Análise da MP 927/20, que dispõe sobre as medidas trabalhistas para enfrentamento do estado de calamidade pública
A MP 927/20 inverte, durante o estado de calamidade, duas importantes regras de proteção construídas pelo Direito do Trabalho ao determinar a prevalência da vontade do empregador e prevalência do acordo individual escrito sobre os instrumentos normativos, legais e negociais.
terça-feira, 24 de março de 2020
Atualizado às 11:39
Comentários preliminares
Em função do avanço da pandemia da covid-19 (coronavírus), o Brasil passou do estado de emergência para o estado de calamidade pública, ou seja, estado excepcional em que o governo pode ajustar as relações sociais de acordo com as excepcionalidades da calamidade reconhecida. A MP 927/20 foi editada após o reconhecimento do estado de calamidade pelo Congresso Nacional (decreto legislativo 6, de 20.03.20)
A MP 927/20 inverte, durante o estado de calamidade, duas importantes regras de proteção construídas pelo Direito do Trabalho ao determinar a prevalência da vontade do empregador e prevalência do acordo individual escrito sobre os instrumentos normativos, legais e negociais (acordos e convenções coletivas);
Comentários gerais sobre a MP 927/20
1) Flexibilização das regras trabalhistas, ou seja, medidas que poderão ser tomadas pelo empregador para preservação do emprego e da renda em momento de estado de calamidade pública;
2) Essa flexibilização somente prevalecerá por tempo determinado, ou seja, durante o estado de calamidade (regras de exceção para o momento);
3) O acordo individual escrito prevalecerá sobre os instrumentos normativos, legais e negociais (acordos e convenções coletivas);
4) A MP 927/20 prevê oito medidas que poderão ser adotadas pelo empregador:
4.1. - o teletrabalho (home office);
4.2 - a antecipação de férias individuais;
4.3 - a concessão de férias coletivas;
4.4 - o aproveitamento e a antecipação de feriados;
4.5 - o banco de horas;
4.6 - a suspensão de exigências administrativas em segurança e saúde no trabalho;
4.7 - o direcionamento do trabalhador para qualificação; e
4.8 - o diferimento do recolhimento do FGTS;
5) A MP 927/20 prevê outras disposições em matéria trabalhista, prorrogação do prazo de vigência de acordo e convenção coletiva, restrição da fiscalização trabalhista, validação de atos praticados pelo empregador no período dos trinta anteriores à sua edição, dentre outras.
Medidas previstas pela MP 927/20
1) Teletrabalho (sistema de trabalho não presencial, fora das dependências do empregador) - arts. 4º a 5º
1.1 - compete exclusivamente ao empregador utilizá-lo ou não; independe da concordância do empregado;
1.2 - a sua adoção não depende da existência de acordo individual ou coletivo;
1.3 - é dispensado o registro prévio da alteração no contrato individual de trabalho;
1.4 - a alteração do regime presencial para o regime de teletrabalho precisa ser comunica ao empregado com antecedência de 48 horas, por escrito ou por meio eletrônico (e-mail, whatsapp etc);
1.5 - serão previstas em contrato escrito, firmado previamente ou não prazo de 30 dias, contado da data da mudança do regime de trabalho, a responsabilidade pela aquisição ou fornecimento dos equipamentos e infraestrutura necessária;
1.6 - o uso do equipamento do empregador fora da jornada normal do empregado não constitui tempo à disposição, regime de prontidão ou de sobreaviso;
1.7 - fica permitida a adoção do regime de teletrabalho para estagiários e aprendizes.
2) Antecipação de férias individuais - arts. 6º e 10
Pode contribuir para o fluxo de caixa (diferimento do adicional de 1/3 de férias)
2.1 - comunicação prévia de 48 horas por escrito ou meio eletrônico (e-mail, whatsapp, etc);
2.2 - não podem ser inferiores a 5 dias;
2.3 - poderá ser concedida mesmo que o período aquisitivo não tenha transcorrido;
2.4 - trabalhadores em grupo de risco terão prioridade para o goze de férias, individuais ou coletivas;
2.5 - o empregador poderá optar por efeturar o pagamento do adicional de 1/3 de férias após sua concessão, até a data em que é devida a gratificação natalina;
2.6 - pedido de conversão de 1/3 de férias em abono pecuniário depende da concordância do empregador;
2.7 - pagamento das férias poderá ser efetuado até o 5º dia útil do mês subsequente ao início do gozo das férias; ex. férias concedidas a partir de 1º.04.20 poderão ser pagas até 06.05.20;
2.8 - na hipótese de dispensa do empregado, o empregador pagará as férias conjuntamente com o pagamento dos haveres rescisórios.
