Em busca da ética global em tempos de covid-19
O que se apela, neste momento, é a tomada de consciência nacional e de respeito ao ser humano, sobretudo no que diz respeito aos mais afetados e à ética de responsabilidade. Isso exige, pelo menos que, diante do caos que vivemos, se espera que as normas baixadas pelo governo possam cobrir e amparar a pluralidade dos casos que se apresentam.
sexta-feira, 20 de março de 2020
Atualizado às 11:47
"A declaração obrigatória e o isolamento foram mantidos. As casas de doentes tiveram de ser fechadas e desinfectadas, parentes submetidos à quarentena de segurança, organizados pela cidade (...) Um dia depois, as vacinas chegaram de avião. Elas poderiam ser suficientes aos casos em tratamento. Elas seriam insuficientes se a epidemia se estendesse (...) a epidemia parecia recuar, e em qualquer dia, nós contaríamos com uma dezena de mortes somente. Então, de repente, ela volta a disparar"
(Albert Camus)1
I - Introdução
A emergência do COVID-19 está colocando a maioria de nossas ações a duras provas, deixando-nos perplexos pelos fatos que ocorreram desde seu surgimento, até agora, não explicados convenientemente.
Mas que é pandemia?
Com rigor científico, a Organização Mundial de Saúde (OMS) utilizou a palavra no sentido de que uma moléstia - como uma gripe - pode se estender por todo o globo, irrestritamente, não discriminando seus efeitos sobre grupos específicos de pessoas. Correta, é preciso não confundir a definição com a de uma epidemia ou endemia.
Disto isto, é indispensável, em momentos tão graves como este em que vivemos, que, diante da inusitada e a rápida difusão dos acontecimentos, possamos refletir sobre as mudanças bruscas de nossos hábitos, conclamando àquilo que me parece ser a antonímia da época presente: a responsabilidade coletiva para enfrentar a situação com os ônus decorrentes da indiferença e da falta de solidariedade que distingue nossa sociedade líquida.
II - O tema
O comportamento de todos os habitantes onde a gripe atinge não pode ser o mesmo de dois meses atrás ou mesmo da semana passada. Vivemos um tempo de emergência pessoal, regional e universal.
Essa situação inesperada desafia o homem, o cidadão, os administradores públicos e privados e até a própria estrutura pensante, pois se algumas normas morais deviam ser observadas, elas deverão sê-lo sustentadas no sentido da responsabilidade individual do homem em coletividade.
III - Desafios
O primeiro desafio é esclarecer que o texto tem como título a palavra ética e, em seguida, algumas expressões como normas morais a serem observadas por todos os cidadãos.
E vamos esclarecer, desde logo, que ética (o termo aqui utilizado) tem um sentido específico e que não destoa da situação de ser um fato em que a moral predomina: "por moralidade indica-se o aspecto subjetivo da conduta, por exemplo: a intenção do sujeito, sua disposição interior (...) ética é a realização dessa moral interior"2
1) Passemos diretamente à questão:
O cerne de uma sociedade integrada, diante de um evento que atinge a todos, é o dever ou a exigência fundamental de que a pandemia exige informação clara, unívoca e cientificamente fundada e, assim, oferecida a quem a recebe. Isto ocorrendo, evitam-se reações desproporcionais e pânico, difundindo sentimento plural de culpa e onde a opinião pública pode agir em termos irracionais e muito emotivos.
2) Uma necessária comparação: o comportamento arbitrário da República chinesa, comparando com a atuação serena do Primeiro Ministro italiano Giuseppe Conte, embora tardia.
Esta informação, passada pelas autoridades, sempre carregada de medidas preventivas ou restritivas, até de liberdade, necessariamente deve ser justificada de seus motivos pelos quais elas tentam ser eficazes, diante de tantas interrogações.
Seria até desnecessário solicitar, ou até insinuar, que os meios de comunicação, tendo em vista, sobretudo, o bem comum, enleiam o sensacionalismo e a atribuição indiscriminada de culpa diante do fato coronavírus.
Esta atitude, conclamando aos meios de informação a serem auxiliadores, não significa restringir ou anular o direito de informação, mas, com sensatez, que esse exercício, fundamento da democracia, exige prudência e, pois, a gravidade, o perigo e a emergência não podem ser negligenciadas.
O papel do governo, de outro lado, os bens públicos, em um regime democrático, demandam toda a transparência das suas atitudes, perante os cidadãos, inclusive a colaboração de todos os poderes.
3) E que mais?
O dever de serem reservadas as informações e mantidas as privacidades, sobretudo dos pacientes que foram afetados é inegociável. Sobre elas, quaisquer sejam, a meu ver, se levadas a público e, mesmo que fosse possível, a transmissão nunca seria correta e adequada: a sua violação é grave e a privacidade é maculada, pois isso ocorre em todos os campos da transmissão de dados que se refiram à saúde, em que a confidencialidade é fundamental.
Outros há que apoiam, em casos como o presente, que os dados clínicos sejam publicados, com a gana de furos midiáticos espetaculares. Ocorre que, quando se tratam de direitos fundamentais, eles não podem e não devem ser anulados, mesmo em nome de coisa maior. Só poderiam ser suspensos e regulados em casos extremos, quando vinculados a tutelar o bem comum. E, ainda assim, limitados a critérios técnicos de urgência.
4) Também, ainda dentro do campo da deontologia médica, não se pode abrir e dar acesso a fontes dos profissionais que cuidam do afetado pela moléstia.
A antecipação de informações, sem que verifiquemos as particularidades e especificidades das circunstâncias decorrentes da utilização de dados pessoais no âmbito da deontologia médica, sem dúvida, além de ser criminosa, no sentido estrito, temerária e inoportuna, ao menos neste momento, com faceta deliquencial, muito mais grave.
IV - Conclusão
As comunidades religiosas benemerentes, as organizações de atendimento social, os planos de saúde e correlatos, devem assumir, entre si, sintonia com as determinações e as providências que as autoridades puseram em vigor.
O que se apela, neste momento, é a tomada de consciência nacional e de respeito ao ser humano, sobretudo no que diz respeito aos mais afetados e à ética de responsabilidade. Isso exige, pelo menos que, diante do caos que vivemos, se espera que as normas baixadas pelo governo possam cobrir e amparar a pluralidade dos casos que se apresentam. Indispensável a todos o discernimento maduro e consciente, não somente do que seja útil para si, egoisticamente, mas aquilo que possa ser mútuo a todo ser humano.
Não se espera mais e nem menos, e nem o melhor dos mundos, mas o que mais possa dignificar a pessoa humana.
É o que implica numa ética global sui generis.
_____________________________________________________________________
1 CAMUS, A. La Peste. Paris: Gallimard, 1972.