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A disputa política entre a União e Estados e a judicialização da pandemia

Precisamos, em primeiro lugar, afastar a polarização política, a "guerra política" entre União e os Estados, bem como a "judicialização da pandemia", buscando estabelecer um laço de coordenação e integração para a contenção e controle do surto pandêmico.

sexta-feira, 27 de março de 2020

Atualizado às 11:36

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Estamos a viver uma das maiores crises mundiais deflagrada pela pandemia do novo coronavírus (covid-19), que está espalhando sofrimento humano no nível global. Diante disso, as palavras de ordem são a integração, cooperação e solidariedade - no pronunciamento oficial, realizado em 20 de março de 2020, o Secretário-Geral das Nações Unidas Antônio Guterres afirmou que "mais do que nunca, precisamos de solidariedade, esperança e vontade política para enfrentar esta crise juntos"1. De acordo com Guterres, esta é uma crise humana que exige políticas coordenadas, decisivas e inovadoras.

Neste sentido, precisamos, em primeiro lugar, afastar a polarização política, a "guerra política" entre União e os Estados, bem como a "judicialização da pandemia", buscando estabelecer um laço de coordenação e integração para a contenção e controle do surto pandêmico. "Estamos em guerra contra um vírus e as ações devem corresponder à natureza única da crise  - e a magnitude da resposta deve corresponder à sua escala"2.

A batalha entre os governos e as instituições democráticas servem de estopim para a deflagração do colapso total do sistema eis que os problemas são estruturais e policêntricos e já estão decantados no sistema brasileiro.  

Os Estados e municípios do Brasil, na falta de uma regulação integrada federal, estão a estabelecer suas próprias regras para adotar medidas de enfrentamento da propagação do novo noronavírus no âmbito regional e municipal, como ocorreu, por exemplo, no Estado do Rio de Janeiro e município de São Paulo.

Ambas as ações estão submetidas à lei Federal 13.979/20, que dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública decorrente do "coronavírus", responsável pelo surto de 2019;  ao decreto 7.616, de 17 de novembro de 2011, que dispõe sobre a Declaração de Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional; a Declaração de Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN) e a Declaração de Emergência em Saúde Pública de Importância Internacional OMS em 30 de janeiro de 2020 e  as medidas de emergência em saúde pública de importância nacional e internacional, ou seja, as situações dispostas no Regulamento Sanitário Internacional, promulgado pelo decreto Federal 10.212, de 30 de janeiro de 2020; a  portaria 188, de 3 de fevereiro de 2020, do Ministério da Saúde, que dispõe sobre a Declaração de ESPIN em decorrência da infecção humana pelo novo coronavírus (2019-nCoV), considerando estado de exceção em decorrência da emergência de saúde pública decorrente da pandemia.

O Estado do Rio de Janeiro, através do decreto 46.973 de 16 de março de 2020, reconheceu a situação de emergência na saúde pública e adotou providências no âmbito regional. O objetivo foi regulamentar a lei 13.979/20 que dispôs sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública decorrente da pandemia.

Em apartada síntese, estas medidas se referem a prestação da realização dos serviços públicos; da suspensão das atividades, por um prazo determinado, que envolvem aglomerações de pessoas como eventos esportivos, shows, passeatas, comícios, de cinema, teatro e afins; visitação às unidades prisionais e de pacientes diagnosticados com Covid-19; aulas nas unidades de ensino públicas e privadas; cursos dos prazos processuais nos processos administrativos; circulação de linhas interestaduais. E, de forma excepcional, recomendou pelo prazo de quinze dias as seguintes restrições: funcionamento de bares, restaurantes, lanchonetes e estabelecimentos congêneres com capacidade de lotação de 30%; fechamento de academia, centro de ginástica e estabelecimentos similares; fechamento de shopping centers, centro comercial e estabelecimentos congêneres; frequentar praia, lagoa e piscina pública, atracação de navio de cruzeiro. O decreto estabeleceu ainda sanções administrativas com base no artigo 10 da lei 6.437 de 1977, que trata das infrações sanitárias  e penal, advinda do artigo 268 do Código Penal"infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa", decorrentes  do caso de descumprimento das medidas previstas no decreto. 