3) Férias coletivas - arts. 11 e 12
3.1 - o empregador poderá conceder férias coletivas notificando por meio eletrônico os empregados com antecedência mínima de 48 horas;
3.2 - não se aplica o limite de dois períodos anuais e o prazo mínimo de 10 dias corridos;
3.3 - o empregador não precisa comunicar o Ministério do Trabalho (atual Ministério da Economia) e o sindicado da categoria.
4) Aproveitamento e antecipação de feriados - art. 13
4.1 - o empregador poderá antecipar o gozo de feriados não religiosos federais, estaduais, distritais e municipais, mediante notificação prévia eletrônica de 48 horas do empregado; os feriados religiosos dependem da concordância do empregado.
4.2 - deverão ser indicados expressamente na notificação os feriados considerados;
4.3 - os feriados considerados poderão ser utilizados para compensação do saldo em banco de horas;
5) Banco de horas - art. 14
5.1 - possibilidade de o empregador interromper a atividade do empregado e constituir banco de horas para compensação;
5.2 - possibilidade de constituir banco de horas com acordo individual por escrito com o empregado ou acordo coletivo com sindicato;
5.3 - possibilidade de compensação no prazo de até 18 meses, contado da data do encerramento do estado de calamidade pública;
5.4 - compensação mediante futura prorrogação da jornada em até 2 horas diárias, não podendo a jornada exceder a 10 horas diárias.
6) Suspensão de exigências administrativas em segurança e saúde no trabalho - arts. 15 a 17
6.1 - ficam suspensos os exames médicos ocupacionais, exceto os exames demissionais, desde que os exames ocupacionais tenha ocorrido há mais de 180 dias;
6.2 - os exames suspensos serão realizados no prazo de 60 dias, contado da data do encerramento do estado de calamidade pública;
6.3 - ficam suspensos os treinamentos periódicos dos empregados previstos em normas de segurança e saúde do trabalho;
6.4 - os mandatos dos membros das CIPAS serão prorrogados até o encerramento do estado de calamidade pública.
7) Suspensão do contrato de trabalho por até 4 meses e direcionamento do trabalhor para qualificação - art. 18
A meu ver, é o ponto mais controvertido da MP 927/2020.
Essa medida é de constitucionalidade duvidosa, visto que permite o não pagamento de qualquer valor ao empregado durante o período de suspensão desde que conceda qualificação profissional não presencial. Risco elevado de passivo trabalhista e vulnerabilidade excessiva ao empregado. Ademais, também seria extremamente complicado para o empregador cumprir essa exigência de qualificação profissional não presencial quando boa parte dos seus empregados não tem tecnologia necessária para o acesso.
Por fim, o próprio Presidente da República informou hoje (23.03.20), pelas mídias sociais, que irá revogar essa alternativa (resta aguardar se haverá revogação ou modificação do art. 18 desta MP).
7.1 - o empregador poderá suspender, pelo prazo de até 4 meses, o contrato de trabalho;
7.2 - condições para a suspensão: (a) que o empregado participe de curso ou programa de qualificação profissional não presencial; (b) curso de qualificação terá que ter duração equivalente à suspensão do contrato; (c) curso de qualificação poderá ser ministrado pelo próprio empregador ou por entidade responsável pela qualificação (ex SENAI). Obs: a meu ver o empregador terá dificuldade de cumprir a obrigação de curso ou programa de qualificação não presencial, pois, dependendo da atividade, a maior parte dos empregados não terá acesso à tecnologia necessária para a qualificação.
