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O desastre que precede a calamidade

Rafael Rodrigues

A MP revelou o que já pode ser considerado como o segundo aspecto social mais nefasto que a sociedade brasileira está prestes a enfrentar: a conversão do trabalhador em capital e a monetização dos direitos trabalhistas.

terça-feira, 24 de março de 2020

Atualizado às 15:01

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Sob a justificativa de estancar os danos econômicos da pandemia instaurada pelo coronavírus, o presidente da República fez editar, em 22 de março de 2020, a Medida Provisória 927.

A MP revelou o que já pode ser considerado como o segundo aspecto social mais nefasto que a sociedade brasileira está prestes a enfrentar: a conversão do trabalhador em capital e a monetização dos direitos trabalhistas.

Naturalmente que nada supera o gravíssimo problema de saúde que abala toda a humanidade - e o Brasil não está imune, pelo contrário sua imunidade é baixíssima - mas o efeito da Medida Provisória em questão trará grave enfermidade também para as relações de trabalho, em especial aos trabalhadores.

Não olvidamos o fato de que a pandemia trará impacto negativo grave na capacidade financeira das empresas e dos empregadores em geral, contudo, a atenção do Governo parece voltada apenas para um de vários aspectos econômicos que poderiam ser atendidos com vistas a preservá-los, ou minimizar os danos: os empregados.

A MP, de modo precipitado, equiparou o estado de calamidade ao que o art. 501 da CLT classifica como hipótese de força maior, o que por si só, nos termos do artigo 503 da CLT, já permitiria o comprometimento de até 25% do salário dos trabalhadores, mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho.

O mais gravíssimo problema ressalta do art. 2º, em que a MP concede liberdade temerária para a livre negociação individual entre empregado e empregador na celebração de acordo individual escrito que possa modificar substancialmente as condições do contrato de trabalho.

É indiscutível que a relação entre empregadores e empregados é desigual e sempre necessitou de intervenção para nivelar esses interesses que, em regra, militam em sentidos opostos e sempre em posição de desigualdade. Se por um lado, os trabalhadores buscam condições melhores de trabalho e melhores salários, o que representa impactos no custo de produção; por outro, os empregadores, no bojo da otimização da sua produção, buscam a redução dos seus custos.

Contudo, o detentor do capital, do poder de decisão de contratar ou demitir, é o empregador. E num momento de tantas incertezas sobre a saúde e a vida, em clima de pandemia, essa relação se torna ainda mais desigual, a possibilidade real do desemprego diante de um cenário de crise econômica mundial e de escassez de insumos, não é crível que os trabalhadores estarão dotados de capacidades mínimas para estabelecer uma repactuação do seu contrato de trabalho individualmente.

Daí porque este é o aspecto mais nefasto da MP, pois aliena a participação do único ente que efetivamente pode representar e preservar direitos e interesses dos trabalhadores: o sindicato.

Agravando ainda mais este cenário, o art. 18 abre a possibilidade de suspensão do contrato de trabalho, facultando ao empregador o pagamento de ajuda compensatória mensal, na esteira da negociação individual sem a participação sindical.

Não garantir a atuação sindical numa negociação que abre espaço para redução de salário, suspensão do contrato de trabalho, dispensa com corte de verbas rescisórias, implantação de teletrabalho, antecipação de férias, concessão de férias coletivas, aproveitamento e antecipação de feriados, banco de horas, suspensão de exigências administrativas em segurança e saúde no trabalho, direcionamento do trabalhador para qualificação e diferimento do recolhimento do FGTS, para além de literalmente jogar o trabalhador à própria sorte, atribui ao trabalhador o que de pior lhe pode ser atribuído: a noção de que empregado se resume a custo e que, em momento de crise, este deve ser o primeiro custo a ser cortado.

Ou seja, sem a participação sindical, a MP monetizou o trabalho e jogou sobre as costas do trabalhador a responsabilidade pela preservação das empresas e dos empregos, dando ao empregado a escolha entre a cruz e a espada: se submeter às condições de trabalho impostas pelo empregador - porque não há capacidade de negociação pelo empregado sem a assistência sindical - ou ao desemprego em plena pandemia.

Em tempos de preservação de garantias mínimas, agindo ao arrepio da Carta Magna, o Governo optou por proteger empresas sob o sacrifício dos empregados, quando em verdade a proteção das empresas deveria servir como instrumento para preservação do bem maior - o emprego e o salário digno, sob pena sim, de uma crise econômica ainda mais severa.

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*Rafael Rodrigues é sócio da banca Rodrigues Pinheiro Advocacia.

 

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