Boa-fé, dever de informar e transparência: reequilíbrio e resolução contratual em tempos de coronavírus
Apesar de a crise ser generalizada, os seus efeitos sobre cada pessoa ou empresa são diferentes, e manter a contraparte informada sobre a real situação de seu negócio é um dever de cada empresário, a fim de proporcionar um ambiente de cooperação e lealdade.
segunda-feira, 30 de março de 2020
Atualizado às 12:02
Nos tempos estranhos que temos vivido, e no meio de incertezas e insegurança quanto aos tempos que virão, a comunidade jurídica se movimenta para tentar antever soluções para as diversas questões que já vêm surgindo e aquelas que surgirão relativas à necessidade de revisão de contratos e outras medidas necessárias para remediar inadimplementos contratuais.
Se por um lado é inegável que estamos diante de situação absolutamente imprevisível, por outro ainda é impossível dimensionar os efeitos das medidas restritivas relacionadas ao coronavírus sobre as atividades empresariais, sobretudo por não haver como ainda prever a duração de tais restrições.
Nesse contexto, é intuitivo que medidas como o fechamento forçado de estabelecimentos comerciais, restrições ao transporte de pessoas e coisas e redução de demanda por produtos e insumos, podem vir a caracterizar eventos de força maior, fatos do príncipe, fatos imprevisíveis e fatores de desequilíbrio contratual. Entretanto, ainda é cedo, muito cedo para tentar enquadrar a situação que vivemos em um desses institutos jurídicos tradicionais; uma crise sanitária sem precedentes não será resolvida de forma adequada com base em precedentes judiciais e possivelmente será solucionada, no momento apropriado, com base em teoria jurídica própria, moldada pelos fatos quando estes estiverem consolidados, de forma a adequar o problema como um todo, levando em consideração seus efeitos jurídicos sobre todos os agentes envolvidos.
Assim, apesar do senso de urgência que surge naturalmente de uma situação extrema como a atual, não nos parece prudente, tampouco recomendável, tentar antecipar os efeitos dos eventos extraordinários sobre os contratos e os seus desdobramentos jurídicos. Mas se os efeitos práticos das medidas relacionadas ao coronavírus são palpáveis e atuais, devemos então aguardar o desfecho da crise para adotar qualquer medida tendente a reequilibrar ou resolver contratos afetados por estes eventos externos?
A resposta é não. Em tempos estranhos e difíceis, o elemento que, independentemente do resultado econômico final da crise, invariavelmente assumirá o papel de protagonista é a boa-fé, em especial os deveres de transparência e informação.
Embora normalmente estejam mais associados às relações de consumo, os princípios da transparência e informação derivam diretamente da boa-fé objetiva, a ser observada tanto na celebração do contrato como durante sua execução. Em relações continuadas, o dever de informar a contraparte sobre eventual diminuição patrimonial ou antecipar dificuldades em dar cumprimento às obrigações assumidas no contrato constitui um dos pilares da ética empresarial, ao lado da lealdade e da cooperação.
No contexto atual, agir de boa-fé significa manter a contraparte informada sobre as dificuldades enfrentadas, permitindo, com isso, a renegociação imediata de contratos e a tomada de ações, pela parte credora, visando reprogramar ou rever também suas obrigações. Nada pior do que, em uma situação já muito complicada, ser surpreendido com o não recebimento de um pagamento há muito esperado, causando um efeito cascata de inadimplemento sucessivo de obrigações. O comportamento ético e leal do devedor, agindo com transparência e cumprindo seus deveres contratuais na medida de suas possibilidades momentâneas, tem efeitos diretos sobre a (des)caracterização do inadimplemento contratual, atraindo a aplicação de institutos jurídicos como o do "adimplemento substancial", com repercussão sobre a possibilidade futura de reequilibrar ou mesmo resolver contratos de forma menos onerosa.
Sob a perspectiva do credor, a transparência e informação do devedor despertam também o dever de renegociar, visando a conservação do contrato, ou, caso a renegociação não seja frutífera ou mesmo possível, permitindo a rescisão antecipada do contrato, com fundamento no art. 477 do Código Civil ("Se, depois de concluído o contrato, sobrevier a uma das partes contratantes diminuição em seu patrimônio capaz de comprometer ou tornar duvidosa a prestação pela qual se obrigou, pode a outra recusar-se à prestação que lhe incumbe, até que aquela satisfaça a que lhe compete ou dê garantia bastante de satisfazê-la"), com fundamento no dever, também derivado da boa-fé, de mitigar o próprio dano. Por mais que possa parecer contraditório exigir do devedor que preste uma informação que pode levar à resolução do contrato, a observância do dever de transparência é relevante justamente para que as partes possam tomar decisões informadas e instruídas sobre a execução e eventual resolução contratual, sem serem surpreendidas por alegações futuras de "imprevisão" ou "desequilíbrio contratual" por circunstâncias não reveladas à época dos fatos.
Em outras palavras: apesar de a crise ser generalizada, os seus efeitos sobre cada pessoa ou empresa são diferentes, e manter a contraparte informada sobre a real situação de seu negócio é um dever de cada empresário, a fim de proporcionar um ambiente de cooperação e lealdade. Apesar de não ser ainda possível prever como nossos Tribunais (judiciais ou arbitrais) resolverão os conflitos contratuais instaurados por conta da situação extraordinária que vivenciamos, uma coisa é certa: agir com transparência e boa-fé no momento dos acontecimentos fará, mais à frente, toda a diferença.
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*Marco Gasparetti é sócio de FKG - Forbes, Kozan e Gasparetti Advogados, especialista em contencioso cível e arbitragem.