7.3 - a suspensão poderá (faculdade e não obrigação) ser acordada individualmente como empregado e não depende de acordo ou convenção coletiva; segundo a redação deste artigo, a suspensão independe da vontade do empregado;
7.4 - o empregador poderá conceder (faculdade e não obrigação) ao empregado ajuda compensatória mensal, sem natureza salarial, com valor mensal definido entre empregador e empregado; de acordo com a redação deste artigo, o empregador poderá ou não pagar um valor mensal ao empregado (pagamento facultativo);
7.5 - o empregador poderá conceder benefícios, que não integrarão o contrato de trabalho;
7.6 - caso o curso de qualificação não seja ministrado ao empregado, ou o empregado permaneça trabalhando para o empregador (presencialmente ou on line), a suspensão ficará descaracterizada e sujeitará o empregador: (a) ao pagamento imediato dos salários, encargos sociais; (b) às penalidades cabíveis previstas na legislação, acordo ou convenção coletiva.
8) Diferimento do FGTS - arts. 19 a 25
Contribui para o fluxo de caixa do empregador.
8.1 - fica suspensa a exigibilidade do recolhimento do FGTS pelos empregadores referentes às competências de março, abril e maio de 2020, com vencimento, respectivamente, em abril, maio e junho de 2020; FGTS = 8% do salário do funcionário.
8.2 - o pagamento dos recolhimentos suspensos será quitado, sem atualização, multa e encargos, em até 6 parcelas mensais, como vencimento no 7º dia de cada mês, a partir de julho de 2020;
8.2 - para usufruir da suspensão, o empregador fica obrigado a declarar as informações do FGTS até 20.06.2020, constituindo confissão do débito;
8.3 - na hipótese de rescisão do contrato de trabalho, o empregador ficará obrigado a recolhimento integral dos valores correspondentes ao empregado demitido, com atualização, mas sem multa e encargos;
8.4 - os prazos dos certificados de regularidade do FGTS já emitidos ficam prorrogados por 90 dias.
9) Outras disposições em matéria trabalhista - arts. 26 a 33
Possibilidade de prorrogação de jornada em estabelecidos de saúde e prorrogação da validade dos acordos e convenções coletivas e outras disposições.
9.1 - é permitido aos estabelecimentos de saúde (ex. hospitais, ambulatórios, postos de saúde, etc), mediante acordo individual, mesmos para as atividades insalubres e jornada 12x36: (a) prorrogar a jornada de trabalho; (b) adotar escalas suplementares entre a 13ª e 24ª do intervalo interjornada, desde que garantido o repouso semanal remunerado.
9.2 - as horas suplementares poderão ser compensadas no prazo de 18 meses, contado da data de encerramento do estado de calamidade pública, por meio de banco de horas ou remunerados como hora extra.
9.3 - durante 180 dias, a contar da publicação da MP, os prazos processuais para apresentação para apresentação de defesa e recurso no âmbito de processos administrativos decorrente de autos de infração trabalhista e fundiária (FGTS).
9.4 - os acordos e convenções coletivas vencidos e vincendos, no prazo de 180 dias desta MP, poderão ser prorrogados, a critério do empregador, pelo prazo de 90 dias.
9.5 - durante 180 dias, a contar da MP, os Auditores Fiscais do Trabalho não poderão aplicar multas, exceto quanto às seguintes irregularidades: (a) falta de registro de empregado; (b) ocorrência de acidente de trabalho fatal; (c) trabalho em condições análogas às de escravo; (d) trabalho infantil.
9.6 - o disposto nesta MP se aplica também ao trabalho temporário, trabalho rural e trabalho doméstico.
9.7 - o disposto nesta MP com relação ao teletrabalho não se aplica ao trabalho em teleatendimento e telemarketing.
10) Disposições finais - arts. 36 a 39
Convalidação de atos já adotados pelo empregador e prorrogação da certidão de tributos federais da Receita Federal
10.1 - consideram-se convalidadas as medidas trabalhistas adotadas por empregadores que não contrariem o disposto nesta MP tomadas no período dos 30 dias anteriores à sua entrega em vigor.
10.2 - o prazo de validade da certidão de tributos federais e dívida ativa da União será de até 180 dias, podendo ser prorrogada em caso de calamidade pública pelo prazo determinado pela Receita Federal e Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (Obs: prorrogação será definida em outro ato pelas citadas autoridades competentes).
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*Rogério Alessandre de Oliveira Castro é sócio do escritório Castro e Castro Advogados e professor da FDRP/USP. É mestre em Educação, Administração e Comunicação pela UNIMARCOS e doutor em Integração da América Latina pela USP.