos contratos o cenário de pandemia poderá se consubstanciar em situação atípica que macula a sinalagma do ajuste. Já para outros, onde tal risco era [ou deveria ser] previsto e que, inclusive, serviu para a formulação do preço12 do negócio, não parece ser o caso de revisão.
Qualquer que seja o entendimento a ser adotado em um futuro próximo pelos tribunais pátrios acerca da matéria em análise, certo é que ele deve perpassar pelos demais princípios sociais [boa-fé objetiva e função social do contrato] que informam todo e qualquer contrato, mirando, alfim, a garantia da justiça contratual no caso concreto sem desvencilhar do primado da segurança jurídica.
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1 A presente análise excluí os contratos oriundos da relação de consumo, atendo-se exclusivamente as relações contratuais regidas pela legislação civil (contratos típicos e atípicos) onde as partes, via de regra, estão em posições equânimes, a exemplo dos contratos empresariais.
2 Vide arts. 421 e seguintes do CC/02.
3 Vide lei 13.979, de 6 de fevereiro de 2020.
4 Vide inciso IV do art. 1º da CF/88.
5 A hipótese ora tratada se refere aos contratos firmados antes da atual crise, onde, até então, era inimaginável a atual situação de pandemia global, superveniência esta que pode dar azo a aplicação da teoria da imprevisão ou teoria da onerosidade excessiva - cláusula rebus sic stantibus.
6 "[...] A intervenção do Poder Judiciário nos contratos, à luz da teoria da imprevisão ou da teoria da onerosidade excessiva, exige a demonstração de mudanças supervenientes das circunstâncias iniciais vigentes à época da realização do negócio, oriundas de evento imprevisível (teoria da imprevisão) e de evento imprevisível e extraordinário (teoria da onerosidade excessiva), que comprometam o valor da prestação, demandando tutela jurisdicional específica, tendo em vista, em especial, o disposto nos arts. 317, 478 e 479 do CC." (STJ. REsp 1.321.614/SP, Rel. originário Min. Paulo de Tarso Sanseverino, Rel. para acórdão Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em 16.12.14, DJe 03.03.15).
7 MAGALHÃES DIAS. Contratos empresariais: fundamentos e princípios dos contratos empresariais / Wanderley Fernandes, coordenador. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2012 - Série GVlaw, p. 406.
8 Lembrando que o contrato é, por natureza, um instrumento de alocação de riscos. Sobre o tema [alocação de riscos contratuais] há interessantes definições doutrinárias no trabalho do TCU intitulado "Uma análise da alocação de riscos nos contratos para prestação de serviços públicos: O caso do transporte rodoviário interestadual de passageiros por ônibus". Disponível clicando aqui. Acessado em 27 de mar. de 2020.
9 O que afastaria também uma possível aplicação do art. 393 do CC/02.
10 STJ. AgRg no AREsp 834.637/DF, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, TERCEIRA TURMA, julgado em 10/05/2016, DJe 17/05/2016.
11 STJ. REsp 1.183.121/SC, Rel. min. Luis Felipe Salomão, julgado em 24.02.15, DJe 07.04.15.
12 "O principal mecanismo de alocação de riscos em contratos empresariais é o próprio preço". [VARALLA MENDES, Maria Cristina. Notas sobre alocação de riscos e garantias contratuais. In Contratos empresariais: fundamentos e princípios dos contratos empresariais / Wanderley Fernandes, coordenador. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2012 - Série GVlaw, p. 457].
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*Ademar José P. da Silva é advogado e sócio do escritório de advocacia Cyrineu & Silva Advogados.