A Prefeitura de São Paulo, por meio do decreto 59.283, declarou situação de emergência no município, adotando medidas similares ao decreto 46.973 de 16 de março de 2020 do Rio de Janeiro. Definiu, dentre outras medidas: autorização da dispensa de licitação para aquisição de bens e serviços destinados ao enfrentamento da emergência;  determinação de competências, onde caberá ao gestor municipal adotar todas as providências legais ao seu alcance visando evitar ou reduzir a exposição dos agentes públicos; suspensão  por 60 dias das férias deferidas ou programadas dos servidores das áreas de saúde, segurança urbana, assistência social e do serviço funerário; proibição de realização de provas de concurso público da administração direta, autarquias e fundação; adiamento de reuniões, sessões e audiências que possam ser postergadas, ou realização das mesmas, caso possível, por meio remoto, pelas unidades da prefeitura; suspensão de todos os cursos, oficinas e eventos similares, promovidos pelo município de São Paulo; estabelecimento de número máximo de pessoas (até 10) que podem comparecer a enterros e velórios, e limitação da duração de velórios (uma hora de duração); e determinação do fechamento imediato de museus, bibliotecas, teatros, clubes esportivos e centros culturais públicos municipais, assim como a suspensão de programas municipais que possam ensejar a aglomeração de pessoas, tais como o "Ruas Abertas".

O problema da falta de coordenação se agrava quando os municípios começam a expedir seus próprios decretos sem o mínimo de uniformização e isso pode acabar por criar normas distintas, por exemplo, em municípios limítrofes, sem, no entanto, criar um ambiente eficaz para a prevenção da pandemia. Estariam os Estados e municípios a exercer a competência da União?  Ou os Estados na falta de regras gerais, possuiriam competências para materializar os protocolos de controle e segurança expedidos pela Organização Mundial da Saúde, pelo Ministério da Saúde e pela União?

O artigo 24 da Constituição Federal prevê a possibilidade de os Estados legislarem concorrentemente sobre proteção e defesa da saúde, e caso não haja a expedição das normas gerais, os Estados poderão exercer a competência legislativa plena, para atender às suas peculiaridades. Portanto, presume-se que não há inconstitucionalidade na expedição dos decretos, principalmente porque necessários na vivência do estado de exceção. No mais, as medidas de proteção que um ente federativo vier a  tomar, pode invadir esfera de competência do outro e não materializar a efetividade que se pretende em tempos de pandemia.

Outra distorção grave decorrente da falta de uma regulação integrada federal é a "judicialização da pandemia" e isso pode estimular respostas jurisdicionais arbitrárias e autoritárias, vindo a potencializar a crise pandêmica.

A jurisdição, enquanto órgão de controle no estado de exceção, deve uniformizar as suas respostas na garantia das medidas de segurança sanitária, de direitos fundamentais e humanos e compor, de forma coordenada e integrada, o sistema de enfrentamento da crise  federal e regional por meia da promoção do diálogo inter-institucional.

Neste momento crucial, a judicialização não pode ser considerada uma válvula de escape para assegurar direitos fundamentais a esta ou aquela pessoa - caracterizando, assim, um padrão individualista - principalmente porque, na atual conjuntura, somos uma única nação combatendo o inimigo invisível - exigindo um padrão coletivo. A distorção pandêmica pode ser percebida, por exemplo, no caso da autorização para a não interrupção dos cultos religiosos durante a crise, como ocorreu no Estado do Rio de Janeiro3 em completa dissintonia com o decreto 46.973 de 16 de março de 2020 e a proibição dada pelo juiz de Direito da 14ª da Vara da Fazenda Pública de São Paulo que deferiu liminar para impedir a realização de missas, cultos ou qualquer ato religioso, em qualquer número, valendo para todos os municípios de São Paulo4.

Algumas conclusões já podem ser percebidas: há a real necessidade de se construir medidas de enfrentamento da propagação do novo coronavírus no âmbito federal, para que haja a uniformização das medidas de enfrentamento à pandemia nos âmbitos regionais e municipais de atuação; e a "judicialização da pandemia" pode potencializar a crise, levando a sérias consequências como o aumento do nível de insegurança com relação a transmissão do vírus e falta de controle sistêmico e de gestão dos meios de contenção da crise. O estado democrático brasileiro irá sucumbir.

