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O vírus não contagia o contrato

As hipóteses de rompimento do contrato, muito embora possam ensejar diferentes perspectivas teóricas de análise, resumem-se no direito brasileiro, que admite a resolução do contrato "em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis"

terça-feira, 31 de março de 2020

Atualizado às 11:07

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Logo em seguida ao decreto de emergência em razão da pandemia, vários dos vinculados a contrato que lhes impõe obrigação de pagar quantia passaram a questionar a sobrevivência íntegra da obrigação, invocando para tanto uma gama de institutos que impressionam até pelo nome, sem se ater sobre sua existência autônoma entre nós e sobre sua eficácia simultânea para uma situação única. Cogita-se, nesse sentido, da teoria da imprevisão, da boa-fé objetiva, da cláusula "rebus sic stantibus", da excessiva onerosidade, do enriquecimento sem causa, do caso fortuito e da força maior. A somatória desses conceitos, no entanto, se pudesse existir, pois nem todos são da mesma natureza, não importaria num resultado de isenção de pagamento, ainda que parcial.

A inconsistência de postulação desse gênero compromete-se, inicialmente, pelo açodamento. O pouco tempo transcorrido não permite qualquer conclusão de rompimento com o "pacta sunt servanda", uma vez que não enseja concluir-se pela existência de modificação significativa das circunstâncias negociais, muito menos sobre sua profundidade. Ninguém também é capaz de predizer o tempo de duração do quadro que hoje se fotografa, mesmo porque há divergências políticas, indiferentes pela ignorância dos quadros, e científicas, pois a ideia de protelar a incidência do vírus seria só para evitar um possível estado caótico dos serviços de saúde, havendo quem sustente que melhor seria deixar correr rapidamente o contágio de modo que, ainda que com maiores perdas, se safaria antes da doença. De outro lado, não se consegue antever suas consequências econômicas, pois medidas são anunciadas e sequer parecem ter sido efetivamente aplicadas.

Aceitando-se considerar o tema, ainda que julgando ser antes da hora, é de rigor não imiscuir as causas de inadimplemento não imputáveis ao devedor (força maior, caso fortuito) com as hipóteses que admitem romper com a higidez dos contratos e com outras fontes autônomas de obrigação, como é o caso do enriquecimento sem causa.

As hipóteses de rompimento do contrato, muito embora possam ensejar diferentes perspectivas teóricas de análise, resumem-se no direito brasileiro à previsão do art. 478 do Código Civil, que admite a resolução do contrato "em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis", "se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra". Tem lugar, portanto, quando o extraordinário afetar o equilíbrio do contrato.

A regra é essa e embora não se especifique a dimensão dos tais "acontecimentos extraordinários e imprevisíveis", bastante é considerar-se a gangorra que se prega não possa perder o equilíbrio. Evidente que isso se mostra possível somente diante de prestação e contraprestação de igual natureza. Pode dizer-se, em tese, que a súbita queda da taxa de juros afetou o equilíbrio de um mútuo contratado ao tempo de taxas oficiais maiores. Não posso, entretanto, dizer que um contrato de prestação de serviços se desequilibrou porque os serviços passaram a ser prestados de forma diferente daquela que antes se praticava, porque a obrigação de fazer, devida pelo prestador, não é igual a de pagar, assumida pelo contratante.

Não bastasse isso, é certo que a eventual onerosidade da prestação, se existir, não será decorrência do serviço em si. A eventual equivalência da prestação e contraprestação teria sido dimensionada antes, quando da contratação. Se a prestação se tornou excessivamente onerosa pelas condições pessoais do contratante, o ônus não pode recair sobre a outra parte, que não seria culpada disso. Há que buscar outrem a quem possa repassar suas perdas.

A aplicação dessa disposição legal é de se dar em caráter excepcional, de modo a sempre exigir a cumulação de seus pressupostos, sendo indiferente à sua incidência o simples evento imprevisto e extraordinário. É necessário que ele incida sobre a obrigação em si.

No que tange às causas de inadimplemento não imputáveis ao devedor, ou seja, a força maior e o caso fortuito, cuja distinção seria desnecessária nesse momento, sua incidência se dá em relação ao comprometimento da própria obrigação. Em relação a quem deve "pagar dinheiro", ela teria sentido numa circunstância como a que o Brasil viveu com o bloqueio dos cruzados na posse do presidente Collor. Naquela oportunidade, o dinheiro foi confiscado e cada pessoa ficou com uma pequena quantia, não tendo, pois, como honrar a maioria de seus compromissos. Isso não se coloca agora, ainda para quem possa ser afetado por redução de ganho. Quanto ao contratado, sua obrigação poderá ser impossível de cumprir ou ter que ser realizada de outro modo. Um advogado contratado para assistir um cliente numa negociação na Itália, não poderia ir até lá; quem sabe possa suprir sua ausência por meio virtual. Uma escola que não pode ter suas aulas ministradas presencialmente, terá que buscar alternativa ou mesmo suspendê-las, sem que seja dado ao contratante o direito de não as pagar, pois há força maior atingindo particularmente a obrigação de fazer em si.

Por fim, não há de se imputar a quem recebe enriquecimento sem causa, dado que este pressupõe um recebimento sem justificativa e, se há contrato, há justificativa, sendo que, de outro lado, deve o enriquecimento dar-se em contrapartida ao empobrecimento da parte contrária, que não basta ser afirmado, devendo ser comprovado.

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*Clito Fornaciari Júnior é sócio responsável do escritório Clito Fornaciari Júnior - Advocacia. Mestre em Direito Processual Civil pela PUC-SP. Advogado. Ex-presidente da AASP.

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