No epicentro da crise, onde se está em risco a vida e diante do colapso dos meios e insumos de controle da pandemia, a competência para a atuação está mais centrada na figura do chefe de Estado - esta afirmação advém do fato de que está decretada a guerra contra o inimigo invisível5.

Cabe ao chefe de Estado, neste caso, tranquilizar a população e estabelecer métricas e um plano de integração de controle e defesa nacional e a abertura do diálogo com os Governadores, que estão na ponta da linha, constitui, de fato, o exercício da centralização política em nome da segurança e defesa nacional, atuando, assim, como estadista - a exemplo, dentre outros, do Presidente francês Emmanuel Macron, determinando estratégias gerais e o uso do exército nos esforços de contenção da epidemia; e do Presidente espanhol Pedro Sánchez, decretando quarentena geral  no país, uma vez que as políticas graduais de contenção, não impediram o aumento das infecções e mortes causadas pelo vírus6.

A ausência de uniformidade dos decretos expedidos pelas unidades federativas, bem como exorbitância do limite de competências municipais e estadual indica um vácuo de poder no âmbito federal que vem sendo ocupado por prefeitos e governadores que buscam assumir a responsabilidade, sem a devida integração e coordenação, sem apoio do governo federal no momento oportuno em que urge tomar as decisões emergenciais e implementadas a fim de minorar a catástrofe epidêmica anunciada.

A tarefa precípua do chefe de Estado é o de criar um sistema nacional e integrar os vários subsistemas estaduais para que juntos, coordenados por uma autoridade superior e com propósitos comuns, deliberem ações conjuntas. Por exemplo, poderíamos citar o conceito e aplicação do Sistema Nacional de Mobilização (SINAMOB), com o objetivo de integrar os esforços a partir da União para combater a pandemia7.

Assim seria possível reduzir consideravelmente os efeitos nefastos do conflito político entre União e Estados e a "judicialização da epidemia" em relação à prevenção e ao combate ao novo coronavírus, tendo como principal vítima a sociedade brasileira.

O momento atual exige união do país e atuação coordenada, integrada e solidária de todos os atores envolvidos - a guerra contra o inimigo invisível global não pode admitir fraquezas dentro ou fora do Estado, representadas pelas desavenças políticas e discursos populistas.

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1 Disponível aqui. 

2 NAÇÕES UNIDAS BRASIL. Chefe da ONU pede solidariedade, esperança e resposta global coordenada para combater a pandemia.  Acesso em 20 de mar de 2020.

4 MIGALHAS. Juiz de São Paulo proíbe missas, cultos e outras celebrações religiosas. Acesso em 23 de mar de 2020.

5 O ministro da Defesa Fernando Azevedo declarou em comunicado oficial realizado no dia 18 de março de 2020, que "(...) isso é uma guerra contra um inimigo invisível, feroz, dedicado (...)". Acesso em 20 de mar de 2020.

6 AGÊNCIA BRASIL. Espanha decreta quarentena por causa do coronavírus.  Acesso em 20 de mar de 2020.

7 GUEDES, Richard. SINAMOB objetivando integração de esforços da União no coronavírus. José Ananias Duarte Frota - Cel BM ESG/CAEPE. Acesso em 20 de mar de 2020.

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*Pedro Hermílio Villas Bôas Castelo Branco é professor de Teoria Política do Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP) da Universidade Estadual do Rio de Janeiro(UERJ); Professor de Sociologia do Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Doutor em Ciência Política (IUPERJ), Mestre em Direito (PUC-Rio), Rio de Janeiro, Brasil. 

*Carina Barbosa Gouvêa é professora do Programa de Pós Graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco (PPGD/UFPE) e da Faculdade de Direito do Recife (UFPE); Pós Doutora em Direito Constitucional Universidade Federal de Pernambuco (PPGD/UFPE); Doutora  e Mestre em Direito pela UNESA, Recife, Brasil. 

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